Tragédias coletivas, o alimento de Bolsonaro, por Marcio Valley

E tome vergonha brasileira no mundo inteiro; as deficiências de Bolsonaro tornaram-se óbvias para todos os que não são fanáticos apoiadores.

Tragédias coletivas, o alimento de Bolsonaro

Por Marcio Valley

Nesse momento, contam-se 256 mil brasileiros mortos por problemas decorrentes do coronavírus, além de outros quase 11 milhões de infectados pelo mesmo vírus. Tudo em cerca de apenas um ano de pandemia.

Segundo a BBC Brasil1, o número de mortos pela covid é seis vezes superior ao do total de homicídios ocorridos em todo o Brasil no ano de 2020. As mortes por acidente de trânsito, em 2019, montaram a 30 mil pessoas2, 8 vezes menos do que as mortes causadas pelo coronavírus. A covid matou mais pessoas em um ano do que todas as mortes de brasileiros por câncer no ano de 2018, cerca de 225 mil3.

Na comparação com outras doenças infecto-contagiosas, com base nas ocorrências do ano de 20194, foram registrados 1.544.987 casos de dengue, com 782 mortos; 10.708 contaminados por zika, sendo 3 mortes; e 132.205 registros de chikungunya, do que resultou 92 mortes. Somadas, essas doenças mataram 877 mortes no ano de 2019, o que significa 0,003% do total de mortos pelo coronavírus. Os mortos brasileiros pelo coronavírus são quase 300 vezes mais numerosos do que a soma anual de todos os óbitos por dengue, zika e chikungunya no mesmo período.

A covid já matou muito mais brasileiros do que a mais sanguinária guerra travada pelo país, a do Paraguai, que matou algo em torno de 8.300 soldados brasileiros por ano (50 mil, no total, em seis anos de conflito)5. Na 2ª Grande Guerra menos de 500 soldados brasileiros tombaram.

Toda morte é lamentável, mas a comparação da malignidade da Covid com outras importantes causas de morte no Brasil é ridícula. Considerando-se a média total, a covid matou aproximadamente 28 pessoas por hora desde o início da pandemia. Não à toa, o pesquisador Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, apurou ser cerca de quatro vezes maior o risco de alguém morrer de covid no Brasil do que em qualquer outro lugar do mundo6. E as projeções indicam que, em pouco tempo, passaremos ao primeiro lugar do mundo, superando os EUA tanto no número de infectados, como de infectados.

O que isso significa para os brasileiros? Uma enorme tragédia, incomparável, tremendamente dolorosa para incontáveis famílias do país, que choram mortes que seriam plenamente evitáveis com medidas simples, embora rigorosas e custosas, como o isolamento obrigatório em todo o país, testes em massa, auxílio financeiro aos necessitados para que não se vissem obrigados a sair de casa para custear a sobrevivência e, posteriormente, precocidade na negociação da compra das vacinas. Algo similar ao que fizeram países que hoje estão quase ou totalmente livres do problema, como a Nova Zelândia, Cuba, Tailândia, Vietnã, Islândia, Ruanda e China.

Infelizmente, o Brasil seguiu um tresloucado caminho, nas mãos do despreparado Bolsonaro. Minimização da gravidade do problema (gripezinha), recusa em adotar as prescrições científicas (opção pela propaganda governamental leiga de tratamento precoce por cloroquina e quetais), negação da importância da vacinação, discriminação da vacina em função da origem da pesquisa científica (“vachina”, Sputnik e Cuba), ausência total dos balcões internacionais para reserva das futuras vacina (que se iniciaram em meados do ano de 2020).

Estaria Bolsonaro louco? Ou teria feito preponderar sua “ideologia” acima dos interesses dos brasileiros? Nem um nem outro. Prossigamos.

Bolsonaro parece abençoado pelos deuses (não os celestiais, mas os terrenos). Sempre que a demonstração de sua absoluta incompetência política se aproxima, ocorre um evento trágico (verdadeiro ou falso), porém salvador, que o livra da exposição, fornece aos simpatizantes um discurso para legitimar a manutenção do apoio e o mantém em evidência ou no poder. A vida política de Bolsonaro se alimenta da tragédia; foi assim no exército, continuou na vida parlamentar, manteve-se na candidatura presidencial e persiste no exercício do mandato.

No exército, foi investigado e expulso da corporação por acusação de terrorismo (“Operação Beco Sem Saída”), ação na qual seriam colocadas bombas nos banheiros dos quartéis, o que possivelmente resultaria em um número indefinido de mortes (tragédia). Posteriormente, foi reincorporado, não por inocência, mas em função de uma filigrana jurídica. Curiosamente, sua faceta violenta facilitou o ingresso na vida parlamentar, atraindo eleitores com inclinações fascistóides. Como parlamentar, notabilizou-se por defender a tortura, os torturadores e a violência policial, insensível ao sofrimento dos torturados e dos desvalidos (tragédia).

