Acolher os fracassados da sociedade, por Daniel Gorte-Dalmoro

Muito se tem dito que o avanço dos evangélicos se deu por conta da recusa da igreja católica de João Paulo II em acolher os pobres e os periféricos, preferindo uma cruzada ideológica (e quixotesca) contra o comunismo.

Acolher os fracassados da sociedade

por Daniel Gorte-Dalmoro

Luis Nassif costuma comentar que Olavo de Carvalho tem o dom de convencer fracassados a acreditarem que seu não-sucesso é detalhe e o culpado são os outros – daí o exército de ressentidos que o seguem e estão dispostos a destruir tudo o que foi identificado pelo guru como fator de seu fracasso, menos aquilo que de fato o é: uma sociedade calcada na concorrência desmedida e que divide as pessoas entre as de sucesso (curiosamente as capitalistas ou que estão próximas desse núcleo) e as fracassadas (que se subdivide entre as que já notaram seu fracasso e as que ainda se iludem esperando o bilhete premiado da meritocracia que cai sempre no colo dos mesmos) – usando como régua para sucesso ou fracasso capital monetário e social.

Muito se tem dito que o avanço dos evangélicos se deu por conta da recusa da igreja católica de João Paulo II em acolher os pobres e os periféricos, preferindo uma cruzada ideológica (e quixotesca) contra o comunismo. 

Há, porém, todo um espectro de evangélicos que não são das classes baixas, e que ainda não aparecem o tanto quanto deveriam nas análises. A existência desse perfil é extremamente importante para completar o discurso do “aqui se faz, aqui se ganha”: se evangélicos se restringissem apenas a pobres e periféricos, não haveria como sustentar que deus ajuda já nesta vida. Ao mesmo tempo, eles não precisam de uma educação ascética, pois já possuem algum capital, nem me parece que a justificativa moral de que sua pretensa riqueza é uma benção divina seja suficiente para a conversão: uma vez com dinheiro, ainda mais se for ganho de modo “legal” (as aspas porque nem sempre o que é legal é moral), essas pessoas não deveriam se dar ao trabalho de prestar contas a quem quer que fosse – exceção feita à receita.

Talvez o discurso de louvor da pobreza da igreja católica seja  uma explicativa para a conversão de remediados para a crença evangélica: tendo aprendido nas aulas de catequese que cobiça é pecado e a riqueza seria sua materialização, a teologia da prosperidade e afins livraria tais pessoas de assumirem a dimensão política de suas escolhas e atos, entregando os ônus que delas decorrem a um ser (pretensamente) onipotente, que aparece como fiador do que possa ter feito de mal na sua escalada social.

Há também o elemento de acolher o fracassado na sociedade e fazê-lo de algum modo um vencedor. Nas classes baixas, é fácil identificar o fracassado e fácil dar um “banho de loja” (literalmente) que faz com que ele construa para si próprio uma manjada autonarrativa do mito do herói que galgou graças a deus. Nas classes médias isso é mais difícil, já que desde o berço a herança está posta e as oportunidades, abertas. Ainda assim, é visível um perfil de fracassado a esses que a miséria financeira não aflige: são os desajustados, que não conseguem se enturmar, por não serem “normais”, e não raro acabam por sofrer bullying.

A igreja surge, então, como o lugar acolhedor, onde ele é aceito com menos violência que em outros grupos, que o estimula a se moldar ao “jeito certo”, com paciência com seus deslizes, e que perdoa seu passado – ainda que faça questão se sempre rememorá-lo caso questione o caminho “sugerido”. Esse processo não deixa de ser violento, de acarretar sofrimento – uma vez que não é uma aceitação de fato da pessoa, mas apenas na medida em que ela cede aos padrões impostos pela moral do grupo -, mas apresenta uma alternativa bem delineada de onde se vai chegar: a felicidade compartilhada (haja visto que a felicidade individualista do consumo já mostrou a essa classe ser uma miragem, ao menos se tida isoladamente).

É também esse tipo de pessoa que as esquerdas tem perdido na “guerra cultural” travada pelo neofascismo atual. E vai seguir perdendo, se em nome de uma pluralidade abstrata e que preza por uma pureza irreal seguir execrando quem não se encaixa no “jeito certo” de ser dissidência. A tal “cultura do cancelamento” sempre houve, mas ganhou outra dimensão com a internet, e tem servido muito mais para empurrar os desajustados para o discurso daqueles que num primeiro momento se mostram abertos a acolher os “tortos” e incompreendidos, do que para gerar uma autorreflexão em quem quer que seja (compare-se os efeitos dos muitos cancelamentos que tem ocorrido com o da chamada de atenção que Ana Maria Braga levou após falar em “racismo reverso” [https://bit.ly/30a2gxO]). 

Ou nos lembramos que todos os excluídos da sociedade – independente se por questão de classe ou por questões existenciais – foram forjados nela, e não tem por obrigação nascer sabendo e conseguindo enxergar diferente do que sempre lhes foi ensinado – na família, na igreja, na escola, na televisão, na internet -, e aprendemos a escutá-la realmente, para acolhê-las de fato, com o que é possível potencializar sua dissidência em prol de um devir que não seja um fluxograma de consumo e destruição do ambiente; ou seguiremos tentando convencer as paredes do quarto que fizemos tudo o que podíamos, enquanto lamentando impotentes o avanço do ultraliberalismo neofascista sobre todas as esferas da vida.

Daniel Gorte-Dalmoro é bacharel em filosofia e ciências sociais pela Unicamp e mestre em filosofia pela PUC-SP

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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