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Capitalismo e Ideologia, o novo livro de Thomas Piketty
Tradução de César Locatelli
“Toda sociedade humana deve justificar suas desigualdades.”
“A partir dessa análise histórica, emerge uma conclusão importante: é a luta pela igualdade e pela educação que permitiu o desenvolvimento econômico e o progresso humano, e não a sacralização da propriedade, estabilidade e desigualdade.”
“Retomando o fio da história, numa perspectiva multidisciplinar, é possível chegar a uma narrativa mais equilibrada e delinear os contornos de um novo socialismo participativo para o século XXI, isto é, imaginar um novo horizonte igualitário com um objetivo universal, uma nova ideologia de igualdade, de propriedade social, de educação e de compartilhamento de conhecimentos e poderes, mais otimista sobre da natureza humana, e também mais preciso e convincente do que as narrativas precedentes, porque melhor ancorado nas lições da história global.”
O novo livro do autor “O Capital no século XXI” está previsto para chegar às livrarias no dia 12 de setembro próximo. “Capitalismo e Ideologia” é dividido em quatro blocos: regimes inigualitários na história, escravidão e sociedades coloniais, a grande transformação do século XX e as dimensões do conflito político. A publicação é de Les Editions du Seuil, com 1232 páginas.
Segue um trecho da Introdução:
Toda sociedade humana deve justificar suas desigualdades: devemos encontrar razões para elas, caso contrário, é todo o edifício político e social que se arrisca a entrar em colapso. Cada época produz, assim, um conjunto de discursos e ideologias contraditórios, que visam legitimar a desigualdade, da forma como ela existe ou deveria existir, e descrever as regras econômicas, sociais e políticas para estruturar o conjunto todo.
Desse confronto, que é ao mesmo tempo intelectual, institucional e político, geralmente surgem uma ou mais narrativas dominantes, nas quais se baseiam os regimes inigualitários.
Nas sociedades contemporâneas, isso inclui a narrativa ‘proprietarista’, empreendedorista e meritocrática: a desigualdade moderna é justa, porque decorre de um processo de livre escolha, no qual todos têm as mesmas oportunidades de ter acesso ao mercado e à propriedade, e onde todos espontaneamente se beneficiam das acumulações dos mais ricos, que também são os mais empreendedores, os mais merecedores e os mais úteis.
Isso nos colocaria em situação oposta da desigualdade nas sociedades antigas, que se baseavam em disparidades estatutárias rígidas, arbitrárias e muitas vezes despóticas.
O problema é que essa grande narrativa ‘proprietarista’, e meritocrática, que teve seu primeiro momento de glória no século XIX, após o colapso das sociedades da ordem do Antigo Regime, e após uma reformulação radical e em escala mundial desde o final do século XX, em seguida à queda do comunismo soviético e o triunfo do hipercapitalismo, parece cada vez mais frágil.
Isso leva a contradições, cujas formas são certamente muito diferentes na Europa e nos Estados Unidos, Índia e Brasil, China e África do Sul, Venezuela e Oriente Médio.
No entanto, essas diferentes trajetórias, decorrentes de histórias específicas e parcialmente conectadas, estão no início do século XXI cada vez mais intimamente ligadas entre si.
Somente uma perspectiva transnacional pode ajudar a entender melhor essas fragilidades e a considerar a reconstrução de uma narrativa alternativa.
De fato, o aumento das desigualdades socioeconômicas é percebido em quase todas as regiões do mundo desde as décadas de 1980 e 1990. Em alguns casos, adquiriu proporções tão grandes que está se tornando cada vez mais difícil justificá-las em nome do interesse geral.
Há também por todo lado, além disso, um abismo escancarado entre as proclamações meritocráticas oficiais e as realidades enfrentadas pelos menos favorecidos em termos de acesso à educação e à riqueza.
O discurso meritocrático e empreendedorista, muitas vezes, aparece como uma maneira conveniente para os vencedores do sistema econômico atual justificarem qualquer nível de desigualdade, sem sequer ter que examiná-lo, e estigmatizarem os perdedores por sua falta de mérito, de virtude e de diligência.
