INCT - InEAC Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos
Há mais de 15 anos, o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC-UFF) vem trabalhando com pesquisas sobre a diversidade das formas institucionais de administração de conflitos nos diferentes âmbitos dos sistemas de Segurança Pública e de Justiça Criminal. Os trabalhos são produzidos através de uma rede nacional e internacional de programas de Pós-Graduação, grupos de pesquisa e de pesquisadores espalhados por sete estados do Brasil e nove países. Esta coluna se relaciona com os esforços dessa rede em refletir sobre temas da pauta política e social brasileira, visando a contribuir com o debate público e difundir ciência para fora dos muros da universidade.
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Desafios na jornada dos entregadores por aplicativo, por Carlos Eduardo Viana

A motivação que atualmente existe para que se organizem coletivamente é em grande parte resultado das condições de trabalho enfrentadas

Tomaz Silva – Agência Brasil

Entre a liberdade e a regulamentação: desafios na jornada dos entregadores por aplicativo

por Carlos Eduardo Viana

Nos últimos anos, a mobilização dos entregadores por aplicativos no Brasil tem se tornado uma força crescente. Hoje, como resultado, vemos uma organização numericamente considerável de movimentos pleiteando melhorias nas condições de trabalho dessa categoria. Ainda que tenha surgido de forma descentralizada, demarcada por grupos se reunindo em redes sociais ou por meio de aplicativos de mensagens simplesmente para trocar informações e experiências, a motivação que atualmente existe para que se organizem coletivamente é em grande parte resultado das condições de trabalho enfrentadas, que incluem jornadas longas, baixos salários, falta de segurança e ausência de direitos trabalhistas. Essas são questões que, inclusive, levantam debate sobre a necessidade de regulamentação legislativa da categoria.

Nesta semana, no Rio de Janeiro, foi aprovado um projeto de lei que cria o selo “Amigo dos Entregadores” para reconhecer estabelecimentos que oferecem condições mínimas de trabalho para entregadores autônomos. Para ter direito ao selo, os estabelecimentos deverão atender a pelo menos dois dos seguintes critérios: acesso ao banheiro de funcionários ou clientes, fornecimento de água filtrada, locais de descanso ou desconto de pelo menos 20% nas refeições.

A medida foi construída a partir de demandas colocadas pelos entregadores em audiências públicas realizadas na Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj), mas representa um avanço muito pequeno no debate em torno dos direitos e condições trabalhistas.

A força da mobilização dos entregadores se destaca porque, ao contrário do que acontece nos empregos tradicionais em que os trabalhadores interagem uns com os outros regularmente em um ambiente físico compartilhado, eles realizam suas tarefas de forma independente, em horários distintos e muitas vezes sem contato direto com colegas.

A fragmentação que acompanha o desempenho dessa atividade é um dos fatores que dificulta a formação de laços e a criação de uma identidade coletiva. A participação em tarefas comuns, que mobiliza, não se faz presente. O isolamento, ao contrário, que desmobiliza, é a regra. Cada entregador opera como uma unidade isolada enfrentando individualmente seus próprios desafios diários. E é por isso que uma mobilização dessa categoria, surgida desse contexto individual, chama atenção.

A economia de plataformas, um modelo econômico baseado na intermediação de transações entre usuários por meio de plataformas digitais – em que estão inseridos esses trabalhadores –, é outro fator que contribui para essa fragmentação. Isso se dá, dentre outras explicações, pela forma como os algoritmos das plataformas distribuem as entregas a serem feitas, o que muitas vezes acontece sem que seja dada a devida transparência, segundo os entregadores.

O recebimento de maiores números de entregas, ou seja, de maiores oportunidades de ganhos, acaba por promover uma cultura de competição entre os entregadores, que se veem inseridos em uma disputa para conseguir cada vez melhores avaliações dos clientes, um dos critérios da plataforma para distribuição de entregas, e poder receber mais pedidos – e, com isso, mais dinheiro.

Apesar do somatório das questões apresentadas, que têm gerado a mobilização dos entregadores, as plataformas continuam a oferecer uma visão sedutora: a possibilidade de qualquer pessoa se tornar um empreendedor, bastando para isso um smartphone com acesso à internet. A ideia promovida é a de que os empreendedores – e não trabalhadores – têm controle total sobre seus horários e rendimentos. Defina seu próprio tempo, trabalhe quando, onde, como quiser e ganhe conforme seu esforço. A promessa é atraente e ressoa particularmente em tempos de crise econômica, marcada pela escassez de oportunidades formais de emprego, o que leva muitos a buscar alternativas para garantir o sustento.

