A guerra é a economia por outros meios, por Raquel Varela

O neoliberalismo é isto, Estado econômico máximo, garantido pelas dívidas “públicas”, Estado social mínimo para as pagar. E agora Estado militar

do A Terra É Redonda

A guerra é a economia por outros meios

por Raquel Varela

A entrada formal da OTAN nesta guerra implicaria o começo de uma terceira guerra mundial, em que não só não seriam salvos os ucranianos, como morreriam milhões de pessoas: uma catástrofe. Quem olha com desdém ou como ingénuos os internacionalistas que, como eu, se opõem a Vladimir Putin, à União Europeia e à OTAN, defendendo a solidariedade entre os povos, quem acha que a OTAN é uma solução, está, de fato, queira ou não, a defender uma chacina mundial. Por isso devemos exigir que os nossos Estados não enviem tropas nem armamento nem decretem sanções – são atos de guerra que só levianamente e com total desconhecimento da história da Europa se podem apoiar.

O significado das sanções: empobrecimento geral dos trabalhadores no mundo

As sanções econômicas são uma arma de guerra que empobrece os povos. Abatem-se sobre todo o povo russo, ucraniano e europeu, penalizam as oposições na Rússia, castigam o povo ucraniano que aí vive – dois milhões; punem aqueles que na Europa lutam pela paz. Ajudarão, quiçá, a reforçar o nacionalismo grão-russo e a liderança de Vladimir Putin. O papel das sanções, bem como a anunciada venda de armas da União Europeia à Ucrânia têm um significado político central que pouco tem a ver com a ajuda humanitária ou a preocupação por parte da União Europeia com regimes autoritários, os apregoados “valores europeus” (que na Palestina, na Arábia Saudita, na Líbia, na Síria, na Polónia e na Hungria são metidos na gaveta e desaparecem amiúde dos media). As sanções são um sinal claro de que a União Europeia, dirigida pela Alemanha e sob a égide da OTAN, entrou indiretamente nesta guerra, e nós não fomos consultados.

A Rússia não é o Irã. Estima-se que as sanções impliquem uma contração de 11% do PIB na Rússia e de quase 1% no mundo, sendo que a massa de capitais ardidos acaba por ser maior a nível mundial – uma contração de 11% na Rússia é uma quebra de 150 mil milhões de dólares; de 1% no mundo são 750 mil milhões. O capital arde na fogueira da geoeconomia… Destroem empresas pequenas, aumenta a venda de armas; não há pão, sobram canhões. Uns choram, outros vendem lenços.

Esta contração implicou já que o preço do trigo subiu 50% e o barril de petróleo supera os 110 dólares. Num quadro de ausência de lutas do mundo do trabalho isto significa fome, devastadora nos países periféricos. E queda geral dos salários na Europa Ocidental.

As sanções não são boicotes organizados pelos trabalhadores da produção ou da cultura, e com alvos específicos. Como o seriam uma greve nas fábricas de armamento, ou se os estivadores ou os camionistas se recusassem a carregar armamento para a guerra, ou um grupo recusar-se a cantar na Rússia. Vieram atreladas ainda à censura, de jornalistas, de filmes e até de livros.

Guerra e economia ou economia de guerra

O capitalismo implica uma luta entre patrões e trabalhadores. Mesmo quando não se expressa em greves ou revoluções, exprime-se no dia a dia na luta pelos contratos, ou contra a exaustão laboral. Mas também implica uma luta entre empresas, corporações. E entre Estados que defendem as suas empresas. Ao contrário do que afirmavam os teóricos da globalização, os Estados não perderam força face a um panfletário “capital sem rosto”. Nesta competição doentia que arrasta toda a sociedade, impedindo a cooperação, os Estados são o instrumento fundamental quando a guerra passa a ser a economia por outros meios.

