Saída temporária, a modalidade do medo, por Samuel Lourenço Filho

Encarar a cadeia, depois de alguns dias de liberdade, é irracional. Pergunte ao passarinho depois de solto, se ele deseja voltar pra gaiola. A conta não fecha.

Saída temporária, a modalidade do medo

por Samuel Lourenço Filho

Mais um fim de ano! Aquela música de natal, o comercial de televisão, a chamada rotineira da emissora de TV, o jingle do comércio e os enfeites nas ruas, shoppings e outros pontos turísticos. Já estamos acostumados, não?

E os vídeos que circulam nos grupos de Whatsapp ou nas páginas de bairros? Sim, os vídeos dos presidiários, com calça jeans e blusa branca, saindo do presídio. O famigerado “Saidão de Natal”. Todo ano a mesma coisa: imagens de presos em crimes midiáticos puxam a fita do caos, e depois seguem as imagens de centenas de presos deixando a porta dos presídios. É a difusão do medo, do horror.

É o momento que soa como um alarme, uma sirene, talvez um arauto gritando pela cidadela: “Cuidado, Cuidado! Criminosos estão às solta e caminham em direção à cidade!”. Todos ficam com medo. E o medo, comum a todos os seres, também alcança o preso. O preso também fica com medo.

A imprensa noticia a quantidade de presos “beneficiados” com a saída temporária, faz manchete com os “presos famosos”. Apesar da empolgação, devido à liberação para saída temporária, às vezes o preso sofre, angustiado, sem saber ao certo como vai ser sua soltura e seu contato com vizinhos ou pessoas próximas. É uma sensação de medo.

A pessoa em cumprimento de pena passa a temer uma eventual execução por qualquer motivo, relacionado à sua prisão ou não. É medo. Medo do vizinho, do miliciano, dos bandidos da facção rival, que se instalou no bairro, e medo do policial corrupto. Medo! Medo e desconfiança.

Apesar da empolgação, se angustia pelos companheiros que ficaram. Por aqueles que estão bastante tempo no regime, mas não obtiveram, da justiça, a autorização para sair. Aí ele sofre. Ele tem medo que na saída seguinte, o pedido indeferido seja o dele.

Se angustia, pois sabe que vai voltar. Encarar a cadeia, depois de alguns dias de liberdade, é irracional. Pergunte ao passarinho depois de solto, se ele deseja voltar pra gaiola. A conta não fecha. Voltar é um exercício de muita resiliência. Pensando num futuro livre, o cara volta pra cadeia, como se a prisão fosse a semente da liberdade. Isso é completamente louco, e então passa a ter medo de voltar e nunca mais sair, tem medo de sofrer covardia no retorno. O medo, às vezes, estimula a evasão ou fuga.

Mas os medos e as sensações hostis dos presos pouco importa né? A saída temporária, mobiliza muito mais os raivosos que pouco sabem sobre ela, do que propriamente os presos e seus respectivos familiares. Sem comoção, romance ou drama. Sai gente pra fazer merda? Sai. Mas tem gente que nunca foi presa e que também faz merda. Logo, estar na prisão ou não, não é precedente para crime.

Tem gente que sai e não pode voltar pra mesma cadeia, tem que pular da facção, expor a família que mora numa área dominada por tráfico. Tem gente que sai da cadeia, mas chega atrasado, e sabe que dificilmente vai sair outra vez. Geralmente, quem faz isso acontecer, não é só o atraso dele. É o servidor que não bate ponto, mas cobra pontualidade. É o juiz que se atrasa na audiência por conta do trânsito, mas vê como mentalidade voltada para delinquência aquele que se atrasou 10 ou 20 minutos na volta da saída temporária.

Os pontuais da ocasião, cobram uma disciplina e rigor com horário, sem mesmo obedecerem o ponteiro, em seus respectivos trabalhos. Horror. E sabendo que atraso às vezes, vai trancá-lo por mais tempo, o sujeito preso, evade. É o suspiro de liberdade. Por outro lado, não é só medo e terror. Saída temporária, acalenta o amor do condenado por seus familiares, enquanto o ódio da reaçada, só aumenta.

Isso não é precaução ou segurança. É ódio mesmo, pois, após o crime cometido, as pessoas se acham no direito de determinar que o preso não pode mais sorrir, abraçar e ser abraçado… Não é anulação de direito apenas. Trata-se de desprovimento de afeto, esse povo não ama o próximo, nem os seus.

Em meio às frustrações pessoais, encontra um “bom” motivo pra odiar… A saída temporária, ainda que temporária seja, gera um ódio eterno em alguns. Nesse contexto, a única prisão perpétua, é a do ressentimento, e nela estão presas muitas pessoas que sequer cumpriram pena, elas odeiam bandidos soltos, enquanto escolhem ficar presas no ódio, alegando serem vítimas da insegurança…

E isso vai demorar a passar, pois em alguns anos, os condenados da Boate Kiss, a Deputada Federal presa por mandar matar o marido e o vereador acusado de matar o enteado serão pessoas que após o cumprimento de pena, em regime fechado, determinado pela justiça, gozarão do DIREITO previsto na Lei de Execução Penal.

E aí começa o medo, terror, ódio e difamação: “ressuscitando” crimes, divulgando dados alarmantes de segurança e tudo mais, tudo para não ver o preso na rua. Não divulgam a quantidade de presos em regime semiaberto e quantos a justiça concedeu o direito se saída. Falam que a justiça soltou presos de “saidinha”, mas não apontam quantos presos estão em regime fechado, quando já deveriam ter progredido. O retrato da injustiça nunca é revelado, apenas a faceta de discórdia e mal estar.

A saída temporária, não é a modalidade do medo. É ódio e nojo implícitos em nome da segurança e ordem pública. O ódio é a modalidade do atraso, e sua disseminação se dá através da população prisional e do direito de saída temporária.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Samuel Lourenço Filho

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