Entregadores na linha de frente

A pandemia de Covid-19, iniciada em 2020, aprofundou um momento de transformação na economia global que afetou drasticamente a dinâmica do trabalho e o comportamento do consumidor. No Brasil, a crise sanitária colocou em evidência as condições de trabalho dos entregadores por aplicativos ao mesmo tempo que destacou a importância desses trabalhadores para o funcionamento das cidades.

Com a implementação de medidas de isolamento social e a imposição de restrições de circulação para conter a propagação do vírus, muitas atividades econômicas foram paralisadas, e as pessoas foram incentivadas a permanecer em casa. E foi nesse contexto restritivo que os serviços de entrega de mercadorias e de alimentos passaram a desempenhar um papel vital. Os entregadores, que antes eram muitas vezes invisíveis para a maioria da população, tornaram-se essenciais para garantir o abastecimento das famílias confinadas em suas residências.

Ao compor um seleto time de categorias com permissão de circulação, esses trabalhadores passaram a realizar cada vez mais entregas de bens de primeira necessidade, como alimentos e medicamentos. Posicionados na linha de frente, a atividade desempenhada pelos entregadores permitiu que a população respeitasse minimamente as medidas de distanciamento social. A “promoção” para o status de essencialidade, no entanto, não veio proporcionalmente acompanhada de melhorias nas condições de trabalho.

A pandemia trouxe destaque e fez aprofundar as dificuldades que eram já enfrentadas pelos entregadores, que continuaram a trabalhar em jornadas exaustivas, recebendo as mesmas baixas remunerações e sem acesso a direitos trabalhistas básicos. A falta de segurança, tanto em termos de proteção contra o vírus quanto de segurança física nas ruas, foi uma constante que se manteve. Havia um descompasso: a valorização simbólica e legislativa que alçava os serviços de entregas enquanto “atividades essenciais” não se traduziu em reconhecimento material, tampouco em melhorias significativas em suas condições laborais.

Reconhecendo-os como peças-chave para a manutenção das atividades essenciais, dada a dependência criada diante das entregas para a subsistência de tarefas simples como compras em mercados e farmácias, o período pandêmico deixou claro a indispensabilidade da categoria no funcionamento das cidades. Ao mesmo tempo, trouxe à tona a urgente necessidade de se repensar e de se reestruturar as condições de trabalho dos entregadores por aplicativos.

Da fragmentação à união

Enquanto a demanda aumentava, os entregadores se viam enfrentando cada vez mais longas jornadas de trabalho, que eram marcadas pela baixa remuneração e pela constante pressão dos algoritmos das plataformas – mais entregas em menos tempo –, que continuavam os únicos responsáveis pela distribuição dos pedidos e, consequentemente, pela distribuição dos ganhos diários.

As condições de trabalho foram ainda agravadas pela exposição ao risco de contágio pelo coronavírus e, sem acesso a equipamentos de proteção individual adequados, muitos entregadores se viam obrigados a trabalhar sem máscaras e sem acesso à álcool em gel para higienização das mãos antes e após as entregas, aumentando o risco de adoecerem e transmitirem a doença para suas famílias.

A crescente insatisfação com as condições de trabalho e a falta de apoio das plataformas culminou no #BrequeDosApps, como ficou conhecida a organização de uma greve dos entregadores em 2021. O movimento foi um marco na demonstração da capacidade de mobilização e da força da categoria.

Durante este processo, viu-se o surgimento de uma identidade coletiva que era forjada a partir das experiências compartilhadas e pelas narrativas comuns que emergiam das interações entre os entregadores. Nas redes sociais, eles compartilhavam cada vez mais histórias de dificuldades e de vitórias, criavam campanhas de solidariedade e organizam protestos e greves. Essas atividades ajudam a criar um senso de pertencimento e de propósito comum, característica fundamental para ações coletivas que se pretendem eficazes.

A princípio, a flexibilidade prometida pelas plataformas se apresentava como um alívio para aqueles trabalhadores cansados das amarras e dos limites impostos pelo emprego tradicional. Não ter patrões diretos, não “bater ponto” em horários fixos e a ideia de ser “seu próprio chefe” formam a tríada da liberdade que é amplamente propagada pelas plataformas. Para muitos, essa promessa se apresenta enquanto uma solução para os problemas econômicos, surgindo uma forma de trabalho que pode ser adaptada às necessidades pessoais e familiares do trabalhador de forma independente, preservando a liberdade em ser ele o próprio delimitador de sua rotina e horários.

Contudo, a experiência prática frequentemente diverge da propaganda. Embora os trabalhadores possam teoricamente escolher seus horários, a necessidade de aceitar a maioria das solicitações de entregas para garantir uma renda estável muitas vezes resulta em jornadas longas e exaustivas. A flexibilidade prometida é limitada. A necessidade de estar disponível durante os períodos de maior demanda para maximizar os ganhos acaba por gerar implicitamente uma carga e um horário de trabalho demarcado – muitas vezes maior do que uma jornada no regime de contratação formal.

