Um passeio pela história romana a convite do COVID-19, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A relação entre a morte e o lucro é uma evidência bastante eloquente de que o capitalismo não pode cumprir suas promessas

O presidente do Banco Central Brasileiro acredita que reduzir o número de mortes por causa da pandemia causará danos à economia. Donald Trump usou o Twitter para comemorar os bons resultados da Bolsa de Valores justamente quando a letalidade do COVID-19 aumentava nos EUA.

A mão macabra do mercado não tem qualquer prudência. Ela é capaz de aumentar e de consolidar lucros financeiros justamente quando as valas comuns devoram mais cadáveres norte-americanos. Se levarmos em conta o que disse o presidente do BC algo semelhante ocorrerá no Brasil. Isso explica o desejo mórbido insano de Jair Bolsonaro de interromper o isolamento social para aumentar a letalidade da pandemia.

Essa relação entre a morte e o lucro é uma evidência bastante eloquente de que o capitalismo não pode cumprir suas promessas. Ela promete uma vida de abundância. O problema é que os mortos não podem consumir nada. Eles são apenas consumidos pelos vermes e quimicamente degradados pela terra.

Durante um século os comunistas foram acusados de ter criado uma religião sem Deus cujo propósito seria espalhar a guerra, a fome e a morte. A lucratividade financeira provocada pelo aumento do número de vítimas da pandemia nos EUA prova que o capitalismo se transformou num culto fúnebre capaz de sacrificar seus fiéis no altar do deus mercado.

Já que a economia capitalista frustrou suas promessas ao se igualar ao comunismo funerário stalinista e maoista nada melhor do que estudar um período de relativa tranquilidade econômica. Refiro-me obviamente à Pax Romana.

“O estudo das crises financeiras não pode ser conduzido com os métodos caros aos historiadores das épocas recentes, mas ele deu lugar a numerosos trabalhos: ao período de abundância monetária dos primeiros decênios do reinado de Augusto sucedeu, a partir de 10 aC aproximadamente, um longo período de deflação e de dinheiro raro e caro, que resultou na crise financeira de 33, para cuja solução Tibério empenhou as reservas do tesouro. Como se viu, é difícil seguir as consequências da desvalorização neroniana. Não houve crise financeira real sob Domiciano, cuja moeda foi excelente, e as dificuldades do reinado de Nerva permanecem obscuras. O ouro dos dácios, é sabido, veio ‘desencalhar’ Trajano, que gastou sem conta para as suas construções e guerra pártida, numa medida tal que a política defensiva de Adriano veio a ser inspirada, pelo menos em parte, por algumas razões financeiras. Finalmente, existe o costume de fazer começar com as guerras sofridas por Marco Aurélio uma crise que as extravagâncias de Cômodo teriam agravado, mas as coisas não são assim tão simples: Cômodo não só não aumentou os soldos militares, como acreditou durante muito tempo ( e ainda se repete às vezes), mas ainda Th. Pekary mostrou que não há crise financeira em seu reinado. Deste ponto de vista, o corte se coloca sob Sétimo Severo que, em 195, de novo e sensivelmente desvalorizou o denário. Os estudos propriamente monetários nos convidam a rever nossas idéias sobre a ‘crise’ do Império romano.” (Pax Romana, Paul Petit, Edusp, São Paulo, 1989, p. 265)

A economia romana não era tão sofisticada. Portanto, podemos supor que ela também não podia ser tão desequilibrada quanto a nossa. Se não era maior, o equilíbrio entre a economia financeira e a produção e circulação de mercadorias era um fato decorrente pela realidade (ou talvez um objetivo a ser alcançado pela mão do imperador).

“O problema essencial é, como sempre, o peso real da fiscalidade e de suas incidências na vida econômica. Para um contribuinte moderno habituado a uma forte pressão fiscal [essa observação era verdadeira quando o livro foi escrito; desde os anos 1980 o neoliberalismo reduz a pressão fiscal sobre os ricos], os impostos antigos podem parecer leves, sobretudo aqueles que pesam sobre os cidadãos romanos, 5% sobre as sucessões, 2,5 ou 5% sobre as alfândegas, e é verdade que não começam realmente as queixas senão a partir dos Severos e principalmente no século IV. Os impostos praticamente não aumentaram entre Augusto e os SEveros (ou seja, durante 200 anos) e vêem-se imperadores mudando a política (Adriano depois de Trajano) ou fazendo economias (Tibério ou Marco Aurélio) e vez de ‘darem um aperto na tarraxa fiscal’. Mas não se daria o caso de eles considerarem a carga já pesada? A solução do problema deve ser investigada pelo estudo da produtividade e dos rendimentos antigos, numa palavra, daquilo que nós chamamos de renda nacional. Parece-nos certo, embora não demonstrável, que em relação a uma renda nacional muito baixa, por algumas razões que veremos mais adiante, a fiscalidade do Alto-Império não era desprezível, tanto mais que ela é desigualmente repartida, e que o imposto direto pesa sobre os trabalhadores rurais que, ainda por cima, alimentam seus amos e patronos. Atualmente se está na incapacidade de responder a três questões fundamentais: 1o. Influência da fiscalidade sobre a produção e sua rentabilidade; 2o. Influência dos portoria sobre as trocas internas e externas; 3o. Repercussões diretas sobre o nível de vida dos pobres. Talvez seja por falta de documentação que não atribuímos à fiscalidade um papel decisivo na evolução econômica do Império.” (Pax Romana, Paul Petit, Edusp, São Paulo, 1989, p. 262)

Para intervir direta ou indiretamente na economia, o Estado romano tinha que arrecadar impostos de seus cidadãos e das províncias tributárias.

