do Brasil Debate
Os trabalhadores precários são os mais prejudicados pela Nova Previdência
por André Luiz Passos Santos*
A série de três notas técnicas sobre a reforma da previdência – publicadas em agosto, setembro e outubro pelo Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON), do Instituto de Economia da Unicamp – das quais participei com Ricardo Knudsen, Henrique Sá Earp e Antonio Ibarra, sob a coordenação do prof. Pedro Paulo Zahluth Bastos, aborda diversos aspectos da reforma finalmente aprovada pelo Congresso Nacional e agora promulgada. Cabe esclarecer que apenas o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) foi analisado.
Alertamos para o caráter regressivo da Nova Previdência, que contribuirá para concentrar ainda mais a renda, tanto pessoal como regionalmente. Mostramos também, utilizando dados da PNAD contínua de 2017, que 13,5 milhões de domicílios no país dependem em pelo menos 50% da renda de aposentados, e que a reforma lançaria milhões de pessoas na pobreza, pelo critério de meio salário mínimo per capita.
Mas foi inevitável que a revelação que fizemos de que as contas apresentadas pelo Ministério da Economia à sociedade, à imprensa e à Câmara dos Deputados – em Nota Informativa de fins de abril deste ano – mostravam erros grosseiros dominasse o debate público, inclusive provocando três Audiências Públicas em comissões do Senado Federal. Pior: o fato de que todos os erros que apontamos – após obtermos, via Lei de Acesso à Informação, a planilha que orientou os cálculos do governo – seguem na mesma direção alimentou suspeitas de fraude.
As contas do governo inflavam o custo das aposentadorias e também subestimavam o valor das contribuições dos trabalhadores e dos empregadores, forçando a conclusão (se essas adulterações ocorreram por falha ou má-fé deixamos por conta dos órgãos de controle e da sociedade) de que a aposentadoria por tempo de contribuição (ATC) é deficitária para a previdência, quando os cálculos demonstram que de fato a ATC é superavitária.
Dada a gravidade dos fatos, é compreensível que essa parte de nossos estudos tenha, de certo modo, monopolizado o debate, visto que os resultados sugerem que o governo teria manipulado dados para enganar a todos nós, incluídos deputados e senadores, responsáveis pela apreciação das medidas contidas na Emenda Constitucional. A indignação que se seguiu à divulgação dos estudos e debates públicos não pode evitar a aprovação da reforma, mas queremos crer que em algo contribuiu para algumas emendas paliativas que o Senado fez aprovar, e outras que ainda são discutidas na Proposta de Emenda Constitucional nº 133 – a PEC Paralela – ora em tramitação naquela Casa.
Dito isso, quero neste artigo debater a questão da taxa de reposição (TR) na Nova Previdência. Embora divulgada na Nota Técnica nº 9/2019 do CECON em outubro último, suas minúcias não foram suficientemente discutidas, pelas razões acima elencadas. Comecemos por esclarecer o que vem a ser taxa de reposição: trata-se da diferença entre o último salário recebido na ativa e o primeiro benefício de aposentadoria. Para simular o impacto da Nova Previdência sobre a TR, aplicamos a seguinte técnica:
1.Utilizamos o Rendimento Médio Habitual de Todos os Trabalhos (RM) da PNAD desde julho de 1994 como base para os salários de contribuição, visto que assim incorporamos ganhos reais aos salários na mesma magnitude do que ocorreu com o RM – que cresceu 1,2% ao ano, em média, nesse período. O período selecionado é o fixado pela Lei 9.876/99 para cálculo da média dos salários de contribuição que estabelecem o valor base para cálculo do benefício.
2.Calculamos então o salário de contribuição que seria necessário para se obter um salário mínimo de benefício, sem utilizar-se do piso previdenciário (ou seja, o salário de contribuição mínimo para se obter um benefício maior do que 1 salário mínimo).
3.Simulamos então aposentadorias por idade na regra antiga e na Nova Previdência, com 15, 20 e 25 anos de contribuição para mulheres e os mesmos tempos para homens, incorporando para eles também o tempo de contribuição de 30 anos.
4.Segundo informações obtidas pela CPI da Previdência, descobrimos que os trabalhadores precários, quer por falta de capacidade contributiva, quer porque entram e saem do mercado formal de trabalho ao longo de suas vidas laborais, contribuem para a previdência em média apenas 5 meses por ano. Assim, calculamos também os casos dos contribuintes que levam pelo menos 25 anos para integralizarem 15 ou 20 anos de contribuição (porque a lei determina que a média considere apenas os salários de contribuição a partir de julho de 1994, como foi apontado acima).
A conclusão a que chegamos é aterradora: trabalhadoras com 15 anos de contribuição contínuos, que tinham TR de cerca de 81%, passam a ter TR de pouco mais de 54%. Aquelas que completam 20 anos (também contínuos) passam de uma TR de quase 82% para uma de pouco mais de 60%; e as que perfazem 25 anos contínuos de contribuição passam de uma TR de pouco mais de 83% para uma de menos de 67%. No caso dos homens, sempre em tempos contínuos de contribuição, com 20 anos a TR cai de pouco menos de 82% para menos de 52%; com 25 anos a TR vai de pouco mais de 83% para pouco mais de 58%; e com 30 anos, a TR antiga, de quase 88%, desce para cerca de 67%.
