Consumismo e publicidade infantil: novas faces de velhos problemas, por Elisa Cruz

O foco de ações públicas e privadas para a redução do consumismo infantil não deve contar apenas com incentivos para que pais e parentes reduzam a compra de brinquedos e roupas para as crianças

Agência Brasil

Consumismo e publicidade infantil: novas faces de velhos problemas

por Elisa Cruz

Dados da Confederação Nacional de Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) registram que cerca de 123 milhões de pessoas planejam realizar compras de Natal, com movimentação prevista de R$ 68,4 bilhões na economia. O cenário de otimismo é compartilhado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), que estima aumento de 4,3% no comércio varejista em comparação ao ano de 2020.

As projeções de movimentação da economia para o Natal com certeza irão impactar sobre a circulação de produtos e serviços destinados a crianças e adolescentes, grupo que influencia mais de 80% do consumo das famílias no país, segundo dados do Instituto Alana. O peso da participação infanto-juvenil no consumo das famílias faz com que cada vez mais novas estratégias de marketing e publicidade sejam utilizadas para conquistar esse público e alterar os padrões de consumo.

A estratégia mercadológica de inserir crianças e adolescentes como destinatários mais importantes da publicidade tem potencial de causar impactos negativos sobre o desenvolvimento deles, com a potencialização de sentimentos de frustração, ansiedade e outros transtornos de saúde, de acordo com o Núcleo Ciência pela Infância (USP).

O consumo de bens e serviços está em níveis que merecem atenção. O foco de ações públicas e privadas para a redução do consumismo infantil não deve contar apenas com incentivos para que pais e parentes reduzam a compra de brinquedos e roupas para as crianças. É essencial o aprimoramento dos mecanismos de regulação da publicidade infantil.

Ainda hoje usa-se a combinação entre o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que proíbe a publicidade abusiva, incluída aquela que tenta prevalecer da idade do destinatário (art. 51), o art. 227 da Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto a adoção do principio do melhor interesse e a doutrina da proteção integral. Embora sejam normas reconhecidas como avançadas e que protegem de modo adequado os direitos da criança e do adolescente, há um alto grau de abstração que dificulta entender exatamente quais comportamentos são ou não permitidos na publicidade infantil.

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) buscou dar maior objetividade na regulamentação ao editar a Resolução 163/2014 e proibir a “prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”, mas o conhecimento e aplicabilidade dessa regra é menor por não se tratar de lei em sentido formal.

A baixa eficácia da legislação existente pode ser medida a partir do monitoramento feito pelo Instituto Alana sobre os comerciais transmitidos em canais de TV por assinatura no ano de 2020: 959 anúncios, o que equivale a um anúncio a cada três minutos.

A situação ganha contornos mais complexos com novas formas de publicidade infantil, como o unboxing e a contratação de crianças e adolescentes como influencers em redes sociais.

Caso conhecido na mídia é o de Ryan Kaji, americano de nove anos de idade que ficou pela terceira vez seguida no topo da lista de mais bem pagos no YouTube em 2020. Ele faturou mais de 150 milhões de reais com vídeos de unboxing. Mesmo em casos nem tão rentáveis, o unboxing tem potencial de gerar riscos à criança e ao adolescente ao associar a satisfação de desejos ao consumo e à veiculação da imagem nas redes sociais.

O trabalho infantil é outra situação escondida sob o sucesso desses vídeos. Muito mais associado à exploração física de crianças e adolescentes na produção industrial e agrícola, o trabalho infantil consiste no emprego de criança ou adolescente em qualquer tipo de trabalho e é ilegal, salvo para fins artísticos, quando exige autorização judicial, ou a partir dos 16 anos de idade, vedado o trabalho noturno, perigoso ou insalubre (art. 7º, XXXIII, da Constituição).

Para o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), os youtubers mirins são uma nova forma de trabalhadores infantis e expõe as crianças a riscos, violências e limitações no desenvolvimento decorrentes de erotização precoce, distúrbios de autoestima e autoimagem, acúmulo de responsabilidades e pressões não compatíveis com a fase de desenvolvimento infanto-juvenil.

A França é um dos países pioneiros no combate ao consumismo e ao trabalho infantil com a aprovação da Lei de 19 de outubro de 2020, em vigência desde abril de 2021. A lei francesa exige que os pais obtenham autorização para que seus filhos participem de vídeos e deverão ser informados previamente das consequências sobre a exposição da imagem das crianças na internet. Há também a exigência que parcela dos rendimentos auferidos devem ser depositados em conta poupança para serem liberados após a criança ou adolescente completar 18 anos.

Outro campo de atuação insuficiente na prevenção ao consumo infantil são as plataformas de games, como por exemplo a Roblox. Com 42,1 milhões de usuários, incentiva a publicidade direcionada ao público infantil para que cada perfil divulgue seu jogo, grupo ou peça de roupas dos seus sonhos para a promoção dos lugares, roupas, modelos, decalques etc., conforme as regras de desenvolvimento da plataforma. Essa atividade publicitária visa a potencializar o consumo infantil dentro e fora do ambiente e não conta com nenhuma regulação, salvo os controles parentais, que são limitados e não autorizam um controle efetivo sobre o conteúdo acessado e nem mesmo de idade mínima para a utilização da plataforma.

Publicado originalmente no Valor Econômico e enviado ao Jornal GGN pela autora.

Elisa Cruz é Professora Doutora de Direito Civil na FGV-RJ, Defensora Pública na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, autora do livro Guarda Parental: Releitura a partir do Cuidado (2021).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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