Metamorfoses do capitalismo transnacional e o futuro governo Lula, por Luiz Eduardo Soares

Ocorre que, na medida em que a economia reduz-se a operações políticas, a esfera propriamente política -institucionalizada, regida por eleições- perde incidência sobre a economia, enquanto a soberania nacional submete-se à força.

Metamorfoses do capitalismo transnacional e o futuro governo Lula

por Luiz Eduardo Soares

O propósito deste artigo é tão ambicioso quanto são simplificadores os pressupostos em que se apoia. A complexidade de cada tema exigiria livros de análise para que as hipóteses, aqui expostas, fossem formuladas com a necessária consistência. Portanto, se tomo a liberdade de fazê-las circular neste estágio preliminar de elaboração, é justamente para colher as contribuições críticas que qualificarão seu desenvolvimento. E também porque me parece urgente que o debate público entre as forças progressistas as leve em consideração -e certamente estou longe de ser o único a trazê-las ao escrutínio coletivo.

Se a pretensão é ambiciosa, a meta é pontual: sugerir que as querelas em torno da política econômica de um possível governo Lula, embora evidentemente importantes, talvez sejam menos decisivas do que a compreensão do que está em jogo, seja no cenário geopolítico, seja no horizonte histórico, marcado pelo entrecruzamento de conflagrações socioambientais e metamorfoses do capitalismo.

Refiro-me, mais especificamente, aos seguintes fenômenos: o esgarçamento da relação entre neoliberalismo e democracia; o colapso da economia como lógica de crescimento, sustentada no binômio produção-consumo, dados os limites ambientais, a urgência da crise climática e a autonomia hiperbólica da especulação financeira, gerando bolhas e invertendo a relação entre o virtual e o material.

Como sabemos -e as únicas novidades aqui são a escala e a velocidade do processo, não sua substância¹-, o que era derivado converte-se em pressuposto; o que era poupança e investimento transforma-se em manejo de expectativas; o que era moeda com lastro torna-se mero critério de divisão do butim transnacional; juros e câmbio cada vez menos atuam como mecanismos nacionais de acumulação, estímulo e regulação, e cada vez mais são objeto de deliberação política das elites transnacionais; o que era infra estrutural, regido por leis próprias, submete-se crescentemente ao político, enquanto poder normativo, a serviço das estratégias imperiais.

Ocorre que, na medida em que a economia reduz-se a operações políticas, a esfera propriamente política -institucionalizada, regida por eleições- perde incidência sobre a economia, enquanto a soberania nacional submete-se à força. Só assim tem sido possível que EUA e União Europeia, os blocos formados pelos Estados-membros, seus Bancos Centrais, patrocinem o grande cassino das finanças globais, preservando a liquidez e a rentabilidade do capital financeiro (impedidos de falir), impondo “austeridade” e miséria às massas periféricas.

Se lastro há, se confiança e fluidez financeira há, nada mais têm a ver com uma idealizada saúde das moedas, entendida como expressão do equilíbrio de mercados, ou com estabilidade jurídica: o lastro é a garantia que os Estados oferecem, sua disposição de bancar a orgia multibilionária do rentismo. O lastro, portanto, fiador da economia capitalista, é o sequestro da democracia pelo capital financeiro globalizado, que arrastou consigo qualquer veleidade de autonomia política das nações e, mais ainda, das classes subalternas. Se a isso atribui-se o valor da racionalidade, o negacionismo fascista contemporâneo pode muito bem, por analogia, avocar para si o adjetivo racional. A razão enlouqueceu. Ou melhor, o poder (essa política redefinida como operação no interior de cliques) se sobrepôs à política e a natureza desse poder é transnacional, de tal modo que a geopolítica constitui não seu tabuleiro, não o plano em que atua, não o campo em que se move ou a linguagem em que performa, mas seu Outro, isto é, seu limite: a materialidade (militar, natural/ambiental/espacial/geográfica) que circunscreve aquilo que a virtualidade do capitalismo financeirizado de pretensões globais constrói como real. Em síntese, o Outro do poder hegemônico financeiro transnacional não são mais as sociedades e seus eventuais arranjos soberanos, autônomos e democráticos, mas a fronteira militar imposta por blocos antagônicos ao imperialismo estadunidense na ordem multipolar. São eles a contrapartida geopolítica da liberdade autoconferida das cliques bilionárias (compostas por rentistas e proprietários das Big-Techs).