Essa culpa dos mais pobres não existia, ou, pelo menos, não de forma tão ampla, nos regimes inigualitários anteriores, que insistiam mais na complementaridade funcional entre os diferentes grupos sociais.
A desigualdade moderna também é caracterizada por um conjunto de práticas discriminatórias e desigualdades estatutárias e etno religiosas cuja violência é mal descrita pelo conto de fadas meritocrático, e que nos aproxima das formas mais brutais das velhas desigualdades que reivindicamos para nos distinguir.
Podemos citar as discriminações enfrentadas por quem não tem casa ou vem de certos bairros e origens. Também pensamos nos migrantes que se afogam.
Diante dessas contradições, e por falta de um novo horizonte universalista e igualitário credível para enfrentar os desafios da desigualdade, da migração e do clima à frente, é de se temer que a regressão identitária e nacionalista se torne cada vez mais uma grande narrativa substitutiva, como foi visto na Europa durante a primeira metade do século XX, e como se manifesta novamente no início do século XXI em diferentes partes do mundo.
Foi a Primeira Guerra Mundial que lançou o movimento de destruição e, em seguida, de redefinição da globalização comercial e financeira muito desigual em curso na “Belle Epoque” (1880-1914), época que parecia “belle” somente em comparação com as explosões de violência que se seguiram, e que o era verdadeiramente para os proprietários e, particularmente, para o homem branco proprietário.
Se não transformarmos profundamente o sistema econômico atual para torná-lo menos desigual, mais equitativo e mais sustentável, tanto entre os países quanto dentro dos países, então o “populismo” xenófobo e seus possíveis sucessos eleitorais futuros poderão começar, muito rapidamente, o movimento de destruição da globalização hipercapitalista e digital dos anos 1990 a 2020. Para afastar esse risco, o conhecimento e a história continuam sendo nossos melhores trunfos.
Toda sociedade humana precisa justificar suas desigualdades, e essas justificativas sempre contêm sua parcela de verdade e exagero, imaginação e baixeza, idealismo e egoísmo. Um regime inigualitário, conforme definido nesta pesquisa, caracteriza-se por um conjunto de discursos e arranjos institucionais que visam justificar e estruturar as desigualdades econômicas, sociais e políticas de uma determinada sociedade.
Cada regime tem suas fraquezas e só pode sobreviver se redefinindo constantemente, geralmente de maneira violenta e conflituosa, mas também apoiando-se em experiências e conhecimentos compartilhados.
Este livro tem por objeto a história e o futuro de regimes desiguais. Ao reunir materiais históricos relativos a sociedades distantes umas das outras e que, na maioria das vezes, se ignoram ou recusam a se comparar umas às outras, espero contribuir para uma melhor compreensão das transformações em andamento, de uma perspectiva global e transnacional.
A partir dessa análise histórica, emerge uma conclusão importante: é a luta pela igualdade e pela educação que permitiu o desenvolvimento econômico e o progresso humano, e não a sacralização da propriedade, estabilidade e desigualdade.
A nova narrativa hiperinigualitária que surgiu desde as décadas de 1980 e 1990 é parcialmente o produto da história e do desastre comunistas. Mas, essa narrativa, também é fruto da ignorância e da divisão do conhecimento, e ela contribuiu amplamente para nutrir o fatalismo e as correntes identitárias atuais.
Retomando o fio da história, numa perspectiva multidisciplinar, é possível chegar a uma narrativa mais equilibrada e delinear os contornos de um novo socialismo participativo para o século XXI, isto é, imaginar um novo horizonte igualitário com um objetivo universal, uma nova ideologia de igualdade, de propriedade social, de educação e de compartilhamento de conhecimentos e poderes, mais otimista sobre da natureza humana, e também mais preciso e convincente do que as narrativas precedentes, porque melhor ancorado nas lições da história global.
Compete, é claro, a cada um julgar e se apoderar dessas poucas lições, frágeis e provisórias, para transformá-las e conduzi-las ainda mais longe.