As sanções deixaram de fora 70% das exportações russas – petróleo, gás e combustíveis – de que depende a indústria alemã; são uma forma de expropriação dos bilionários russos (ontem eram “empresários” bons para investir, agora são “oligarcas” a expropriar). A suspensão do código Swift tem um efeito na Rússia – empurrá-la para fora da Europa (a Rússia é parte da Europa!) para uma aliança com a China –, o que encaixa com a visão expansionista da OTAN, que desenvolve no mar da China, com a Austrália, um cerco militar à China, semelhante ao que desenvolve na Europa de Leste com a expansão da OTAN. Os EUA acabaram de aprovar o maior orçamento militar da sua história (US $778 mil milhões), e só a duplicação do orçamento militar alemão anunciado (mais 50 mil milhões) coloca a Alemanha com mais investimento militar do que o orçamento militar russo total (60 mil milhões).

Ironia previsível da história: sob o governo mais “verde” da Alemanha anuncia-se na União Europeia a energia nuclear como verde (ficou claro agora que enquanto houver guerras a energia nuclear é uma ameaça à humanidade) e a remilitarização do país condutor da União Europeia. A restruturação produtiva (“transição verde”) “para fazer face à crise de 2008, a ser levada até ao fim, implicaria a implosão dos direitos conseguidos pelos trabalhadores, do Estado social, a pretexto dos subsídios públicos às “energias limpas”, que – mesmo com externalização da parte suja para outros países – seriam insustentáveis. É neste quadro que, segundo vários pensadores alemães, surge a remilitarização da Alemanha – restruturação verde se possível, militar se necessário.

Uma Ucrânia entre os EUA, a União Europeia e a Rússia

A história é a chave da compreensão do mundo. Mas o segredo desta chave, desde a revolução industrial, é a teoria do valor-trabalho. A Ucrânia tem um governo neoliberal, com uma das populações mais pobres da Europa, onde se aplicaram as receitas do FMI (onde estão à mesma mesa EUA e Rússia). A Ucrânia perdeu 8 milhões de pessoas em dez anos para o exílio económico (emigrantes). Tem um PIB anêmico, porque é um país com 14% da população na agricultura, pequenos camponeses, e com a região industrial da bacia do Donbass em guerra civil, da qual fugiam investidores. A Ucrânia tem umas das terras mais produtivas do mundo (1/4 das terras negras do mundo), e, até 2020, era proibida a venda dessa propriedade, o que mudou então com Volodymyr Zelensky. Está em marcha um megaprocesso de venda e concentração de propriedade dessas terras superprodutivas.

A Ucrânia, que aprovou uma legislação que impõe o ucraniano como língua, num país bilíngue, também tem os seus “oligarcas” e o Governo é cúmplice da extrema direita – a Ucrânia é a base de treino militar europeu da extrema direita. Ao lado está a Polônia, cujo governo, apoiado pela extrema-direita, recebe agora o apoio militar da União Europeia e da OTAN, e que anunciou há dois meses a construção de um muro contra os refugiados. Pouco antes tinha-se aí realizado a conferência europeia da extrema direita.

Nada disto autoriza a conclusão de que a Rússia está em mera autodefesa ou a “desnazificar” a Ucrânia. A proteção dos russos de Donetsk e Lugantsk foi apenas uma desculpa perfeita e ansiada pelo Estado russo. Este vê-se a braços com a ameaça da sua própria desintegração e diminuição da sua área de influência. Acabou de esmagar, com a felicitação pública dos EUA, a revolta popular do Cazaquistão – no Ocidente chamaram-lhe “pacificação”. O Estado russo convive bem com a sua própria extrema direita, que em Moscou não é perseguida, ao contrário dos ativistas anti-guerra.

Não existe paz na guerra

Os impérios são antigos, mas o imperialismo é novo. Nasceu na época contemporânea em que o capitalismo passou de concorrencial a monopolista, no fim do século XIX, quando todos os espaços da Terra tinham sido conquistados e divididos – a partir da divisão colonial no congresso de Berlim de 1885 –, e tudo culminou na Primeira Guerra Mundial, que “ia acabar no Natal” e durou quatro anos. Até a Revolução Russa lhe ter posto termo. Imperialismo quer dizer que um capitalismo não pode sobreviver sem avançar sobre o outro.

Os que apoiam Putin, de um lado, ou a OTAN, de outro, vivem segundo o modelo da Guerra Fria, acreditam que revoluções são uma miragem ou contraproducentes, e que por isso a ameaça permanente da guerra seria condição para a paz. Ignoram que enquanto existirem impérios, dois, três, ou um, a guerra e o terror serão a realidade porque o imperialismo implica sempre, no quadro da concorrência, o expansionismo.