Na candidatura de 2018, deve ter vivido momentos terríveis ao se aproximar a data dos debates. Certamente, suou frio por não saber como faria para abordar temas complexos da administração pública federal; temas que desconhecia por completo. Seu currículo, como se sabe, envolve ser ex-paraquedista de formação secundária, militar, e, posteriormente, trinta anos de atuação política profissional, integrando o baixo clero do Congresso Nacional, durante os quais jamais respondeu por qualquer comissão, tendo obtido sucesso na aprovação de meras três leis, uma para cada década de trabalho. Afora isso, nenhuma experiência como administrador publico ou privado. Por isso o justificável nervosismo. Era um momento delicado, no qual parecia inevitável a exposição de sua incompetência verbal e ignorância política nos debates televisivos. Ele se conhecia e sabia que a população brasileira em peso, a partir dos debates, conheceria a real natureza de seu discurso, não somente ignorante das relações de Estado e de governo, mas, acima de tudo, bronco, inculto, grosseiro, pleno de ódio, violência e deselegância. Seu desequilíbrio emocional seria facilmente identificável em sua fala tatibitate, na dificuldade de ler ritmadamente o discurso no papel ou teleprompter e em seu semblante marcado por vincos faciais e tiques nervosos.

Para piorar, do outro lado da mesa, como debatedor, não estaria alguém de sua pequena estatura, mas uma figura pública muito mais elevada, com notória formação intelectual e acadêmica, um professor universitário de fala mansa e ponderada, músico, com graduação, mestrado e doutorado no currículo, além de experiência na gestão pública, seja como um dos ministros da educação que por mais tempo permaneceu à frente da pasta ou como prefeito do terceiro PIB do Brasil. A chance de eleger-se parecia evaporar à medida da aproximação dos debates.

Foi quando uma “tragédia” deu sustentação à sua candidatura: a “facada”. O candidato respirou aliviado ao ser salvo do calvário dos debates, logrando ocultar dos eleitores suas imensas fragilidades psicológicas e cognitivas. A história da facada talvez seja elucidada por completo somente daqui a uns 20 anos. Os que estiverem vivos, saberão.

Essa tragédia, contudo, não foi a única a contaminar aquela eleição, vitimada também pela trágica ausência de compromisso ético que a grande mídia demonstrou dispensar aos brasileiros. A frase produzida pelo Estadão, na ocasião, mas que representa o comportamento da imprensa majoritária como um todo naquela eleição, passará à história como representação máxima da pusilanimidade moral de um órgão de imprensa: “Uma escolha muito difícil”. Sem se constranger com a demonstração de um nível de discernimento político que desonra seus leitores, o “Estadão” conseguiu vislumbrar “dificuldade” na opção entre duas personalidades diametralmente opostas, uma democrata, que prega a dignidade da pessoa, e a outra, despótica, que não se acanha em produzir publicamente a apologia da tortura, da violência e do assassinato. A escolha difícil, no caso, somente poderia existir em mentes doentias.

De toda sorte, vitimizado no episódio e contando com simpatia, cumplicidade e pusilanimidade dos grandes formadores de opinião, foi eleito. Isso, em si, foi outra tragédia, desta vez para os brasileiros, mesmo os que não a percebem ou a neguem, pois, inacreditavelmente, foi escolhido para ser presidente da então 8ª economia do mundo, uma pessoa que jamais presidiu coisa alguma em sua vida, nem mesmo uma comissão mequetrefe do Congresso, e que talvez não tenha sido sequer síndico daquele condomínio da Barra da Tijuca onde mora, famoso por ter entre seus residentes pessoas acusadas de cometimento de sérios crimes, inclusive tráfico de armas e assassinatos. Perceba-se: não se trata de nunca ter sido presidente, pois, no primeiro mandato, todos são presidentes pela primeira vez, mas de não possuir experiência administrativa nenhuma, nem de gerenciar o boteco da comunidade, e tampouco ter antes demonstrado capacidade de articulação e negociação, imprescindível para o exercício da função.

A partir daí, “às favas com os escrúpulos”, novamente disse um passarinho canalha. E tome vergonha brasileira no mundo inteiro; as deficiências de Bolsonaro tornaram-se óbvias para todos os que não são fanáticos apoiadores. Não somente por conta de suas manifestações tacanhas em rede nacional, nas redes sociais ou nos “curraizinhos” que mantinha até pouco tempo em Brasília, como também em função das ações políticas que adotou e, mais ainda, pelas inações. Era óbvio, mesmo para quem sabia ler apenas as vogais, que Bolsonaro eleito certamente representaria, como representou de fato, um enorme retrocesso civilizatório para o país. Uma tragédia, portanto.