Os efeitos acima têm duas causas:
1.A Nova Previdência considera todos os salários de contribuição para o cálculo do salário-base de benefício, enquanto a regra antiga estabelecia o descarte dos 20% menores salários de contribuição na determinação da média. Como em nossas simulações consideramos um crescimento real dos salários – tal como ocorreu com o RM da PNAD – a Nova Previdência calcula um salário-base para determinação do valor do benefício menor do que o valor obtido pela fórmula que antes se utilizava para esse mesmo cálculo.
2.A regra antiga estabelecia que aos 15 anos de contribuição, o benefício seria de 85% do salário-base. Era então acrescido um ponto percentual para cada ano trabalhado a mais, de forma que se alcançava um benefício de 100% do salário-base aos 30 anos de contribuição. A Nova Previdência estabelece que, aos 15 anos de contribuição, a mulher terá benefício de 60% do salário-base, a que se acrescem dois pontos percentuais a cada ano a mais até que alcance uma aposentadoria de 100% do salário-base aos 35 anos de contribuição. No caso dos homens que já estão no mercado de trabalho, o benefício será de 60% do salário-base dos 15 até os 20 anos de contribuição. A partir de 20 anos, serão acrescidos dois pontos percentuais por ano extra trabalhado, para que o valor da aposentadoria alcance 100% do salário-base apenas aos 40 anos de contribuição.
Uma estranha distorção foi criada. Como os homens, tanto aos 15 quanto aos 20 anos de contribuição, recebem 60% do salário-base como benefício, e considerando que, devido aos ganhos salariais reais, um maior período de contribuição implica uma média salarial (e, portanto um salário-base para cálculo do benefício) menor, dá-se a insólita situação de que um homem que se aposenta na Nova Previdência aos 20 anos de contribuição recebe uma aposentadoria menor do que outro que se aposenta aos 15 anos de contribuição, mantidos iguais os salários sobre os quais contribuíram para o INSS. Tal absurdo precisa ser avaliado e corrigido pelo Congresso Nacional, na oportunidade da discussão da PEC paralela.
A Nova Previdência prejudica a todos os trabalhadores, contudo os trabalhadores mais pobres são os que saem mais prejudicados. Como foi ressaltado acima, aqueles com mais baixa capacidade contributiva e menor empregabilidade formal – a grande maioria dos que na regra antiga se aposentavam por idade – têm, em geral, grandes dificuldades para integralizar os 15 ou 20 anos de contribuição.
Assim, levando pelo menos 25 anos para conseguir completar o tempo necessário às suas aposentadorias, essas trabalhadoras e trabalhadores trazem salários mais antigos (e, portanto, menores em termos reais) ao cálculo do salário-base, que assim resulta menor do que os daqueles que conseguem contribuir durante 15 ou 20 anos de forma contínua. Mulheres e homens que contribuem descontinuamente por 15 anos passam de uma TR de 74,5% para uma TR de 50%. As mulheres com contribuições descontínuas de 20 anos vão de uma TR de quase 79% para uma TR de pouco mais de 58%. Os homens com 20 anos descontínuos de contribuição veem sua TR despencar de pouco menos de 79% para apenas 50%. Ou seja, mulheres aos 15 anos e homens aos 15 e aos 20 anos descontínuos de contribuição verão seus rendimentos cortados à metade pela aposentadoria. Quem contribuiu durante toda a vida laboral sobre valores acima de 1 e até 2 salários mínimos terá benefícios que apenas alcançarão o piso previdenciário.
Considerando-se, por fim, que milhões de brasileiros e seus dependentes têm na aposentadoria a sua principal fonte de renda, assistiremos nos próximos anos a um processo de pauperização da velhice que imaginávamos já superado em nosso país de tantos contrastes. Os trabalhadores mais pobres, após uma dura vida de trabalho, em geral penoso, terão como recompensa na fase mais frágil da vida mais pobreza, mais carência e mais abandono. E para que? Para que a elite rentista siga se esquivando de dar a devida contribuição ao país?
Que tipo de sociedade é esse que estamos construindo, onde um equilíbrio fiscal socialmente injusto, perseguido através da imposição de pesados sacrifícios exclusivamente aos mais pobres, é um valor maior do que a vida, a dignidade e a solidariedade social?
Para aqueles que desejarem aprofundar o assunto, seguem links para as três Notas Técnicas do CECON – Unicamp:
Nota do Cecon nº 7: http://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/O_mito_do_custo_fiscal_e_da_regressividade_da_aposentadoria_por_tempo_de_contribuicao2.pdf
Nota do Cecon nº 8: http://www.eco.unicamp.br/index.php/noticias/2061-a-falsificacao-nas-contas-oficiais-da-reforma-da-previdencia-o-caso-do-regime-geral-de-previdencia-social
Nota do Cecon nº 9: http://www.economia.unicamp.br/index.php/noticias/2100-cecon-a-contabilidade-criativa-na-reforma-da-previdencia-e-o-aumento-da-pobreza-novos-dados-e-treplica-a-resposta-oficial
*André Luiz Passos Santos é economista, mestre em História Econômica pela USP
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