À crise de 2008, às medidas de gestão da pandemia e à ascensão da China junta-se uma crônica crise de superprodução (na Idade Média as crises eram de escassez, no capitalismo são de superprodução) que dura desde a década de 1970 e que foi sendo matizada com o brutal crescimento das dívidas públicas (o fim de Bretton Woods), os investimentos estatais nas empresas e a abertura do mercado chinês, que duplicou a força de trabalho à escala mundial. O neoliberalismo é isto, Estado econômico máximo, garantido pelas dívidas “públicas”, Estado social mínimo para as pagar. E agora Estado militar. Os liberais e a direita, que nunca saíram à rua por um direito trabalhista ou social, foram os primeiros a fazer rufar os tambores da guerra, pedindo a intervenção da OTAN.

Quando entre 2008 e 2012 estive, com vários colegas do mundo inteiro, em conferências de análise da crise (algumas na Alemanha), e dizíamos que a única forma de transformar o dinheiro impresso em 2008 em capital era com uma produção militar à escala de uma guerra mundial, éramos olhados como extraterrestres. A guerra e as revoluções aceleram a história – hoje estamos à beira de uma guerra mundial, e todos acham normal pronunciar-se a mais sórdida de todas as expressões: guerra mundial.

Erradicar a fome com uma economia planificada e dirigida às necessidades custaria ao mundo 45 mil milhões de dólares/ano, metade do que a Alemanha vai investir agora em armamento. Não foi Franklin D. Roosevelt que terminou com a crise de 1929. As taxas de desemprego de 1929 só foram revertidas na totalidade quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, em 1941. Foi a economia de guerra, ou seja, transformar desempregados em soldados, forças produtivas em fábricas de máquinas de destruição, que reverteu a crise de acumulação. Em 1937 o New Deal passou a War Deal, cortaram-se 800 milhões de dólares ao seguro social e aos trabalhos públicos, e aumentaram-se os gastos militares, que cresceram 400 milhões de dólares em 1939.

No meio desta imensa complexidade o essencial é isto. Nenhuma liberdade chegará na boleia de um tanque, russo, alemão ou americano. Foi assim em 1956 na Hungria, em 1968 em Praga, foi assim no Afeganistão e na Líbia, é assim na Palestina. É assim hoje na Ucrânia. Enquanto aceitarmos que os Estados são os únicos atores da história e não entrarem em cena as resistências populares e de trabalhadores, o que teremos é mais guerras. Os Estados são os responsáveis, não as populações.

*Raquel Varelahistoriadora, é pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa. Autora, entre outros livros, de Breve História da Europa (Bertrand).

Publicado originalmente no Jornal N.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

3 Comentários

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  1. Realmentes as guerras empregam muita gente, e destroe economias por um lado e
    constroe do outro; além, é claro de destruir o que é para depois construir e também
    tristemente diminue a população.

  2. ”…Quem olha com desdém ou como ingênuos os internacionalistas que, como eu, se opõem a Vladimir Putin, à União Europeia e à OTAN, defendendo a solidariedade entre os povos…Por isso devemos exigir que os nossos Estados não enviem tropas nem armamento nem decretem sanções…”

    Não existem Estados. Estados são fachadas para o binômio Bancos/Corporações. E este binômio representa o verdadeiro – e único – internacionalismo que tem eficácia prática, neste mundo. E o olhar que este binômio lança, sobre os “internacionalistas” que ainda se expressam por demandas (ou súplicas) de solidariedade entre os povos e exigências pacifistas aos “Estados”, não desdenham nem lhes atribuem ingenuidade; o binômio não lhes dirige o olhar, simplesmente. São como uma pequena comichão, numa parte recôndita do corpo, que eles coçam sem sequer precisar enxergar onde está.

    Considerações de ordem moral – solidariedade e respeito à integridade física dos outros, inclusive – simplesmente não fazem parte da constituição orgânica do binômio. A realidade do binômio é uma só; e é, ao mesmo tempo, seu motto, sua razão de ser, seu sangue e seu oxigênio: LUCRO ACIMA DE TUDO. Para regular questiúnculas insignificantes, e sobretudo não lucrativas, tais como a moral, a solidariedade entre os povos, e a sobrevivência da massa de explorados que compõe a maioria absoluta da população do planeta, eles usam o Estado – para o qual “contribuem” fornecendo-lhes (ou, em alguns casos, patrocinando) a camada dirigente, legislativa, e judiciária. O binômio tem coisa mais importante de que se ocupar: LUCROS.

