Traduzir, por Maurice Blanchot

 

da Revista Substânsia – 05/02/2014

 

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tradução de Davi Pessoa Carneiro

 

Sabemos o quanto devemos aos tradutores e, ainda mais, à tradução? Acredito que não. Mesmo se sentimos gratidão pelos homens que se adentraram corajosamente nesse enigma – a tarefa de traduzir –, mesmo se os saudamos de longe como os mestres ocultos da nossa cultura, ligados a eles e docemente submetidos ao seu zelo, o nosso reconhecimento permanece silencioso, um pouco sustentado, além do mais, pela humildade, pois não somos capazes de sermos os seus reconhecedores. A partir de um ensaio de Walter Benjamin, no qual o excelente ensaísta nos fala da tarefa do tradutor, irei tirar algumas considerações sobre essa forma original da nossa atividade literária. E se continuarmos dizendo, com ou sem razão, que são os poetas, os romancistas, até mesmo os críticos, todos responsáveis pelo sentido da literatura, é necessário citar, com o mesmo título, os tradutores, ou seja, os escritores da espécie mais rara e verdadeiramente incomparáveis.

           

Traduzir, agora me veio à mente, permaneceu por muito tempo, em certas culturas, como uma espécie de pretensão maligna. Algumas pessoas não queriam que se traduzisse na sua língua, outras, sim, e a guerra foi imprescindível para que essa traição, em sentido exato, se realizasse: entregar ao estrangeiro a verdadeira expressão de um povo. (Lembremo-nos do desespero de Etéocles: “Não permitam que seja arrancada pelas raízes, tomada pelo inimigo, uma cidade que fala a língua grega”)[1]. Mas o tradutor é culpado por uma impiedade ainda maior. Inimigo de Deus, ele pretende reconstruir a Torre de Babel tirando ironicamente vantagem e proveito da punição celeste que separa os homens, confundindo as línguas. Em um tempo se acreditava poder remontar a uma linguagem originária, palavra importante, tanto que bastaria proferi-la para afirmar a verdade. Benjamin conserva algo desse sonho. As línguas, diz ele, compreendem a mesma realidade, mas não do mesmo modo. Quando digo Brot e quando digo pain, ouço a mesma coisa de maneiras diferentes. Tomadas uma a uma as línguas são incompletas. Com a tradução não nos contentamos em substituir uma modalidade por outra, um rastro por outro, mas fazemos referência a uma linguagem superior, entendida como a harmonia ou como a unidade complementar de todos esses diferentes modos de compreensão, podendo exprimir-se de maneira ideal na convergência do mistério entre todas as línguas faladas por todas as obras. Daí o singular messianismo do tradutor, quando opera para colocar as línguas em direção a essa linguagem última já testemunhada em cada língua presente, no devir que ela conserva e da qual a tradução se apropria.

           

Trata-se, evidentemente, de um jogo utópico de ideias, pois se supõe que toda linguagem tenha um único e mesmo modo de abordar, e sempre com o mesmo significado, e que todos os modos de entendimento poderiam se tornar complementares. No entanto, Benjamin sugere outra coisa: cada tradutor vive da diferença das línguas, cada tradução se funda nessa diferença, mesmo seguindo, aparentemente, o desenho perverso no momento em que a suprime. (A obra bem traduzida é louvada em dois modos contrastantes: não parece traduzida, diz-se; ou, de outra forma, é realmente a mesma obra, acredita-se que seja extraordinariamente idêntica; mas, no primeiro caso, se apaga a origem da obra em benefício da nova língua; no segundo caso, em benefício da obra se apaga a originalidade das duas línguas; em cada caso, algo de essencial se perdeu). Na realidade, a tradução não é totalmente destinada a fazer desaparecer a diferença, que, pelo contrário, é o seu jogo: faz-se constantemente alusão a ela, dissimulando-a, porém, talvez, revelando-a e frequentemente acentuando-a, ou seja, ela é a própria vida dessa diferença, encontra nesta a sua nobre função e também a sua fascinação, quando chega a unir orgulhosamente as duas línguas com uma força unificante semelhante àquela de Hércules ao aproximar as duas margens do mar.

           

Mas é preciso acrescentar: a obra está madura e é digna de ser traduzida apenas se esconde, de algum modo, – caso esteja à disposição – essa diferença, ou porque faz referência originalmente a outra língua, ou porque reúne de maneira privilegiada as possibilidades de cada língua viva, quando é diferente de si mesma, estrangeira a si mesma. O original nunca é estático e tudo aquilo que é certo acontecer numa língua num dado momento, tudo aquilo que nela indica ou convoca outro estado, às vezes perigosamente outro, afirma-se na deriva solene das obras literárias. A tradução está ligada a esse devir, pois o gesto de “traduzir” o realiza, e só se torna possível por causa desse movimento e dessa vida de que se apropria, por vezes, simplesmente para libertá-la, ou para mantê-la com muito esforço. Em relação às obras-primas clássicas que pertencem a uma língua que não falamos, elas exigem a tradução justamente pelo fato de serem as únicas depositárias da vida de uma língua morta e as únicas responsáveis pelo porvir de uma língua sem porvir. Vivem unicamente pela tradução; além disso, são, mesmo em sua língua original, constantemente retraduzidas e reconduzidas em direção àquilo que têm de mais singular: voltadas à sua estranheza diante da origem.