A demonstração da incompetência de Bolsonaro foi rápida, fulminante. Em um ano de gestão, o Brasil despencou para a 9ª posição do ranking mundial do PIB e, segundo projeções, cairá ainda mais, assumindo a 12ª colocação em 2020. Dois anos de mandato, quatro posições perdidas, com todas as consequências que daí decorrem, como redução do nível de atividade do mercado, seguida de falências e desemprego em massa, ou seja, uma tragédia na vida dos pequenos empresários e dos trabalhadores, que viram secar sua fonte de subsistência. Novamente, o destino de Bolsonaro parecia traçado: um fracasso econômico dessa magnitude somente poderia resultar em não renovação de seu mandato. Se sobrevivesse politicamente até 2022, certamente não seria reeleito.

E não é que uma nova tragédia coletiva parece ter vindo salvar a “reputação” de Jair Messias? A pandemia do coronavírus. Alvíssaras, deve ter pensado, todos os fracassos de sua política econômica poderiam ser creditados aos prefeitos e governadores que corretamente determinaram o isolamento social, impedindo com isso o regular funcionamento do mercado. A partir daí, o que faz o nosso “Messias”, o nosso “mito”? Trabalha incansavelmente produzindo fatos com capacidade de piorar o já terrível quadro da pandemia. Por quê? Loucura? Apego à ideologia? Nada disso: necessidade. A tragédia da pandemia é sua tábua de salvação, sua redenção.

A paralisação do mercado é a única explicação que poderá utilizar na tentativa de reeleição em 2022. Se a pandemia tivesse sido rapidamente contida, como na China ou na Nova Zelândia, com o mercado funcionando normalmente, a sua incompetência no planejamento econômico ficaria totalmente exposta. Queda para a 9ª posição no ranking do PIB em 2019, para 12ª em 2020 e, mantendo esse padrão de desabamento, possivelmente para 14ª em 2021 e 16ª em 2022. Supondo mantida uma queda de duas posições no ranking do PIB para cada ano de mandato, como explicar aos eleitores uma queda da 8ª para a 16ª posição, considerando as inevitáveis falências e o desemprego em massa que disso decorrem? Impossível. Somente uma nova tragédia salvaria sua discutível reputação. Sua desculpa será uma “ação orquestrada do comunismo internacional” praticado pelo “maior inimigo da humanidade”, a China, que disseminou o vírus. Caso a teoria conspiratória não cole, credita-se o fracasso ao caso fortuito, uma ação imprevisível da natureza. A irracionalidade de Bolsonaro ao impedir as mais comezinhas ações da pasta da Saúde no enfrentamento da pandemia se explica num cálculo político frio: o uso abjeto da tragédia humana como mecanismo de manutenção do poder; a necropolítica.

Se esse cálculo político vai ou não dar certo, veremos em 2022. Pelo que se vê de certos políticos que, perdendo o primeiro turno de 2018, se mandaram do país, sem recomendar expressamente aos seus eleitores que repudiassem e votassem no adversário dele, parece que não é somente Bolsonaro que se alimenta da tragédia dos brasileiros.

O Brasil não merece, mas pode se ver punido novamente por uma doentia “escolha difícil”.

1 – Dados extraídos do site da BBC Brasil, em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56186900. Acesso em 02/03/2021.

2 – Segundo informativo do site do Portal do Trânsito, em: https://www.portaldotransito.com.br/noticias/dados-preliminares-de-2019-mostram-queda-no-numero-de-mortes-no-transito-brasileiro/. Acesso em 02/03/2021.

3 – Conforme informação obtida no site do Instituto Nacional de Câncer (Inca), em: https://www.inca.gov.br/numeros-de-cancer. Acesso em 02/03/2021.

4 – Dados obtidos na reportagem do site G1, em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/01/13/brasil-teve-aumento-de-488percent-nos-casos-de-dengue-em-2019.ghtml. Acesso em 02/03/2021.

5 – Dados extraídos de reportagem da revista Exame, em: https://exame.com/brasil/pandemia-ja-matou-no-brasil-tanto-quanto-a-guerra-do-paraguai/. Acesso em 02/03/2021.

6 – Conforme reportagem da revista Época, em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2021/02/risco-de-morrer-de-covid-19-no-brasil-foi-mais-de-3-vezes-maior-que-no-resto-do-mundo-em-2020-calcula-economista.html. Acesso em 02/03/2021.

Redação

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