Trunfo de Antonio Candido foi aproximar literatura e sociedade, por Carlos Berriel

 

RESUMO Professor da Unicamp repassa linhas de força do pensamento de Antonio Candido (1918-2017) sobre a constituição de uma identidade literária brasileira. Autor lembra que sistema teórico estabelecido pelo crítico incorporava contribuições da história e da sociologia na busca de um “específico nacional” indelével.

Antonio Candido em Bofete (SP), em janeiro de 1948

 

Carlos Berriel

da Folha

 

Antonio Candido foi, como todos sabem, um notável crítico e historiador de literatura, um currículo suficiente para preencher com dignidade toda uma existência. Mas excedeu essa condição, pois foi membro de uma geração de intelectuais que alterou o modo de investigação e análise dos fenômenos culturais, além de criar instituições e animar gerações de pesquisadores. Avaliar a área de sua sombra de influência não é fácil.

A chave para compreender o sentido de sua obra está, suponho, no seu método crítico. Candido e utilizava uma visão integrada da história, juntava com rigor literatura e sociedade, uma prática que obriga à junção dos vários campos do conhecimento da realidade histórica. Era avesso à compreensão da história em migalhas, tornada moda mais tarde.

Segundo a concepção de Candido, interessam para a compreensão de uma obra literária ou artística as circunstâncias históricas de sua composição. Assim, as obras e seus gêneros dependem de um quadro geral, societário; não são produzidas a esmo.

Uma tragédia grega, por exemplo, só pôde ser composta na atmosfera da pólis antiga, na cultura ática. Dê a qualquer pessoa papel e caneta, e ela jamais escreverá uma tragédia ática –a não ser como peça de lamentável kitsch ou “ersatz”. O que o impede? A sociedade e suas determinações literárias.

Isso não significa aceitar a tese de uma determinação mecânica da sociedade sobre a literatura, mas algo bem diverso: a obra literária é produto de uma individualidade humana, composta de atos subjetivos, mas esse indivíduo não existe num vácuo conceitual, como a mente cartesiana ao fim do processo ideal de cancelamento do mundo real. A individualidade é, essencialmente, resultado sempre singular de uma miríade de determinações do mundo real.

Candido, ao mesmo tempo em que aceitava as influências extraliterárias sobre a literatura, pressupunha que, no sentido inverso, os construtos culturais exerciam concretas determinações sobre a vida social como um todo, compondo um conjunto de conceitos ideais que dão forma, sentido e razão às práticas sociais em geral.

CONDIÇÃO COLONIAL

Esse pressuposto organiza suas obras, notadamente “Formação da Literatura Brasileira – Momentos Decisivos” (1959), em que Candido expõe o processo de formação de uma sensibilidade literária, de uma prática de observação e de formalização não condizente por inteiro com o que se produzia nos centros hegemônicos, mas que traduzia nossa condição de colônia.

O que ele buscava era a captação de nossa especificidade, dos sintomas estéticos de uma nacionalidade em processo de construção e de autonomização expressional. Efetivamente, a literatura brasileira já estaria formada, já teria completado sua gestação, possibilitando a exuberância que se observa a partir de Machado de Assis –ele mesmo herdeiro desse sistema literário já adulto.

Roberto Schwarz, em texto já clássico sobre o ensaio de Candido a respeito de “Memórias de um Sargento de Milícias”, buscou expor os pressupostos da “dialética da malandragem”, conceito central desse estudo.

Para Candido, o personagem central, Leonardo, não poderia ser um pícaro, próprio do romance picaresco, porque faltavam ao Brasil as condições essenciais para a composição desse gênero.

O movimento dos personagens picarescos só poderia se dar numa sociedade cujos estamentos tradicionais estivessem em decomposição, cruz e coroa contorcendo-se com a entrada do ouro fácil advindo das colônias de exploração. Era, portanto, gênero específico de metrópoles como Espanha e Portugal, e um pouco de França e Inglaterra. Jamais de uma colônia, ela sim exportadora desse ouro.

Se a Espanha possuía uma sociedade com resquícios medievais e simultaneamente uma nova elite em ascensão, o Brasil de Manuel Antônio de Almeida desconhecia tradição e mobilidade social. Faleciam as condições históricas para que pudéssemos produzir pícaros.

MALANDRO

Não tendo pícaros, produzíamos um malandro original, evidenciando uma matriz literária nova sob o sol das letras. Certo, partimos de um tronco literário comum com a Europa, mas importa localizar nossa particularidade. A leitura dos estudos de Candido permite ver –para surpresa de muitos– que o Brasil faz sentido.

A exigência feita pelo crítico de que os estudos literários busquem determinar o específico nacional vem em conexão com sua rejeição a universais abstratos, cujo uso impede de identificar o que é propriamente nacional nas obras literárias.

Assim, a simples classificação de um romance brasileiro dentro desse gênero não basta: é preciso apurar o quanto a obra tem do específico nacional em sua forma. Importa detectar a constituição tão gradual quanto irregular da nacionalidade.

Da mesma forma, Antonio Candido considerava como menor a análise literária marcada por um particularismo cego e mudo para as determinações sociais implícitas, para a complexidade histórica sintetizada na obra, ou seja, fechada num formalismo raso.

Alguns críticos de seu método julgaram haver ali uma teleologia ingênua. Para eles, é como se Candido sugerisse que o poeta árcade Claudio Manuel da Costa (1729-89) sabia que sua obra desaguaria em Machado de Assis (1839-1908).

Para Candido, pelo contrário, teria sido Machado que incorporou elementos de formalização literária já em germe nos objetos da poesia do arcadismo mineiro. Ou seja, é a leitura e a análise posterior que permite identificar traços comuns, que vão se intensificando e permitindo ver uma linha evolutiva problemática a conectar autores e obras.

IRRADIAÇÃO TEÓRICA

Isso permite, então, que o pensamento de Candido seja usado em vários campos da interpretação do Brasil. Sua teoria sobre a literatura nacional possui tal alcance que convida os demais campos da crítica cultural a acertar o passo com ela.

Candido, é claro, não trabalhou sozinho: em 1941, participou da fundação da revista “Clima”, em companhia de Paulo Emílio Sales Gomes, Décio de Almeida Prado, Ruy Coelho, Gilda de Mello e Souza e Lourival Gomes Machado –os “chato-boys”. Havia certamente muitos pontos em comum nas indagações desse “dream team” da crítica, e as influências foram recíprocas e profundas.

Sales Gomes esteve para o cinema brasileiro como Candido para a literatura nacional. Seu ensaio “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento” (1973), no qual recapitula a formação do cinema brasileiro sob uma visada histórico-social, elevou-o a criador do ensaio cinematográfico no Brasil e guarda semelhanças com a “Formação da Literatura Brasileira”.

Ambas as obras recompõem o caminho percorrido pelas artes a que dizem respeito, estabelecendo no percurso os traços particulares de sua produção nas condições específicas do país.

Para Sales Gomes, “o cinema norte-americano, o japonês e, em geral, o europeu, nunca foram subdesenvolvidos, ao passo que o hindu, o árabe e o brasileiro nunca deixaram de ser. Em cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa […]: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento […]”.

No caso específico do cinema brasileiro, diz Sales Gomes, “nada nos é estrangeiro, pois tudo é”. Um de seus argumentos principais era de que não há uma identidade nacional já formada. Assim, toda cultura importada é aceita sem uma assimilação completa –tupis e alaúdes. Jacobinamente, o crítico defendia os valores do cinema brasileiro nos anos 1960 e 1970, quando julgava já ser real a emancipação expressional daquele.

A obra de Candido propôs questões que não foram completamente resolvidas por ele, ficaram como sugestões permanentes, problemas ásperos às vezes, e continuam à espera dos pesquisadores. A sua teoria sobre o modernismo, talvez a mais profunda e abrangente no conjunto de sua obra, colocou questões de ordem política e econômica que ele mesmo não se dispôs a resolver.

DIVISÃO NA ELITE

Pressupondo que o movimento de 1922 e a oligarquia do café possuíam um vínculo real, dispôs aos pesquisadores a necessidade de estabelecer como se dava, no concreto histórico, tal vínculo: um problema para a alçada da história econômica e para a dos partidos políticos da República Velha. Afinal, a estrutura oligárquica paulista, antes de 1922, identificava-se com as artes e as letras tradicionais –parnasianos e acadêmicos.

A resposta estaria no estabelecimento de dois segmentos oligárquicos cafeeiros divergentes, um do vale do Paraíba –arcaico e subordinado ao capital inglês– e outro, esse sim com um projeto de nação, situado ao longo da Estrada de Ferro Paulista, ocupando as terras roxas e outras terras.

Esse segundo grupo, que buscou emancipar a economia cafeicultora com a fundação de dispositivos econômicos com capital paulista –casas exportadoras, linhas de trem, política externa, jornais e partidos–, patrocinou, sob a liderança de Paulo Prado, a Semana de Arte Moderna. A emancipação econômica paulista viria com a emancipação expressional. Sem Candido, o conhecimento desses aspectos da vida econômica e política não viria à tona tão cedo.

Lendo o cientista social que está em “Os Parceiros do Rio Bonito – Estudo sobre o Caipira Paulista e a Transformação dos Seus Meios de Vida” (1964), observamos que Candido adianta várias questões até hoje centrais.

A cultura caipira não mais existe –como todas as formas de cultura popular que já houve no país. A população que a praticava foi devastada pela industrialização e pela modernização falhada do Brasil, que destruiu a vida do camponês sem lhe dar, em troca, a cidadania. Tirou-lhe o campo e não lhe deu a cidade, mas sim a sub urbe, a periferia. Arrasou-lhe a cultura popular e não lhe deu a urbana –Einstein, Freud, Marx, escolas, direitos–, mas sim a brutalidade da cultura de massas estupidificante.

Pasolini, aliás, veio mais tarde a se interessar por idêntica problemática, vendo na cultura de massa a destruição tanto da cultura erudita quanto da popular. O que explica muitas coisas dos caóticos dias que vivemos.

A ideia de uma nação brasileira existente nas letras, telas e partituras, mas não no Estado, pode ser uma chave para entender Antonio Candido, homem e obra. Sua ação crítica deslocou-se da velha e perene máquina de escrever para a rua, e de lá sempre retornou. Ida e volta, sempre.

Este foi grande homem, e este é um grande dia para escrever sobre ele.

CARLOS BERRIEL, 64, professor livre-docente de teoria literária da Unicamp, é fundador e editor da revista “Morus – Utopia e Renascimento”. 

Redação

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