“A administração financeira é imperfeitamente conhecida: o velho aerariun Saturni coloca seus problemas; será alimentado só pelas províncias senatoriais ou também por determinados rendimentos das províncias imperiais, e que acontecerá com o imperador, que de um lado dele retira e de outro alimenta? O fiscus é ainda pior conhecido; é preciso abandonar a antiga concepção de uma caixa criada com todas as suas peças por Augusto; ele quase não aparece antes de Cláudio, e permanece em parte teórico, se for verdade que as sobras dos fisci provinciais não eram nele regularmente depositadas; qual a relação entre o fiscus e o cofre pessoal do príncipe? A origem e a evolução do patrimonium são igualmente obscuras. No que tange ao pessoal encarregado da administração financeira e da arrecadação de impostos, as grandes linhas estão averiguadas: os magistrados são substituídos por prefeitos (aerarium), os libertos suplantados por procuradores equestres, a arrecadação passa para os conductores, depois no século II para procuradores, em administração direta, mas não para todas as taxas (portoria); a arrecadação de impostos diretos é sensivelmente melhorada por Augusto – redução dos impostos de cotidade (dízimos) em proveito dos impostos de repartição -, cada vez mais confiada, porém, aos senadores municipais, cuja posição se tornará insustentável entre as recriminações dos contribuintes e a pressão dos procuradores. No detalhe, é preciso dizer realmente, como M. Rostovtzeff, aprovado ainda recentemente por J. Gagé, que estamos aqui num setor particularmente desconhecido.” (Pax Romana, Paul Petit, Edusp, São Paulo, 1989, p. 261/262)

O império da “mão invisível do mercado” era algo inconcebível para os romanos. O abastecimento das cidades era indispensável e devia ser um objeto de preocupação constante do do imperador. Surtos de fome podiam acarretar o rompimento da paz social. A expansão territorial do império era uma necessidade econômica, pois garantia o acesso a novas minas de metais preciosos, acrescentava escravos à mão de obra, possibilita a exploração de novas terras agricultáveis e acrescentava províncias tributárias à Roma.

“Mesmo desprovido de doutrina, o Estado intervém por força dos acontecimentos em certos domínios, que não são estranhos à vida econômica. Podem se distinguir em primeiro lugar os trabalhos de equipamento: a construção das estradas, tão frequentemente exaltada, responde a maior parte das vezes a objetivos estratégicos e é confiada geralmente aos soldados na Gália com Agripa, entre 16 e 13 aC, na Dalmácia-Panônia rebelada ao longo do Reno e Danúbio por Cláudio, na Ásia Menor pelos Flávios. Ela teve fatalmente consequências econômicas. Se o estudo técnico dos processos de construção prossegue, o essencial continua sendo ainda hoje a reconstituição do pormenor das malhas, que ajuda muitíssimo a compreender a valorização das províncias.” (Pax Romana, Paul Petit, Edusp, São Paulo, 1989, p. 258)

Em relação às guerras, as estimativas de mortes feitas pelos historiadores antigos não são muito confiáveis. No caso específico dos romanos, salvo duas exceções bem conhecidas (a devastação de Cartago e a de Jerusalém) predominava o pragmatismo. Roma preferia impor sua autoridade sobre os povos derrotados para poder auferir os benefícios econômicos da conquista. Quando não eram reduzidos à condição de escravos, os conquistados eram romanizados e seus descendentes podiam se tornar cidadãos romanos. Vários imperadores romanos são oriundos das províncias.

O império romano tinha lá seus defeitos (exploração da escravidão, hierarquia social muito rígida, gosto por combates sangrentos de gladiadores, etc…), mas também tinha virtudes (tolerância religiosa, devoção ao aperfeiçoamento do Direito, amor pela arte, etc). De maneira geral, os romanos não eram genocidas. O único genocídio intencional dentro do império romano é aquele que ocorreu quando da violenta rebelião dos escravos comandados por Espártaco.

Os norte-americanos são descendentes de bárbaros que viviam fora do Império Romano. Mesmo assim eles adotaram vários símbolos romanos (arquitetura monumental em Washington, triunfos após vitórias militares, a águia imperial, etc…). O brasileiros, pobrezinhos, têm cultivado a flor do Lácio há quinhentos anos. No momento em que escrevo essas palavras, a semelhança entre Roma, EUA e Brasil estão deixando de existir.

Roma tinha consciência de sua importância e de sua missão civilizatória. Apesar de suas crueldades, o império romano não poupava recursos econômicos para para proteger seus cidadãos e para resgatar os outros povos da barbárie. Trump e Bolsonaro são bárbaros que acreditam que a tarefa deles é garantir a maximização dos lucros financeiros permitindo à pandemia do COVID-19 matar a maior quantidade de norte-americanos e brasileiros?

Entre os romanos, os abusos imperiais eram considerados inadmissíveis e quase sempre provocavam reações violentas. Nero e Calígula foram assassinados em razão de não terem respeitado o direito à vida dos cidadãos de Roma.

A longevidade pacífica de norte-americanos e brasileiros livres pode ser considerada tão imperdoável quanto uma violenta rebelião de escravos romanos? Quantos cadáveres mais serão necessários para nós começarmos a perceber que precisamos resgatar a dignidade humana dos nossos pais e avós?

Fábio de Oliveira Ribeiro

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