As crises na segurança pública brasileira

Motins de policiais militares se tornaram comuns e geram traumas nas instituições e na sociedade. Quais atores estão por trás dessas ações?

As crises na segurança pública brasileira

por Jornal GGN

A sociedade vem testemunhando desde o início da recessão brasileira, em 2014, situações típicas de uma distopia. Em uma sociedade que possui grande dificuldade de encarar o seu passado autoritário, a mitologia do “homem cordial” implodiu frente à realidade fática. A violência se manifesta de diversas formas no Brasil contemporâneo, inclusive por meio da chantagem explícita de grupos armados e que possuem força para sequestrar a República. Um debate sério e responsável sobre os caminhos democráticos da República tem que passar pelo papel do gasto público e do seu retorno social para o desenvolvimento do Brasil.

Reformas de desmonte do Estado social almejado pela Constituição Cidadã (1988) que são discutidas desde o impeachment, em 2016, no Congresso, precisam contornar quem tem poder de veto. Incentivos fiscais federais são estimados em R$ 330,61 bilhões para 2020. Nas unidades federativas constam outras renúncias fiscais para empresários que carecem de transparência e avaliação. A reforma no Sistema S, por exemplo, que previa um corte de 44% nos recursos destinados, não avançou. A ideia era redirecionar os recursos para o Bolsa Família, um programa avaliado como eficaz no combate à pobreza extrema. Saúde e educação também possuem elevados multiplicadores de bem-estar social. O combate à sonegação fiscal anual, avaliada em 10% do PIB pelo Sonegômetro, poderia ser intensificado em um governo de retórica tão preocupada com a corrupção. No entanto, persiste a marcha da insensatez pelo aprofundamento do neoliberalismo, mesmo com o avanço da precarização no mercado de trabalho brasileiro. Os ajustes fiscais estaduais pró-cíclicos estressaram o contexto social nas unidades federativas a partir de 2015. Nesse ciclo, o Espírito Santo enfrentou um motim policial em fevereiro de 2017. 

O caminho reformista do desmonte do Estado social e da austeridade fiscal permanente, defendido pelos (neo)liberais brasileiros, estressou o frágil pacto de convivência nacional e culminou, em 2018, na eleição de um governo de extrema direita. A militarização do governo federal causa preocupações entre os democratas em um cenário de avanço das atividades milicianas pelas unidades federativas. Esse avanço conta com o estímulo licencioso da Presidência da República, cuja estratégia política consiste em privilegiar as carreiras públicas armadas e jurídicas. Os bancos (“o mercado”), que continuam ganhando muito dinheiro no Brasil, não criticam o governo nesse ponto. Desejam o aprofundamento do neoliberalismo. 

Episódios mais recentes de crises na segurança pública no Espírito Santo, em Minas Gerais, na Paraíba e no Ceará apontam no sentido de riscos à ordem democrática. Motins de policiais militares se tornaram comuns e geram traumas nas instituições e na sociedade. Quais atores estão por trás dessas ações? É fundamental que sejam revelados. O Estado brasileiro possui órgãos de inteligência e tem essas informações, sabe quem são essas pessoas. Sabe do seu potencial de desestabilização da ordem institucional e das instituições. Por que não revela essas informações de interesse público? Quais interesses seguram a revelação dos nomes dessas pessoas? Medo ou conivência? O silêncio do Estado é revelador de um problema, nunca de fato enfrentado. Por questões políticas e eleitorais, o Estado vem contemporizando com as forças de segurança pública ao longo da história. Na Primeira República (1889-1930), as questões sociais eram tratadas como casos de polícia. 

Essa polícia se transformou desde então em uma espécie de guarda pretoriana da ordem vigente – política, econômica e social. Isso explica, por exemplo, a intensa participação dos órgãos de segurança estaduais na repressão exercida nas ditaduras do século XX. Fez com que homens, como Filinto Mülller e Romeu Tuma, ascendessem a cargos eletivos de primeiro nível na República, ao Senado. Müller, falecido em 1973, presidiu o Senado e o partido do governo, a Arena. Essa participação política de pessoas que integraram órgãos de segurança não é novidade na história brasileira, como também não é novidade que apresentadores de programas de rádio e/ou TV sensacionalistas ou policialescos sejam eleitos, fantasiados de justiceiros das pessoas mais vulneráveis. Esse processo foi radicalizado com a eleição de um presidente de extrema direita em 2018, na esteira da Operação Lava Jato e do impeachment de 2016.

Desde 1930, a União operou no sentido de diminuir as forças centrífugas da República. A principal força militar com a qual contou São Paulo no levante de 1932 foi a sua própria polícia. Para derrotar os paulistas, o governo Vargas teve que agregar a um exército frágil as forças policiais de outras unidades federativas. Não se deve esquecer que os governadores que apoiaram o golpe de 1964 colocaram à disposição dos golpistas suas polícias. No Rio Grande do Sul, a brigada militar é um ícone histórico da identidade do povo gaúcho. Estamos lidando com um fenômeno histórico, suas raízes são profundas e presentes em todas as unidades federativas e municípios. Isso não ocorre com as Forças Armadas, ainda que as forças auxiliares sejam as polícias estaduais. No imaginário popular, é a presença do policial que garante a sensação de segurança. O efetivo das forças policiais, em exercício ou na reserva, é muito superior ao das Forças Armadas. Apesar do elevado efetivo, a eficiência das forças policiais é, no mínimo, questionável do ponto de vista da cidadania e da democracia. O Brasil possui uma das polícias mais violentas do mundo. Essas pessoas e suas famílias constituem parcela relevante do eleitorado brasileiro. Não houve interesse e vontade em criar a Guarda Nacional na Constituinte dos anos 1980. As pressões políticas das forças estaduais de segurança venceram e passaram a impedir qualquer revisão de suas prerrogativas, o que fortaleceu politicamente os integrantes dessas forças, que passaram a eleger legisladores e executivos. 

