A pesquisa divulgada pelo Datafolha, nesta segunda-feira (18/8), com a inclusão do nome de Marina Silva, apresenta três candidaturas bastante competitivas à corrida presidencial. Uma de nítido corte liberal-conservador, personificada por Aécio Neves. Outra, mais à esquerda do espectro ideológico, tem a presidente Dilma Roussef liderando a sondagem. Por sua vez, Marina, como em 2010, visa a se apresentar ao eleitorado como uma alternativa à polarização PT/PSDB, buscando um caminho intermediário, que reflete um propósito conciliador entre os projetos da renitente polarização.
Em que pesem as suas diferenças, as três candidaturas não deixam de convergir em aspectos importantes, tais como: o primado da representação como eixo da democracia; o uso do fundo e do patrimônio público para dinamizar os investimentos capitalistas; o vazio programático em relação aos temas da reforma agrária e da democratização da mídia; e a inexistente problematização do papel das corporações multinacionais na economia brasileira. O candidato Aécio Neves, inclusive, representa uma preocupante via de radicalização dessa agenda conservadora. Contudo, onde se encontram os partidos de esquerda que fazem oposição ao governo federal? Onde estão os possíveis representantes das causas reverberadas pelas Jornadas de Junho de 2013? Cadê os potenciais representantes dos movimentos sociais emergentes nos últimos meses, dos trabalhadores grevistas aos críticos dos gastos da Copa do Mundo?
Semanas a fio, diferentes pesquisas de opinião têm revelado números irrisórios para os partidos de oposição, à esquerda, ao governo Dilma. Na referida sondagem, o Datafolha informou que José Maria (PSTU) teve 1%, enquanto Luciana Genro (PSOL), Rui Costa Pimenta (PCO) e Mauro Iasi (PCB) não pontuaram. Como participar do jogo eleitoral com tamanha fragmentação? Como repercutir temas convencionalmente silenciados e obscurecidos? Como buscar a mudança da agenda pública – construída pela mídia corporativa, pelas forças empresariais e pelos grandes partidos políticos – com candidaturas isoladas?
O atual cenário para as esquerdas que se opõem à orientação política, econômica e social dos anos de governo Lula/Dilma está marcado por uma flagrante incapacidade em compor alianças. Frágeis isoladamente, poderiam as esquerdas partidárias alcançar alguma repercussão político-eleitoral, na hipótese de alianças programáticas e estratégicas. Poderiam, ao menos, enriquecer o debate. A última oportunidade em que isso se deu foi em 2006, com a candidatura de Heloísa Helena pela coalizão PSOL/PCB/PSTU. Alcançou espaço e reverberação, embora, em elevada medida, por conta de um discurso de matriz moralista/udenista.
Descontentamentos e potenciais bases sociais existem para a formação de uma candidatura expressiva, como têm demonstrado uma miríade de movimentos sociais envolvidos com diferentes lutas e causas sociais – de natureza material (salários, serviços públicos) ou pós-material (gênero, etnia/raça, comunicações, costumes). É claro, para conjugar eleitoralmente tamanha energia criativa e pauta de reivindicações haveria a necessidade de alianças. Portanto, quais os motivos para esse explícito desinteresse dos partidos de esquerda com as eleições? Porque tamanha desunião? Parece-me que duas razões centrais jogam relevante papel, mesmo que não sejam apresentadas explicitamente pelos próprios atores. Senão, vejamos.
A primeira razão deve-se à conjuntura política. Receosos com um possível retorno do tucanato – com seu privatismo desenfreado e sua subserviência despudorada aos ditames de Washington –, não admira que, por maiores que sejam as críticas tecidas pelas esquerdas ao período petista de governo, preocupações efetivas em fazer oposição ao PT não prosperem. Mobilizando a perspectiva de um estudioso dos partidos políticos, Anthony Dows, pode-se argumentar que os organismos partidários das esquerdas brasileiras tendem mais a se colocar na condição de “grupos de pressão”, sobre o maior partido com viés progressista – o PT –, do que propriamente atentem para a criação de “projetos de poder”, com programas e objetivos claros. Ademais, todo e qualquer agente político precisa de uma identidade, para se constituir em porta-voz de um programa e de setores da sociedade. Para isso, conforme Stuart Hall, ingredientes antagônicos são imprescindíveis. Nesse sentido, a que ou a quem, realmente, se opõem os partidos de esquerda no Brasil? Ao capitalismo? Certo para proposições que se pretendam socialistas, mas bastante vago para sensibilizar a população, sobretudo em processos eleitorais. A direita, como o PSDB, opera abertamente com o antipetismo. As esquerdas, deliberadamente ou não, têm justificadas razões para não mobilizarem tal recurso identitário. Uma verdadeira sinuca de bico.