A essa configuração explosiva, acrescente-se a revolução tecnológica, a emergência das corporações gigantescas e monopolistas, a expansão das redes virtuais, a precarização generalizada do trabalho (gerando o mundo selvagem em que desemprego chama-se empreendedorismo e desigualdade, meritocracia), a sobreposição entre mercantilização e informação, que se realiza quando cada unidade de que se compõe o impulso material e sígnico da comunicação converte-se em movimento das moedas virtuais (todas já o são, de uma ou outra forma), relegando a segundo plano a problemática dos conteúdos intercambiados, das fakenews e dos irreconciliáveis nichos de opinião.

Considerando esse contexto, formulo o argumento, numa versão, digamos, pedestre e coloquial: (1) O liberalismo faz tempo é letra morta, retórica de fraque, cartola e pince-nez, esfumou-se no vapor barato das ruas. Depois de abandonar as grandes causas da liberdade humana, refugiou-se no mercado, mas também aí liquefez-se, drenado pelo realismo pragmático dos grandes interesses. (2) O neoliberalismo, hipertrofia do cinismo liberal, ao provocar miséria em larga escala, nunca poderia conviver com o voto popular, com o regime das maiorias. Mancomunou-se, então, com as Big-Techs e deslocou a lógica centrista dos consensos para a proliferação de nichos incomunicáveis, no reino digital, onde as redes são escravas da tirania dos algoritmos: paradoxal universalismo solipsista. (3) Aos protagonistas da selvageria neoliberal restam duas opções, enquanto seguem promovendo guerra híbrida e lawfare: o recuo negociado para uma repactuação social-democrata, que perdeu seu momentum, ou o avanço para novos arranjos político-institucionais, o fascismo 3.0, turbinado pelas redes, em que a irrealização do mundo comum faz-se pela mescla do ficcionismo negacionista com a compulsão agonística (guerreira) dos ressentidos -sobretudo dos racistas e machistas ameaçados por movimentos sociais emancipadores e libertários. (4) O novo fascismo, esse neoliberalismo fardado, ao armar-se do discurso anti-globalista, prenuncia a nova lógica político-econômica, reagindo aos dois maiores eventos de nosso tempo, que assumem a forma de limites inexoráveis: (A) O esgotamento das reservas naturais, a degradação ambiental e a já contratada crise climática, cujos efeitos devastadores sobre a existência humana (e a vida no planeta) alcançarão primeiro e mais dramaticamente as classes subalternas das periferias do sistema. Já não há como ocultar o futuro próximo: desertificação, fome e ondas multitudinárias de migrantes. (B) O colapso da ordem transnacional unipolar sob hegemonia estadunidense, face à emergência do bloco liderado por China e Rússia.

De que modo esse quadro tão complexo e desafiador se projeta sobre a conjuntura política brasileira? Mais uma vez, o tema mereceria livros inteiros. O que se segue é apenas um sumário extremamente simplificado.

[1] Não parece fazer sentido conceber o próximo governo Lula (esperemos que o voto popular nos livre do fascismo bolsonarista) como capaz de nos salvar dessa enrascada histórica, abrindo caminho para a retomada do progresso sustentável e soberano, da democracia e do distributivismo reparador. Não são sequer comensuráveis as forças de um governo popular com os deslocamentos de placas tectônicas, descritos acima.

