É preciso substituir o regime de metas de inflação, por Victor Leonardo de Araujo

O RMI não deve ser avaliado pelas metas em si, mas como parte integrante das políticas econômicas que, avaliadas em seu conjunto, deveriam assegurar não somente a estabilidade dos preços, mas também do produto e do emprego.

do Democracia e Economia – Finde

É preciso substituir o regime de metas de inflação

por Victor Leonardo de Araujo

O regime de metas de inflação (RMI) foi adotado no Brasil em 1999, como parte integrante das modificações no regime de política macroeconômica ocorridas na esteira da substituição da âncora cambial no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. O balanço de 22 anos de RMI parece positivo: em apenas cinco (2001, 2002, 2003, 2015 e 2021) a inflação ficou acima do teto da meta; em um (2017), ficou abaixo do piso.

Mas esta positividade é apenas aparente. O RMI não deve ser avaliado pelas metas em si, mas como parte integrante das políticas econômicas que, avaliadas em seu conjunto, deveriam assegurar não somente a estabilidade dos preços, mas também do produto e do emprego. Nesses quesitos, o RMI somente conseguiu estabelecer condições para um desempenho econômico um pouco melhor ou com pequenas flexibilizações em seu padrão funcionamento, ou sob condições bastante especiais.

O padrão de funcionamento do RMI estabelece que as metas de inflação devem ser perseguidas majoritariamente pelo Banco Central por meio do manejo da taxa básica de juros Selic, sob a interpretação de que a inflação constitui fenômeno explicado pelo excesso de demanda, combatido no campo estrito da política monetária. No Brasil, as metas são determinadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) para os próximos três anos, estabelecendo-se uma meta pontual e um intervalo dentro do qual considera-se que a meta foi cumprida.

A lógica do RMI não distingue as causas da inflação, pois as interpreta como originadas eminentemente pelo lado da demanda, embora já existam inúmeras evidências que apontem que no Brasil são a taxa de câmbio, preços das commodities, preços administrados, e a dinâmica dos salários face à produtividade os seus determinantes mais importantes. Embora essas causas sejam difusas, requerendo estratégias distintas para enfrentá-las ou acomodá-las, o modelo “canônico” do RMI recomenda que qualquer que seja a causa da inflação, o remédio será sempre o mesmo, e aplicado pelo Banco Central.

O RMI foi adotado em 1999, início do segundo governo FHC, e as metas já foram descumpridas em 2001 e 2002. Além de taxas medíocres de crescimento do PIB e altas taxas de desemprego, o melancólico governo FHC chegou ao fim registrando inflação de 12,5% após intensa crise cambial. Entre os vários desafios colocados para o governo Lula, que assumiria em janeiro de 2003, estava o de desinflacionar a economia. O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, propôs o ajuste da meta para 8,5% e tolerância de até 10,5%. O CMN não aceitou, mas ainda assim a meta ajustada foi informalmente mantida. Esta flexibilização foi necessária, já que reduzir a inflação de 12,5% para o teto original de 5,5% – quando o choque cambial de 2002 ainda não havia sido acomodado – agravaria a crise que já estava em curso. Ainda assim, o ano de 2003 foi iniciado sob o aperto da política monetária, com a taxa Selic chegando a 26,5% a.a. já em fevereiro (contra 25% em dezembro de 2002). A inflação de 2003 foi de 9,3%.

A excepcional circunstância vigente na economia internacional durante os anos que se seguiram, na forma da combinação de melhoria dos termos de troca e baixas taxas de juros internacionais com expansão do ciclo de liquidez, permitiu operar o RMI com taxas básicas de juros declinantes sem comprometer o influxo de capitais externos e a valorização da taxa de câmbio necessária para reduzir a inflação e mantê-la dentro da meta. Isto porque no Brasil a taxa de câmbio constitui o principal canal de transmissão da política monetária: a valorização cambial vigente entre 2003 e meados de 2011 permitiu compensar o aumento de salários reais e dos preços de commodities na estrutura de custos empresariais. Assim, neste período, ressaltadas as condições internacionais excepcionais, foi possível compatibilizar as metas de inflação com juros básicos que, ainda que elevados para os padrões internacionais, eram declinantes e compatíveis com um melhor desempenho da atividade econômica. Ainda assim, foram três ciclos de aperto monetário durante os dois governos Lula: 2005, 2008 e 2010. A taxa média anual de crescimento do PIB passou de 2,1% entre 1999 e 2002 para 4% entre 2003 e 2010 – sem dúvida um resultado melhor desde a década de 1980, mas que correspondem a taxas de crescimento bastante moderadas. A taxa média anual de desemprego, que chegou a 12,3% em 2003 (média anual), registrou um declínio lento, alcançando 10,5% em 2006 – só no segundo governo Lula é que o declínio foi mais rápido, chegando em 7% em 2010.

Já após 2011, sob condições externas deterioradas – queda dos termos de troca e maior volatilidade nos mercados financeiros internacionais –, compatibilizar a meta de inflação com taxas básicas de juros que não punissem o nível de atividade exigiu uma política de contenção dos reajustes de alguns preços administrados, notadamente energia elétrica e combustíveis. A redução da Selic para o piso histórico obtido em 2012 durou pouco. A partir de 2013 a inflação voltou a ser combatida segundo o modelo padrão do RMI, com novo aperto monetário na reta final do primeiro governo Dilma. A esta altura, a economia brasileira já desacelerava rumo à recessão de 2015 e 2016. A liberalização dos preços administrados em contexto de desvalorização cambial provocou aceleração inflacionária em 2015, mas aqui o Banco Central já havia se rendido ao aumento da Selic como principal instrumento de controle da inflação. Desde o governo Temer, as metas de inflação declinaram (centro e intervalo), e após um novo processo de aceleração inflacionária ocorrido em 2021 – decorrente de nova combinação de desvalorização cambial e aumento de preços administrados – o Banco Central voltou a elevar a Selic.

Pouco mais de duas décadas de RMI mostraram que apenas a sua flexibilização quanto ao modelo padrão é insuficiente e depende de circunstâncias muito especiais para ser compatível com a melhora do desempenho dos níveis de atividade e de emprego. No Brasil, a inflação possui múltiplas e disseminadas causas, e cujo combate requer ações igualmente múltiplas e disseminadas por distintos ministérios, autarquias públicas e até mesmo empresas estatais. O RMI tem sido disfuncional para que o País possa conviver com inflação baixa e estável e taxas elevadas e sustentáveis de crescimento econômico e do emprego. O País precisa de uma nova política de combate à inflação, tirando do Banco Central a exclusividade desta tarefa, e articulando os diversos ministérios da área econômica conforme as múltiplas e difusas causas da inflação.

Victor Leonardo de Araujo – Professor da Faculdade de Economia da UFF e coordenador do Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB: www.neb.uff.br)

FINDE – O grupo de pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores da UFF e de outras instituições, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. (FINDE | Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento do PPGE/UFF)

O Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas. O grupo objetiva estimular o diálogo e interação entre Economia e Política, tanto na formulação teórica quanto na análise da realidade do Brasil e de outros países. (Apresentação – GEEP – Grupo de Estudos de Economia e Política (uerj.br))

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