    São inúteis (e eu mesmo, até pouco tempo, estava embrenhado nelas) essas elucubrações e ilações sobre a guerra ser a continuação da política por outros meios. A guerra não continua nada; é só um estágio necessário – sim, necessário – e passageiro, na única busca incessante do binômio: a busca pelo lucro. E a política é apenas o ajuste dinâmico entre quem vai lucrar o quê, de que forma, e onde. Quando esse ajuste desanda, ou desagrada uma das partes, aí temos a guerra. Como de hábito na história da humanidade, o(s) mais forte(s) vence(m), e começa uma nova rodada do jogo. Todos os participantes recolhem seus ganhos e perdas; uns ganham novos mercados, outros um alívio significativo na sua folha de previdência. As corporações, como um tumor, aumentam de tamanho, devorando células mais modestas; esse câncer mata incessantemente, mas, graças, entre outras coisas, ao avanço da tecnologia, não morre nunca. Os bancos, cevados eternamente nessa roda, também vão devorando seus pares “menos favorecidos” (sim, eles também existem, do lado de lá, e necessitam desses eufemismos para contabilização nos livros maiores), também são seu próprio câncer, o bom câncer, que só mata, e não morre nunca. E a moeda de toda esta movimentação, deste balanço de ganhos e perdas é o ser humano – moeda em perpétua emissão, mas que inflaciona, e por isso, de tempos em tempos, é preciso cortar três zeros dela.

    Mas as loucuras e os crimes das nacionalidades não nos levarão – assim espero – ao nada atômico. Nos levarão onde sempre levaram: à mesa de negociações. Na gigantesca sala onde está essa mesa, nos reservam um lugar bem afastado, onde quase não dá para se ver nada – e onde ficamos, até que a claque nos indique o momento de aplaudir e retirar-se. “Estadistas” fora, segundos fora, apagam-se as luzes, para que não se veja o trabalho de limpeza a ser executado: debaixo da mesa, milhares, milhões de cadáveres. Ucranianos, dessa vez.

    Quem move o mundo – bancos/corporações – move-se em busca de lucro. Já perdi a esperança de que o homem comum, cuja informação vem, em grande parte, de acólitos do binômio, se dê conta disso, algum dia. Vão nos anestesiando, com as grandes lições da solidariedade entre os povos, da ética no poder, com a eterna busca por sonhos impossíveis, enquanto se apropriam, um por um, de todos os sonhos possíveis.

    A nós, o pesadelo.

  3. A verdade dói. A verdade é doce quando mastigamos, porém amarga quando engolimos. A CLASSE DOMINANTE NÃO PRECISA MAIS DE MÃO DE OBRA. Em termos marxistas e mandelistas, a mais valia absoluta é a soma de todas as mais valia relativas. Esse montante absoluto é NEGATIVO. O capitalismo não acabou AINDA, mas a tendência dominante é a destruição da principal força produtiva da economia que é o ser humano. A economia é a política concentrada ou poderia dizer também que a guerra é a luta de classes por outros meios. Mas ainda, não é o fim. Em 22 de março de 2022 as Geórgia Guidestones comemoram 42 anos. VP em seu discurso antes da invasão afirmou “se uma luta é inevitável, você deve atacar primeiro ”. No site The Saker Em inglês claro , isso significa que se o russo chegar à conclusão de que os EUA estão engajados em uma operação do tipo “Desert Shield” (afirmar ser apenas defensiva enquanto se prepara por meses para uma invasão terrestre em grande escala), então você pode ter certeza de que a Rússia atacará aeroportos, portos marítimos ou qualquer outra instalação da UE usada para preparar um ataque à Rússia .
    De fato, se os EUA/OTAN decidirem atacar a Rússia, este será o fim final, nuclear, para a civilização ocidental como tal.Agora está nas mãos das elites dominantes dos EUA.”

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