Nas eleições municipais de 2024, alguns alertas e alentos para a esquerda
por Erick Kayser
Encerrado o primeiro turno das eleições municipais de 2024 e havendo ainda 52 cidades em que a eleição se definirá no segundo turno, um balanço desta disputa eleitoral, ainda que inicial, se faz necessário. Para a esquerda, o resultado das urnas trouxe alguns alentos, frente uma conjuntura regressiva de crise democrática ainda não superada, mas também de alertas que merecem atenção.
Numa análise mais geral, olhando apenas para os números de prefeituras eleitas, a correlação de forças políticas aparentemente não sofreu grandes alterações. Partidos da direita fisiológica – chamados de forma complacente pela mídia de “centrão” –, seguem majoritários no controle de prefeituras. Uma novidade deste ano foi o MDB, depois de 20 anos, ser superado por outra legenda em total de conquistas. O ranking agora é liderado pelo PSD com 878 prefeituras eleitas no 1º turno, seguido pelo MDB com 847 e o PP com 743.
Os motivos para o predomínio desses partidos no comando da maioria dos 5.569 municípios brasileiros são bastante conhecidos e respondem a dois fatores principais. Um de ordem estrutural, que envolve mecanismos longevos de poder patrimonialistas, em especial nas pequenas cidades, onde poucas famílias de grandes proprietários de terras detêm o controle direto ou indireto da Prefeitura e Câmara de vereadores. Outro fator são as famigeradas emendas do Congresso nacional, que recentemente permitiram que parlamentares tenham poder de destinar diretamente para suas bases eleitorais recursos milionários do orçamento da União de forma impositiva. O grau de fisiologismo na política brasileira atingiu patamares inéditos, não sendo casual que 98% dos prefeitos de municípios que mais receberam emendas fossem reeleitos ou elegessem seus sucessores.
Na esquerda, o melhor desempenho foi do PSB, que governará 312 cidades, com destaque para a reeleição de João Campos, em Recife, com 78% dos votos. O PT, que após um duro calvário iniciado em 2016, voltou a crescer em número de prefeituras, passando a governar 248 neste ano. O partido ainda vai disputar o segundo turno em 13 cidades, sendo 4 capitais: Porto Alegre, Fortaleza, Cuiabá e Natal.
Contudo, outros partidos de esquerda ou centro-esquerda sofreram reveses. O PDT foi quem teve a maior queda entre os dez maiores partidos do país, reduzindo sua presença municipal pela metade. Em 2020, elegeu cerca de 310 prefeitos. Em 2024, 148. O PCdoB, que tinha 49 prefeituras, caiu para 19 e o PV caiu de 47 para 14 prefeituras. Na Federação PSOL-Rede, o número de prefeitos eleitos em primeiro turno caiu de 9 para 4. Neste ano, o PSOL não elegeu nenhum chefe do Executivo, embora tenha ainda dois candidatos que vão disputar o segundo turno, com destaque para Guilherme Boulos em São Paulo.
Enquanto isso, no espectro da extrema-direita, o PL de Bolsonaro cresceu em número de prefeituras, passando a governar 510 cidades, frente as 343 ganhas em 2020, ficando em quinto lugar no ranking dos partidos que mais elegeram prefeitos. O PL cresceu muito no grupo das 103 maiores cidades do país – municípios com mais de 200 mil eleitores em que poderia ter segundo turno – saindo do primeiro turno como o partido que elegeu o maior número de prefeitos desta faixa, num total de dez. E a sigla ainda vai participar de 23 segundo turnos, sendo nove capitais. Mesmo que o bolsonarismo tenha fracassado em sua ousada meta de eleger mil prefeituras, seu avanço nos grandes centros urbanos indica certa consolidação eleitoral do extremismo reacionário, não ocorrendo uma desejável dispersão deste campo, que poderia ter ocorrido após a perda da presidência da República e a atual condição de inelegível de Jair Bolsonaro.
Ainda que menos “ideológico”(sic) que o PL, merece atenção a curva ascendente dos Republicanos. Partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus e que tem nos seus quadros o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, em 2020 tinha 213 prefeituras. Neste ano a sigla saiu vencedora em 436 eleições municipais. Na comparação entre as duas últimas eleições, o Republicanos foi o segundo partido que mais cresceu em número de prefeituras, ficando atrás somente do PSD.