Os algoritmos dessas plataformas desempenham um papel crucial nesse cenário. São eles que determinam, com base em critérios estipulados unilateralmente pelos aplicativos, a distribuição das tarefas. Nessa dinâmica, os trabalhadores que ficam disponíveis por mais horas esperando o chamado dos aplicativos e os que apresentam maiores taxas de aceitação de pedidos – aqueles que não selecionam muito as entregas que fazem – são escolhidos com prioridade. A tão alardeada autonomia em escolher o horário de entrada e de saída do trabalho se vê restringida pelo controle algorítmico, que pode penalizar aqueles que não seguem as regras implícitas da plataforma, como manter altas taxas de aceitação e demonstrar disponibilidade.

Essas pequenas contradições práticas, que vivem nas entrelinhas do discurso empreendedor das plataformas, é o que motiva a luta dos entregadores por melhores condições de trabalho e reconhecimento de seus direitos. A possibilidade de dialogar com as plataformas, de ajustar valores mínimos por tarefas desempenhadas e de serem ouvidos antes da implementação de modificações unilaterais pelos aplicativos são melhorias que surgem da troca de experiência entre os entregadores, entendendo-se não como uma unidade isolada, mas enquanto parte de uma categoria. E, diante de um mercado de trabalho cada vez mais instável, a união em movimentos como o #BrequeDosApps aparece como um passo essencial para a conquista de um futuro mais justo e equitativo.

Reinventando o trabalho e os trabalhadores

O modelo de plataformas não apenas modificou a visão tradicional do emprego, caracterizada por jornadas fixas, prestação de contas a um superior e a segurança da carteira assinada, mas também reformulou a maneira como o próprio trabalho é desempenhado e percebido. Essa mudança, no entanto, traz consequências significativas para aqueles envolvidos com as plataformas. Apesar de o discurso propagado pelas empresas enfatizar aspectos como liberdade, empreendedorismo e autonomia, a realidade enfrentada pelos trabalhadores é marcada pela incerteza e pela variação nas demandas dos aplicativos.

Ao contrário dos empregos tradicionais, em que há uma previsibilidade dos ganhos, os entregadores e os motoristas de aplicativos convivem com uma constante instabilidade financeira, que acaba por revelar que o sustento diário está diretamente dependente da volatilidade do mercado. Mas a ausência de proteção legislativa e a indefinição quanto ao seu enquadramento – se empregados, se empreendedores – parece não ser prioridade para parte significativa desses trabalhadores. A ideia de “ser seu próprio chefe” e a aversão à regulamentação formal são propagandeadas como vantagens, mas a narrativa oculta a exclusão dessa categoria dos direitos trabalhistas.

A autonomia prometida pelas plataformas frequentemente não se traduz em segurança e proteção adequadas, situação que expõe as limitações dos modelos regulatórios tradicionais que não conseguem abranger as especificidades dessa nova categoria de trabalhadores. Relatos de entregadores que não integram ações coletivas indicam uma preferência pela manutenção do modelo de trabalho atual, sem maiores regulamentações.

Para eles, as críticas são direcionadas mais às plataformas e à gestão dos aplicativos do que ao regime de regulação jurídica em si. A solução não estaria na intervenção estatal, mas sim na ampliação do diálogo aplicativo-empreendedor na esfera privada. Essa tensão entre a busca por autonomia e a ausência de proteção formal enfatiza a urgente necessidade de encontrar soluções que harmonizem a flexibilidade da economia de plataformas com a salvaguarda de direitos fundamentais para os trabalhadores.

Qualquer que seja a solução adotada para equilibrar essa balança, ela deve ser capaz de assegurar a manutenção da característica mais valorizada por esses trabalhadores: a sensação de liberdade. A reconfiguração do que se entende por trabalho e a necessidade de novas regulamentações que abarquem as realidades laborais surgidas com o mercado de plataformas refletem a urgência de se criar um ambiente de trabalho mais justo e seguro.

A transição para esse novo modelo deve ser pautada pelo equilíbrio entre flexibilidade e proteção. A criação de mecanismos de regulação, seja através de adaptações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), seja do regime de Microempreendedor Individual (MEI), seja por meio de novas formas de regulação, deve ter como objetivo primeiro a garantia de que os trabalhadores de plataformas tenham acesso a direitos básicos, mas sem que percam a flexibilidade laboral que tanto prezam.

Carlos Eduardo Viana – Economista, doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF (PPGA-UFF), pesquisador do INCT-InEAC e membro do Grupo de Pesquisa em Antropologia do Direito e das Moralidades (GEPADIM).

Revisão: Mariana Pitasse

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