Cena que dilacera, por Álvaro Nascimento

Quero ver essa elite pagar por cada banana prata, nanica ou da terra deixada para trás por minha gente.

Fernando Frazão – Agência Brasil

Cena que dilacera

por Álvaro Nascimento

A cena, que tem se reproduzido de uma forma avassaladora de tempos para cá, cada vez que se repete me dilacera mais e mais.É na fila de supermercado ou de comércio de frutas e legumes que o fato acontece. Após escolher minhas necessidades e entrar na fila do caixa, assisto alguém (em cem por cento das vezes são mulheres) acompanhar atentamente o visor digital do caixa com olhar entre apreensivo e triste.

Momento seguinte, ela passa a retirar de seu carrinho, ou já do balcão do caixa, produtos que pretendia levar, mas o dinheiro que tem não os alcança. Supérfluos? De jeito nenhum. Materiais de limpeza como sabão em barra, sabonete, pasta de dente, papel higiênico, mas também macarrão, lata de sardinha, banana… vão sendo deixados numa gôndola estrategicamente colocada antes do caixa, como se a “organização do sistema” já estivesse ciente do quanto a desigualdade bate à sua porta e providenciasse um “devido lugar” para produtos ora inalcançáveis, incluindo bananas.

Me invade um misto de sensações nos poucos minutos em que a cena transcorre diante de mim. Pena, tristeza, pulsão de solidariedade (uma única vez me ofereci para pagar o que estava sendo deixado, mas a senhora declinou educadamente), vergonha e finalmente brota-me raiva e ódio. E infelizmente são estas duas as que mais perduram.

Raiva e ódio contra uma elite que gargalha em suas reuniões com banqueiros que os tranquiliza dizendo “calma, está tudo bem”, “seus dinheiros estão seguros”; que verborragiam contra o risco de se estourar o teto de gastos sem sequer se referir ao fato de que as despesas financeiras do governo (com os bancos) estão desde sempre imunes ao tal teto; que articulam terceira via para 2022 com medo de que parcela ínfima do PIB volte a ser distribuída a quem o produz.

E antes que alguém me diga, com base em preceitos religiosos ou para meu próprio bem físico e espiritual, que raiva e ódio não são coisas bacanas de carregar, confesso que nessa altura do campeonato são elas que mais me mobilizam e fazem seguir caminho.

Quero ver essa elite pagar por cada banana prata, nanica ou da terra deixada para trás por minha gente.

E se vier a morrer sem assistir a isso, que seja. Afinal, eu estaria morto em vida se assistisse a esse tipo de cena e fizesse ar de paisagem.

Álvaro Nascimento – jornalista, Doutor em Planejamento em Saúde pelo Instituto de Medicina Social da UERJ.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

3 Comentários

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  1. Triste país, onde a maioria do povo se diz cristão, mas escolhe ser governado por quem só governa para uma elite que tem pacto com o demônio.

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