Que as mudanças domésticas mais elementares e indispensáveis exigirão muito mais do que progressivas conquistas eleitorais, em continuidade, sem rupturas e conflitos profundos, já está evidente. A leitura da cena paroquial bastaria para demonstrá-lo. O golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro provaram que a burguesia, a mídia, o Judiciário e as instituições armadas mandaram às favas os escrúpulos de consciência -a soberania, como a velha Itabira, é só um retrato na parede.

Entretanto, quando o fim das ilusões não encontra consolo em alternativas revolucionárias viáveis, e, portanto, só produz delírios sectários ou ceticismo imobilista e conservador -mesmo que as máscaras sejam jacobinas-, afirmar a impotência de um futuro governo de pretensões progressistas e, pior ainda, a inviabilidade, para a mudança, do caminho convencional, pode ser politicamente irresponsável e jogar água no moinho da reação.

[2] Há, contudo, uma abordagem mais positiva desse impasse. Se não é cabível, por óbvio, esperar o impraticável de um eventual governo Lula, ele poderia, sim, realizar uma dupla tarefa histórica de imenso significado: (A) Ao interromper o experimento neo-fascista no Brasil -conectado a Trump, Bennon, Le Pen, Orbán, et caterva-, o governo do PT impedirá que a nova estratégia do capitalismo neoliberal em escala global organize, nos trópicos, a nova institucionalidade que lhe convém, dada sua incompatibilidade absoluta com a democracia. Se nós temos o caminho da evolução política contínua e gradual impossibilitado, os autocratas tampouco se apropriarão dos meios para edificar suas guaritas na guerra híbrida em curso. Essa tarefa não é incompatível com alianças de Lula ao centro.

(B) Se o coração da besta pulsa de acordo com os arranjos das cliques do capital financeiro e das Big-Techs, e se a multipolaridade da ordem internacional corresponde a um limite para sua reprodução, o posicionamento do Brasil está longe 5 de ser insignificante no xadrez geopolítico. A meu juízo, a adesão ao projeto dos BRICS foi mais relevante para a destituição golpista do PT e a tentativa de eliminação política de Lula do que seu posicionamento na política interna, indiscutivelmente centrista e conciliador. Embora soe contraditório numa perspectiva estrutural – examinando-se interesses de classe em escala global-, a estreiteza de visão e o imediatismo de interesses da burguesia brasileira, além de contradições internas ao capital, provavelmente permitirão que lideranças do chamado centro político tolerem (não sem choro e ranger de dentes) a política externa independente de Lula, que Celso Amorim conduziu, exemplarmente.

(C) Por fim, quatro urgências poderiam figurar na agenda de um futuro governo Lula, levando-o a cumprir importante papel histórico, sem necessariamente romper (todas as) suas alianças ao centro. (1) A salvação da Amazônia, da biodiversidade brasileira, do extraordinário patrimônio ambiental, de modo que o cataclismo climático, mesmo inevitável, seja mitigado e o Brasil se afirme como potência ambiental positiva -talvez não haja manifestação de compromisso revolucionário internacionalista mais decisivo, hoje. (2) A afirmação inequívoca de respeito às sociedades originárias (sua destruição constitui perda irreparável e irreversível) e a seus territórios. (3) A reversão do quadro de fome e desamparo, recompondo os direitos sociais desconstituídos e aviltados, e iniciando o processo de redução das desigualdades. O centro político acabaria conformando-se com essa linha de atuação. (4) O compromisso no discurso e na prática com a exigência de respeito à legalidade -nenhum liberal ou conservador teria o displante de se opor, publicamente- por parte das instituições armadas, todas elas, o que implicaria a adoção de uma política antirracista e a defesa intransigente dos direitos humanos dos grupos sociais mais vulneráveis: não à violência policial, não ao encarceramento em massa.

1 Vide o importante livro organizado por Gilberto Maringoni, A Volta do Estado Planejador (SP: Contracorrente, 2021).

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. As conquistas científicas e tecnológicas estão a indicar que qualquer outra vinculação que não seja com o Poder Popular é vazia de sentido histórico.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador