
Jogando as mortes violentas para debaixo do tapete
por Jacqueline Sinhoretto e André Cedro
O Atlas da Violência 2024, recentemente publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), retrata o Brasil com elevada taxa de mortes violentas intencionais. Apresenta reduções entre os anos de 2017 a 2022, com cerca de 15 mil homicídios a menos. Contudo, houve uma estagnação da taxa desde 2019, isto é, sem diminuição significativa durante o governo Bolsonaro.
Tal inércia, apontada no histórico dos dados, não condiz com o discurso feroz e extremista que o campo bolsonarista dirige às políticas de segurança pública que o antecederam. Deputados e governadores se elegeram com a linha discursiva de ataque às políticas de prevenção da violência, à legislação da justiça juvenil e às políticas públicas de direitos humanos. Na disputa discursiva, tudo se passa como se a direita fosse grande conhecedora de como reduzir o crime e a violência, enquanto a esquerda não tivesse um programa, ou se limitasse a “oferecer flores aos bandidos”.
A análise embasada que o Atlas da Violência oferece ano a ano contribui para escapar da disputa de narrativas e colocar o debate da violência em outro patamar, no qual não se visa defender ou atacar governos e partidos, mas realmente aferir políticas que tiveram sucesso ou fracasso e, com isso, orientar decisões de governantes, cidadãos e suas organizações.
O Atlas de 2024 permite um balanço dos efeitos da principal política do governo Bolsonaro para o setor de segurança: o armamento da população civil. O estudo estima que 6.399 mortes poderiam ter sido evitadas se o governo federal não tivesse incentivado a difusão de armas de fogo. A estagnação da redução de homicídios ocorreu em 2019, contrariando a tendência de declínio do período anterior. Os cientistas do IPEA calcularam que cerca de 4 mil mortes foram evitadas pela política de desarmamento (de 2004 a 2007), outras tantas foram prevenidas durante o período de financiamento federal de programas de prevenção da violência nos estados e municípios – a partir de 2007, com o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI).
Além disso, o envelhecimento da população, com redução da população adolescente-jovem no país, também teve um efeito sobre desaceleração da curva de mortes violentas. Por isso, os autores do Atlas concluem que o Brasil perdeu uma chance de ouro ao interromper o financiamento das políticas que poderiam reduzir ainda mais a morte violenta de jovens – interrupção que remonta ao segundo governo de Dilma.
A última década foi o período em que o policiamento ostensivo (aquele feito pelas Polícias Militares) recebeu a maior parte dos recursos destinados à segurança pública – e isso aconteceu em estados governados por diferentes partidos. A polícia que faz as investigações – Polícia Civil – recebeu menos recursos de modo sistemático na maioria dos estados. Internamente às Polícias Militares, o ostensivo foi o programa que, de modo geral, recebeu mais recursos, aumentando as capacidades de fazer abordagens pessoais e prisões em flagrante, reduzindo o investimento em policiamento comunitário ou técnicas de mediação de conflitos, por exemplo.
Os investimentos em tecnologia e meios foram massivamente destinados a apoiar o policiamento ostensivo, como é o caso do uso de programas estatísticos, informatização de viaturas e sistemas de câmeras. Não que não fossem necessários, mas os recursos públicos são sempre finitos e a decisão de investir é sempre política. As Delegacias da Mulher e as delegacias de homicídios, no quadro geral do país, não receberam recursos equivalentes, nem de pessoal nem de equipamentos para investigação, mesmo que sejam melhores hoje do que eram no início do século.
A falta de investimento na investigação de crimes violentos se fez notar na piora da qualidade da coleta e do tratamento de dados de mortes violentas e isso aconteceu nos estados mais ricos, como São Paulo e Rio de Janeiro. Neles, houve significativo aumento das Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCI), a partir de 2018, gerando assim prejuízos para a contagem dos homicídios no país.
De acordo com os dados, 131.562 pessoas foram mortas violentamente sem que as instâncias competentes conseguissem identificar a causa do óbito. Esses homicídios ficam ocultos nas estatísticas, não tendo sido investigados pela polícia, nem apurados pelos governos e prefeituras, sem nenhuma ação do Governo Federal, ou do Ministério Público em sua função de controle externo da atividade policial.
Em São Paulo, a taxa de homicídios praticamente dobraria se as mortes fossem esclarecidas, indo de 6,8 por 100 mil habitantes para 12. No Rio, ao invés de 21,4 homicídios por 100 mil habitantes, teríamos 26,2. Mais do que pensar em maquiagem de números, é preciso questionar onde os recursos vultosos da segurança pública estão faltando: nas equipes de investigação, no apoio às perícias, no atendimento a vítimas e seus familiares.
