No fundo lodoso de um poço… o Direito agoniza, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O Judiciário pode reparar o dano e restaurar a memória da vítima, mas não deve mutilar um documento público elaborado pelo Executivo.

No fundo lodoso de um poço… o Direito agoniza

por Fábio de Oliveira Rbeiro

Aqui mesmo no GGN já fiz alguns comentários sobre a decadência do discurso jurídico no Brasil.
https://jornalggn.com.br/crise/o-direito-e-seu-avesso/
https://jornalggn.com.br/opiniao/hannah-arendt-bakhtin-e-as-aberracoes-juridicas-dos-ex-herois-lavajateiros-por-fabio-de-o-ribeiro/

Volto ao assunto por causa de dois novos episódios grotescos. Eles demonstram como o sistema constitucional brasileiro está em frangalhos.https://www.gazetadopovo.com.br/republica/aras-indica-possivel-arquivamento-das-investigacoes-da-cpi-da-covid-entenda/
https://abraji.org.br/noticias/organizacoes-do-forum-assinam-nota-contra-censura-no-relatorio-da-comissao-nacional-da-verdade

O Ministério Público Federal não pode simplesmente ignorar o relatório da investigação feita por uma CPI, pois aquele documento é público e tem fé pública. Em razão disso, aliado aos elementos que foram coletados pelos senadores, o relatório elaborado pelo senador Renan Calheiros e aprovado pela maioria da CPI da Covid é um indício seguro dos crimes que devem ser imputados às pessoas que foram nele indicadas.

Após observar o devido processo legal, o Judiciário pode eventualmente absolver essas pessoas. Mas não compete ao PGR antecipar esse julgamento como se não tivesse obrigação de conferir ao documento público o valor jurídico que ele tem. 

O mesmo pode ser dito do relatório da Comissão da Verdade. Produzido após intensa investigação que se arrastou por vários anos, esse documento público não pode ser mutilado por uma decisão judicial. Se alguém entender que foi indevidamente acusado de ser torturador e assassino, a questão deve ser resolvida em perdas e danos. A vítima da acusação injusta (ou os parentes, caso ela já tenha morrido) pode exigir indenização do Estado, mas terá que provar que o relatório falsificou os fatos históricos que enunciou. 

Não compete ao Judiciário ferir a autonomia do Poder Executivo ou censurar o trabalho que foi feito no âmbito da Comissão da Verdade. O pressuposto da decisão que mutilou o documento (a preservação da memória de pessoa supostamente acusada de maneira indevida) está totalmente errado. Afinal, para julgar procedente uma ação de indenização a Justiça teria que declarar o erro cometido pela Comissão da Verdade e essa declaração por si só já equivaleria à restauração pública da memória da vítima. 

O Judiciário pode reparar o dano e restaurar a memória da vítima, mas não deve mutilar um documento público elaborado pelo Executivo. Como a sentença também é um documento público, ela produziria o efeito desejado pelo Juiz se ele mandasse a Comissão da Verdade anexa-la ao relatório divulgado pela Comissão da Verdade. Poder para isso o juiz tem (art. 139, IV, do CPC). Poder para reescrever o relatório ou censurar trechos dele o Judiciário não tem e não deve ter.

Nós temos aqui dois exemplos de como a mão leve do PGR e a mão pesada de um juiz comprometem a racionalidade jurídica. Augusto Aras rebaixou o poder conferido ao Senado e elevou o status de seu cargo para julgar quem deve ou não ser processado, algo que ele não deve fazer quando um documento público exige providências contra os crimes e criminosos que foram investigados por uma CPI. O juiz federal que mutilou o relatório da Comissão da Verdade tinha outros meios para obter o resultado desejado pelos parentes da suposta vítima. Ele poderia perfeitamente preservar a autonomia da Comissão da Verdade e evitar transformar-se em censor num país que proíbe expressamente a censura.

Eu nunca acreditei nos contos de fardas. Agora estou sendo obrigado a desconfiar dos contos de togas.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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