Possivelmente, mais do que um avanço eleitoral da extrema-direita, o que assistimos é o esvaziamento do centro. O contínuo declínio do PSDB, que perdeu quase metade de suas prefeituras, parece indicar isso. Dada a permanência da polarização política, esses eleitores que se sentiram órfãos do centro foram para a direita ou encontraram na direita ressonância momentânea para seus anseios.
Entre as boas notícias, que servem de alento para a esquerda, além da mencionada recuperação em prefeituras eleitas, houve um aumento no número de vereadores do PT e PSB. Os socialistas elegeram 573 vereadores a mais nestas eleições, passando a contar com 3.583. Já o PT subiu de 2.667 para 3127. Por outro lado, PCdoB e Psol reduziram sua presença em Câmaras de vereadores, caindo de 691 para 354 e de 89 para 80, respectivamente, cada um dos partidos.
Sobre o desempenho do PT, maior partido da esquerda brasileira, sua recuperação de espaço, ainda que tímido, é importante, mas aquém do que a conjuntura exigiria. Adotando nacionalmente uma tática eleitoral bastante conservadora para as disputas eleitorais, abdicando de lançar candidaturas próprias em capitais e cidades importantes – em alguns casos em prol de partidos aliados com chance eleitoral menor –, reduziu suas chances de recuperar eleitores. Afinal, ao sequer entrar na disputa, as chances de vitórias se tornam nulas. O partido viu sua presença nas grandes cidades encolher. Os municípios mineiros de Juiz de Fora e Contagem foram as únicas vitórias do PT em cidades com mais de 200 mil eleitores. 188 das prefeituras conquistadas pelo PT são em cidades com menos de 20 mil eleitores. Com vereadores a situação é similar, dos mais de 3 mil eleitos pelo PT, 2.122 são em pequenas cidades.
Talvez o recuo da esquerda e o avanço eleitoral da extrema-direita nos grandes centros urbanos, mais do que erros organizativos e políticos da esquerda – existentes de forma abundante – tenha ocorrido, em parte, por uma mudança de prioridades dos eleitores mais pobres. Os efeitos subjetivos de uma racionalidade neoliberal ainda imperante, precisam ser melhor compreendidos e enfrentados.
Poderia se esperar que, sob o governo Lula, o PT e a esquerda pudessem ter um desempenho melhor. Contudo, além do governo ter apenas dois anos, seu começo tem sido bastante difícil. Uma novidade para o PT é ser minoritário em um governo presidido pelo seu próprio partido. Além disso, ao aprovar o chamado arcabouço fiscal, criou uma série de autolimitações para atuação do governo em políticas públicas, reduzindo significativamente a capacidade de atingir diretamente as pessoas e promover desenvolvimento.
Para iniciar um período de avanço da esquerda no Brasil, o desempenho do governo Lula é um fator decisivo. Seu ajuste de rumos não poderá tardar. É fundamental, que além de promover os investimentos necessários para induzir desenvolvimento com inclusão social, criar e estimular mecanismos de participação, colocando o povo nas decisões sobre o Orçamento público. Sem algum nível de mobilização social estimulada pelo governo Lula, a conjuntura será mais adversa.
Devemos ter no horizonte intensificar a luta para acabar com as emendas impositivas. Sem promover alguma ruptura com as estruturas patrimonialistas de poder que ainda vigoram no Brasil profundo, seguiremos assistindo a perpetuação dos mesmos grupos controlando as administrações municipais na maioria das cidades do país.
A vitória de Lula em 2022 e a recuperação moderada da esquerda nas eleições municipais de 2024 abrem uma nova oportunidade estratégica. Para recuperar a ofensividade e conquistar a hegemonia social, é crucial que a esquerda se articule em torno de pautas populares que atendam às demandas urgentes da população, como a redução das desigualdades e a defesa de direitos sociais, enquanto constrói uma política que reconecte amplamente setores da classe trabalhadora e movimentos sociais. Além disso, deve priorizar a ampliação de alianças progressistas, sem perder sua identidade, e o uso de novas formas de mobilização e comunicação, a fim de deslegitimar o discurso da extrema-direita e reafirmar um projeto democrático e inclusivo que responda às crises econômica, política e climática que afetam o Brasil.
Erick Kayser é historiador
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.