Os pés na prisão, por João Marcos Buch

Na realidade, nós, juízes, não nos identificamos com as camadas mais pobres da sociedade. Ao nos depararmos com processos criminais marcados pelo racismo estrutural, colonialismo e patriarcado, não pestanejamos em condenar pessoas que jamais tiveram oportunidades

Os pés na prisão

por João Marcos Buch

– Doutor, pode usar esses chinelos.

Eu havia tirado os sapatos para entrar na cela, mesmo com os detentos dizendo que não precisava, mas, como muitos dormiam no chão, jamais faria diferente. Logo o par de calçados me foi ofertado. Aceitei!

Suas condenações variavam, uns tinham cinco anos pela frente, outros mais, outros menos, e uma parte ainda aguardava julgamento. A maioria respondia ou por tráfico, ou roubo, ou furto. O que os identificava eram as condições degradantes da prisão. Viviam em 23 pessoas em um espaço feito para oito, sem qualquer atividade como trabalho ou estudo, permanecendo trancafiados e com apenas um par de horas de banho de sol no dia.

Aquelas cruéis condições não eram exceção, mas a regra da quase totalidade das celas espalhadas por todo país. As penas têm ido muito além da lei e da sentença, não importa a localidade. Uma condenação de alguns anos de reclusão, em regime inicialmente fechado, significa passar um bom tempo dormindo no chão, alimentando-se em marmitas e fazendo as necessidades fisiológicas, tudo no mesmo cubículo, amontoado com várias outras pessoas, 24h por dia; significa correr o risco de se infectar por tuberculose, leptospirose e covid-19 e de ter que se juntar a facções para sobreviver; significa talvez não sobreviver.

Nós, juízes, temos responsabilidade sobre esse estado de coisas, mas acabamos por não a assumir, talvez porque a magistratura é formada majoritariamente por brancos, provenientes das classes economicamente mais abastadas. Não houve até hoje reparação histórica inclusiva que propiciasse o acesso a cargos de poder por parte das populações negras e vulnerabilizadas.

Na realidade, nós, juízes, não nos identificamos com as camadas mais pobres da sociedade. Ao nos depararmos com processos criminais marcados pelo racismo estrutural, colonialismo e patriarcado, não pestanejamos em condenar pessoas que jamais tiveram oportunidades, nunca se sentiram cidadãs e sobre as quais não temos a menor ideia de quem sejam, como vivem e o que pensam. Com lições de moral, como se fôssemos ungidos e imaculados, lançamos sentenças ferozes sobre gente que furta alimentos em supermercados para matar a fome dos filhos, aplicamos penas longas a homens e mulheres que miseravelmente traficam quantias ínfimas de drogas para se sustentar ou sustentar o vício, mandamos para trás das grades jovens marginalizados que subtraem aparelhos celulares em zonas nobres da cidade. E tudo vai resultar na superlotação prisional, em celas como a qual eu acabara de adentrar.

A desconstrução dos preconceitos trilha uma longa jornada, que se torna um compromisso para o resto da vida. Ao sair do meu sítio e calçar os chinelos da prisão, comecei a perceber o distanciamento da minha vida daquelas que estão encarceradas, vi que o meu mundo foi recheado de oportunidades e que as prisões, herdeiras das senzalas, nunca foram feitas para mim. E tornou-se evidente aos meus olhos que nas prisões apenas um extrato social resta encarcerado, o extrato das populações negras e populações vulnerabilizadas.

A partir desse entendimento, soube melhor como jurisdicionar, como legitimar minha autoridade, mais, soube que o eixo do sistema de justiça criminal precisa mudar para efetivamente se fundar na Constituição.

– Nem sei o que lhes dizer, apenas que todo juiz deveria entrar aqui e ver isso – falei aos detentos antes de deixar a cela e devolver os chinelos, chinelos que nunca mais saíram dos meus pés.

João Marcos Buch é juiz da vara de execuções penais em Joinville

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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