           

O tradutor é um escritor de uma originalidade singular, precisamente onde parece não reivindicar nenhuma originalidade. Esse é o maior segredo da diferença das línguas não abolida, mas utilizada para despertar algo em si mesma, provocando mudanças violentas ou sutis, por exemplo, uma presença daquilo que existe de diferente, originalmente, no original. Como afirma, de fato, Benjamin, não se trata aqui de uma semelhança: caso se queira que a obra traduzida se assemelhe à obra a ser traduzida, então, não há tradução literal possível. Trata-se, ao contrário, de uma identidade a partir de uma alteridade: trata-se da mesma obra em duas línguas estrangeiras, seja em razão da sua estranheza, seja porque tornam visível aquilo que fará com que essa obra sempre pareça outra, movimento do qual é necessário destacar a luz que iluminará, em transparência, a tradução.

           

Sim, o tradutor é um homem estranho, nostálgico, que sente na sua língua a falta de tudo aquilo que a obra original (que não pode, de resto, alcançar, já que não mora ali, tal como um eterno hóspede que não a habita) lhe preanuncia sob a forma de afirmações presentes. Deriva de tais afirmações, segundo os especialistas, tanto que ao traduzir ele se encontra sempre em maior dificuldade na sua língua do que embaraçado pela língua que não possui. Não vê apenas tudo o que falta à língua francesa (por exemplo) para reencontrar o texto estrangeiro que domina, mas possui agora a língua francesa de modo carente, pois é repleta dessa privação que deve ser preenchida pelos recursos de outra língua, ela mesma tornada outra na única obra, onde se recolhe momentaneamente.

           

Benjamin cita, através de uma teoria de Rudolf Pannwitz, uma passagem surpreendente: “As nossas versões, mesmo as melhores, partem de um princípio falso no momento em que se propõem germanizar o indiano, o grego, o inglês, ao contrário de tornar indiana, grega, inglesa a língua alemã. Tais versões têm um respeito muito maior pelos usos da sua língua do que pelo espírito da obra estrangeira […]. O erro fundamental do tradutor é de conformar-se com o estado contingente de sua língua, ao contrário de deixá-la poderosamente estremecida e agitada pela língua estrangeira”. Sugestão ou reivindicação perigosamente atraente. Deixa entender que cada língua poderia tornar-se todas as outras, ou que, ao menos, deveria mover-se sem danos em cada nova direção. Supõe que o tradutor encontrará muitos recursos na obra a ser traduzida e que também encontrará autoridade suficiente em si mesmo para provocar essa mudança brusca; presume, enfim, uma tradução tanto mais livre e inovadora quanto mais for capaz de uma maior literalidade verbal ou sintática, que tornaria inútil, no limite, a tradução.

           

Pannwitz, para comprovar as suas teses, pôde apelar para nomes importantes, tais como Lutero, Voss, Hölderlin, George, que não hesitaram, todas as vezes que foram tradutores, romper com os esquemas da língua alemã, com o intuito de ampliar as suas fronteiras. O exemplo de Hölderlin mostra, concluindo, o risco que corre o homem fascinado pela potência da tradução: as traduções de Antígona e de Édipo foram, mais ou menos, as suas últimas obras, na soleira da loucura, obras extremamente meditadas, controladas, escolhidas e conduzidas com inflexível firmeza. Seu objetivo não era levar o texto grego à língua alemã, nem levar a língua alemã às fontes gregas, mas queria, por outro lado, unificar as duas forças que trazem em si: uma com as vicissitudes do Ocidente, a outra com as do Oriente, na simplicidade de uma língua total e pura. O resultado é quase terrível. Ele acredita ter descoberto nas duas línguas um pacto tão profundo, uma harmonia tão fundamental, capaz de substituir o seu sentido ou capaz de fazer do hiato que se abre entre elas a origem de um novo sentido. O efeito é tão poderoso que se compreende a risada fria de Goethe. Do que ria Goethe? De um homem que não era mais nem poeta, nem tradutor, mas que se encaminhava arrojadamente em direção ao centro em que acreditava encontrar reunido o puro poder de unificação, tanto que poderia dar um sentido para além de todo sentido determinado e limitado. Podemos entender que essa tentação tenha sido provocada em Hölderlin pela tradução; porque o homem pronto a traduzir está numa intimidade constante, perigosa, exemplar, com o poder unificador da obra em toda relação prática, igualmente como em toda linguagem, colocando-o, ao mesmo tempo, na pura cisão inicial. É dessa familiaridade que ele traz o direito de ser, entre os escritores, o mais orgulhoso ou o mais secreto – com a convicção de que traduzir, no final das contas, é loucura.

 

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BLANCHOT, Maurice. “Traduire”, In: L’amitiéTradução do ensaio de Davi Pessoa Carneiro. Paris: Editions Gallimard, 1971, pp. 69-73.

[1] [Ésquilo, Sete contra Tebas, vv.78-79].

 

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