Outro motivo guarda relação com a própria estrutura de alguns partidos de esquerda. PSOL e PSTU derivam de um mesmo caldeirão cultural, um mesmo universo de práticas comportamentais do velho PT. Foram gestados nas hostes petistas e de lá desgarraram. Isso significa dizer que atuam nos movimentos sociais, sobretudo nas organizações sindicais e estudantis, sob o influxo do “controle” das cúpulas dirigentes. Possuem, de resto, como “inimigos” do cotidiano, em competição pela captura dos movimentos sociais, os próprios “adversários” da esquerda. Temas e ações que eventualmente possam ter concordância pouca valia têm. O importante é “hegemonizar”, “capitalizar”. Qual o sentido, por exemplo, de representantes partidários saírem em fotos com candidatos de centros acadêmicos e direções sindicais? Infelizmente, prática muito usual. Se outros candidatos vencerem, não recebem, não dialogam nem apóiam? Eis uma regra, de resto, sectária e mesquinha. Não admira, pois, a incapacidade de alianças programáticas e estratégicas de esquerda quando chegam as eleições majoritárias.
E o PCB? Apesar de hoje muito debilitado politicamente, no período histórico de maior expressão política, antes do golpe de 1964, também não deixava de tentar exercer controle sobre os movimentos sociais. Todavia, como bem analisam historiadores do movimento operário brasileiro, como Antonio Luigi Negro, os trabalhadores possuíam, à época, disposição e mais recursos para interpelar aos partidos (inclusive o falecido PTB de Jango, Getúlio e Brizola) e agir de maneira autônoma. Indomáveis aqueles trabalhadores, eram os partidos comunista e trabalhista forçados, inúmeras vezes, a seguir às iniciativas operárias. O “fantasma” do “populismo manipulatório” foi bom para os livros de sociologia dos anos 1970/80. Mas, a classe trabalhadora da República de 1946 não tinha nada com isso. Quanto ao PCO, ao menos no Rio de Janeiro, a insignificância não permite tecer maiores considerações.
Conforme a perspectiva do filósofo italiano Antonio Negri, em nossa época, se quiserem ser consequentes, as esquerdas – sobretudo organizadas em partidos políticos – precisam superar a concepção política sectária e verticalizada. O tempo das “vanguardas” esclarecidas e disciplinadoras, o tempo de Lênin, dos primórdios da revolução industrial russa, se foi. Uma visão política mais horizontalizada, menos autocentrada, que apóie e estimule a participação democrática, independentemente de os atores políticos e os movimentos sociais terem ou não vínculos com seus partidos, se faz necessária. A luta por “hegemonia” no seio das esquerdas, tal como se pratica, somente suscita desconfiança e fragmentação estéril.
O conteúdo político – que aspira ao socialismo – deve guardar relação direta com a forma política (baseada no diálogo, na participação, na inter-relação e na autonomia dos sujeitos). Aquele conteúdo, diga-se, persiste incomodando as forças conservadoras, como bem se vê na contumaz abordagem do oligopólio midiático, ao associar, especialmente, o PSOL e o PSTU ao “vandalismo”, em uma linha editorial de criminalização das esquerdas e dos movimentos sociais. Entretanto, a dissociação em vigor entre forma e conteúdo somente tem beneficiado a direita, neutralizando e fragmentando as esquerdas, retirando as esperanças por mudanças em amplos setores da população. As atuais eleições, sem uma candidatura expressiva de esquerda, ficam demasiadamente empobrecidas. Uma vez mais.
(*) Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF), mestre em Ciência Política (UFRJ), professor da Faeterj-Rio/Faetec e da SME-Rio.
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