Essas forças possuem notável capital eleitoral, articulando e defendendo posições simplórias e sanguinárias, mas de fácil entendimento e aceitação popular, apesar de a população ser a principal vítima da violência policial cotidiana. Testemunhamos o sequestro do Estado democrático pelos interesses corporativos dessas forças? A existência de uma “bancada da bala” no Congresso Nacional reflete a gravidade dessa situação nas unidades federativas. Observada com atenção, essa bancada é constituída, majoritariamente, por integrantes de forças estaduais de segurança. Os representantes das Forças Armadas eleitos não só constituem a minoria desse grupo, como não lideram.

No Brasil, foi um erro enxergar nas Forças Armadas o elemento central destruidor da ordem constitucional. Essa é uma visão simplista, uma vez que é nas unidades federativas que atuam as polícias e que são elas, na prática, as operadoras dos mais cruéis mecanismos históricos de repressão social. 

O silêncio de governadores, reféns das forças estaduais de segurança e dos seus acordos de governabilidade, e da grande imprensa, amedrontada e herdeira de concessões da ditadura, mostra o tamanho da confusão herdada do período ditatorial (1964-1985). Esse entulho autoritário recebido na Nova República não foi enfrentado pelos democratas. A conciliação política nacional se deu sobre os porões das ilicitudes praticadas na ditadura e com o enriquecimento de muitos democratas na Nova República.

Esquadrões da morte acobertados por órgãos policiais e de Estado foram um terrível legado da ditadura que durou vinte e um anos. Não devemos cometer o equívoco de tratar todos os integrantes das forças estaduais de segurança como milicianos. Isso seria um grave equívoco. O sentimento miliciano é contrario às instituições, ou seja, os milicianos corroem as instituições por dentro e com isso afetam negativamente a democracia. Atividades milicianas não são novas, porém o risco de que venham a ser naturalizadas é enorme no Brasil. Não será possível fazer um neoliberalismo radical no Brasil como a ditadura sanguinária do general Pinochet o fez no Chile, em convulsão social desde outubro de 2019. No Brasil, onde o Estado social descobre em serviços públicos, é possível esperar o avanço de atividades ilícitas, criminosas. O Rio de Janeiro seria o modelo do “Novo Brasil” a ser exportado para as outras unidades federativas? 

 

Fontes:

https://youtu.be/uE4Y9zHzh_g 

http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-11/orcamento-de-2020-preve-alta-de-r-242-bi-em-renuncias-fiscais

https://exame.abril.com.br/economia/governo-quer-corte-no-sistema-s-para-financiar-bolsa-familia/

https://exame.abril.com.br/economia/bolsa-familia-reduziu-25-da-taxa-de-extrema-pobreza-aponta-ipea/

http://www.quantocustaobrasil.com.br/

https://jornalggn.com.br/analise/da-paralisia-administrativa-capixaba-a-outra-crise-na-seguranca-publica/

https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/02/20/mais-de-300-militares-sao-investigados-por-motins-no-ceara-diz-secretario-da-seguranca.ghtml

 

Redação

3 Comentários

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  1. “No Brasil, foi um erro enxergar nas Forças Armadas o elemento central destruidor da ordem constitucional. Essa é uma visão simplista, uma vez que é nas unidades federativas que atuam as polícias e que são elas, na prática, as operadoras dos mais cruéis mecanismos históricos de repressão social”

    SQN, as polícias militares dos estados são e sempre foram subordinadas às forças armadas, e são tidas como força auxiliar de reserva do exército brasileiro.
    Elas são a “longa manus” do Estado.
    ***
    “Polícia Militar
    Ver artigo principal: Polícia Militar do Brasil
    Emblema da Polícia Militar do Brasil.

    São denominadas polícias militares no Brasil as forças de segurança pública de cada uma das unidades federativas que têm por função primordial a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública nos Estados brasileiros e no Distrito Federal (artigo 144, da Constituição Federal do Brasil de 1988). Subordinam-se, juntamente com as polícias civis estaduais, aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal (art. 144 § 6º da Constituição Federal de 1988). São forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro e integram o Sistema de Segurança Pública e Defesa Social brasileiro.Seus integrantes são chamados de militares dos Estados (artigo 42 da CRFB), assim como os membros dos Corpos de Bombeiros Militares. Cada Polícia Militar estadual é comandada por um oficial superior do posto de coronel, chamado de Comandante-Geral.[1] ”
    https://pt.wikipedia.org/wiki/For%C3%A7as_policiais_do_Brasil

    1. “…as polícias militares dos estados são e sempre foram subordinadas às forças armadas, e são tidas como força auxiliar de reserva do exército brasileiro.”
      Acho que você quis dizer desde 1969, mais especificamente desde a edição do decreto-lei 667(https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-667-2-julho-1969-374170-normaatualizada-pe.html).
      Na prática, foi esse decreto que criou a atual PM, com regime disciplinar igual aos das forças armadas e debaixo sua hierarquia. A organização e atuação das PMs antes desse decreto era bem diferente.

  2. Nassif e demais,
    Este ensaio que está acontecendo no Ceará poderia ser evaporado em menos de quatro horas. Bastaria o dono dos cachorros gritar PASSA! Ou, melhor, bastaria Bolsonaro dizer que movimentos como este não podem ser tolerados, exigindo a imediata volta à normalidade, que toda sua cainçada amotinada enfiaria o rabo entre as pernas.
    Se tem alguém com poder sobre esta cachorrada é o dono dos cachorros. Aliás, se as feras foram ao ataque é porquê alguém da família gritou PEGA!

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