Não são números, são pessoas violentadas, cujas mortes não tiveram importância política sequer para serem registradas. É claro que o perfil social dos mortos tem tudo a ver com jogar o problema para debaixo do tapete. No quadro nacional, o perfil das vítimas ainda é composto majoritariamente por homens, jovens e negros. Em 2022, 76,5% das mortes violentas intencionais (35.531 vítimas) foram de cidadãos negros. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes foi de 29,7 para negros enquanto a de não negros foi de 10,8. Isso significa que negros são assassinados 2,8 vezes mais do que não negros. Salvador se destaca como a capital com maior taxa (70,2), seguida por Macapá (69,7) e Manaus (63,5).
Foram 321.466 jovens mortos violentamente no Brasil entre 2012 e 2022. Os registros oficiais dos últimos dois anos apontam redução de 4,9%, mas os pesquisadores estimam que a redução tenha sido menor (3,1%). A arma de fogo foi o principal instrumento utilizado: 83,8% dos casos.
Assim, os resultados da política armamentista incidiram principalmente sobre negros jovens, provocando uma reversão no declínio de mortes violentas neste grupo. Este é um resultado flagrante de racismo institucional, isto é, o investimento em políticas públicas que causam prejuízos à população negra. Da mesma forma, o “apagão de dados” nas causas de morte “apaga” os assassinatos sofridos por negros jovens, que deixam de ser investigados, de entrar nas previsões do futuro, causando subestimação de recursos para lidar com as injustiças sofridas por este grupo.
Em relação às mulheres, foram 4.172 mortes violentas registradas em 2022, enquanto o estimado foi 4.670, 22,8% acima do apontado pelos dados oficiais. O problema embaixo do tapete neste caso acoberta o “cancelamento de CPF” de mulheres assassinadas por seus companheiros e ex-companheiros, os quais tendem a ser vistos na narrativa política como “cidadãos de bens”. 70% dos feminicídios registrados foram cometidos dentro de casa. Mulheres negras são 66,4% das vítimas, elas têm 1,7 vezes mais chance de serem mortas do que mulheres não negras. Ou seja, o desconhecimento da causa da morte está deixando de fora da rede de investigação de crimes mais de 1 em cada 4 mulheres mortas por violência.
Uma das inovações do Atlas da Violência 2024 é reunir dados sobre violência contra a população LGBTQIAPN+. Em 2022, 8.028 pessoas deste grupo foram mortas violentamente. 72,5% (5.826) das vítimas eram homossexuais e 22,4% (2.202) bixessuais. Também neste universo, a morte se concentra entre pessoas jovens, entre 15 e 29 anos (65,2%) e negras (55,6%).
Poderíamos estar comemorando reduções nesses indicadores de morte violenta se as políticas de prevenção da violência não tivessem sido abandonadas por governos de diferentes orientações políticas. Em todo o espectro político, foi o policiamento ostensivo que recebeu os maiores investimentos. Mas o policiamento ostensivo não produziu a segurança almejada, pois para reduzir mortes violentas é preciso de uma rede integrada de serviços que ficou sem recursos humanos e financeiros. Programas como o Fica Vivo! e o Pacto Pela Vida, desenvolvidos em Minas Gerais e Pernambuco, com sucesso na redução de homicídios, necessitam de visões inovadoras, de multiplicidade de saberes e de atores, de enraizamento comunitário.
Na ausência dessa rede articulada, estamos hoje falando de corpos sem vida recolhidos sem o mínimo exame sequer para determinar as circunstâncias da morte. Não podemos dizer que falta dinheiro para o setor de segurança como um todo, porque nunca a segurança teve tantos recursos. Mas falta direcionamento desses recursos para a rede de serviços que protege e assiste às vítimas de violência.
Desta forma, temos gasto muito dinheiro com uma segurança pública cara que não mostra resultados eficientes, sendo pior ainda os resultados para negros, mulheres e pessoas LGBTQI+. É preciso escapar a disputas meramente narrativas e tomar consciência de que as decisões políticas na área de segurança podem salvar vidas ou se limitar a empilhar corpos.
Jacqueline Sinhoretto é socióloga, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, pesquisadora do INCT-InEAC.
André Cedro é sociólogo, pesquisador da Universidade Federal de São Carlos e do INCT-InEAC.
Revisão: Mariana Pitasse
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