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Eis o tema central de nosso tempo: a desigualdade. De nosso tempo porque as distâncias avançam assustadoramente, a hubris humana arrasta tudo para a barbárie, que deixou de ser retórica, ela já está aqui ao nosso lado. O mundo assusta e uma imensa espada de Damacles acompanha a terra em sua órbita.A civilização afunda em mazelas como a desigualdade. A raiz do problema é o capitalismo em sua forma global e financeira. Em sua lógica de acumulação não existe lugar para solidariedade e empatia. O que fazer? Ninguém tem a resposta, nem Marx nem Deus.
Vou ler o livro sabendo que não encontrarei saídas mas a consciência desta realidade já é revolucionária. E o Brasil merece um case a parte, aqui naturalizamos a escravidão.
Talvez seja o caso de relembrar ao prof. Piketty que não estamos mais em época de utopia. Aliás, prefiro a de Thomas Morus.
Uma pergunta, por que ainda, prof., esse Anticomunismo disfarçado de cientificismo. Tanto a desigualdade, quanto a igualdade são produtos históricos. Na verdade, foi exatamente isso que o sr. não entendeu em Marx quando o acusa de apocalíptico.
Eu lhe recomendaria estudar a Economia Política para entender como é possível existir ciência mesmo quando a sociedade é constituída de classes, já que, no caso da sociedade burguesa, lá pelo final do século XVIII e início do XIX o progresso resultou exatamente do antagonismo de classe. E para o conhecimento atingir um grau de ciência necessário se faz necessário estar comprometido com o progresso, mesmo quando, ou sobretudo, o desenvolvimento social depende de uma revolução. A manutenção da desigualdade pela violência é o único recurso que resta aos que assaltam o poder político em nossos dias. Desigualdade agora significa atraso, destruição. A liberação do trabalho de sua forma capitalista é condição do desenvolvimento. Conditio sine qua non, aliás!
Manter os meios de produção em mãos incompetentes para tocá-las já atingiu o estágio da barbárie. Não quero ser malcriado, mas o prof. não entende do termo que ele mais usa que é desigualdade. A humanidade já dispõe de forças produtivas mais do que suficientes para estabelecer como palavra de ordem
o que tem dito o sociólogo Jean Ziegles: “É preciso destruir o capitalismo”. A burguesia foi categórica quando se tratou de destruir o feudalismo, e seu postulado teórico fundamental tinha muita semelhança com o que tem dito Ziegler.
Ei, poderia me explicar o que quis dizer com isso “A humanidade já dispõe de forças produtivas mais do que suficientes para estabelecer como palavra de ordem”, essas forças seriam a violência? A repressão? Não entendi muito bem. Obrigada.
Anita, você cortou a ideia pelo meio. Leia de novo a passagem.
Eu li o primeiro livro do Piketty e achei, no geral, muito bom. Aguardo ansioso a versão em Português dessa sua nova obra. O socialismo como ponte para o comunismo era o que se propunha, o problema sempre foi que estagnava no socialismo autoritário de estado. Ninguém ainda tem “a solução” para a redução das desumanidades (vou ampliar o alcance de “desigualdade” para não ser tão tecnicista) e evidentemente ela só virá com várias contribuições de diferentes setores da sociedade, paulatinamente. Assim como a democracia sempre será um “está por vir” (Dewey), um sistema sócio-econômico também. Suas propostas não são “a chave para as soluções”, mas tem o louvável mérito (além do conhecimento acadêmico claro) de se arriscar a propor algumas coisas. E um “socialismo participativo” pode evoluir a um comunismo democrático pois não esquece o fundamental EDUCAÇÃO. Sem mudar a cultura não se muda uma sociedade. Como a história demonstra, querer impôr “o meu sistema justo” para todos foi desastroso.
A desigualdade é ideológica e política, constata Piketty:
https://www.pagina12.com.ar/216584-para-thomas-piketty-la-desigualdad-es-ideologica-y-politica
Alguém sabe se já está a venda do Brasil? Se sim, onde?
Obrigada!