“Não existe resposta única para a Cracolândia”

Sugerido por Almeida

Mariana Desidério, no Brasil de Fato

Para padre Julio Lancellotti, ação da prefeitura na região da Luz tem avanços, mas não olha para as necessidades das pessoas

A atual operação promovida pela prefeitura na cracolândia tem sido vista como um avanço em relação à ação deflagrada há dois anos, quando policiais usaram bombas de gás e tiros de borracha para dispersar os dependentes de crack que circulam pela região, no centro de São Paulo. 

Porém, não é hora para muito otimismo na opinião do padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral da População de Rua em São Paulo e defensor histórico dos direitos humanos. Segundo ele, também há outro tipo de violência na ação que ocorre agora. “Há sofisticação, mas o resultado que se busca é o mesmo: as ruas da cracolândia limpas”, afirma. 

Aos 65 anos, além de coordenar a pastoral, Lancellotti é responsável pela paróquia de São Miguel Arcanjo, na região da Mooca.  Nesta entrevista ao Brasil de Fato SP, ele critica a forma como nossa sociedade trata os grupos mais vulneráveis e defende atuações políticas mais enérgicas, inclusive não pacíficas. “Jesus era mais para Black Bloc”, dispara.  Leia a entrevista:

Como avalia a operação Braços Abertos, da prefeitura, que está colocando os moradores de rua da cracolândia para viver em hotéis e trabalhar na varrição?
Ainda não dá para fazer uma avaliação completa. O fundamental é saber como será feito o acompanhamento. Mas algumas coisas chamam a atenção: hotel não é moradia definitiva. Quanto tempo eles vão ficar no hotel? Depois: por que todos têm que trabalhar na varrição? Eu acho que pode ter uma diversificação. 

Acha que isso acaba padronizando demais?
Acho que é uma resposta institucional, e, portanto, planejada dentro de um modelo. Não é construída a partir das necessidades das pessoas. A operação pode ter seu aspecto de redução de danos e está tendo agora muita visibilidade. Mas a gente tem que ver como isso vai se dar no cotidiano. Há uma preocupação política de querer se diferenciar de outros. Mas também há um pragmatismo. Pensa-se que tem que ter um resultado. Não se foi à causa das questões, está se trabalhando por enquanto com os efeitos. 

Essa medida tem sido vista como um avanço em relação àquela tomada dois anos atrás, quando houve forte repressão policial. O que o senhor acha?
Eu considero que os métodos de controle se sofisticam. Uns são mais trogloditas, outros menos. Acredito que a violência não é só a cassetada, o spray de pimenta, a bomba de gás, a polícia andando atrás. A violência também é simbólica. É violento colocar para trabalhar sem ter direitos trabalhistas, ou ainda não respeitar a subjetividade humana. O que a gente vê é que há uma sofisticação. O resultado que se busca é o mesmo: as ruas da cracolândia limpas.

Mas qual seria a forma correta de lidar com essa questão?
O que temos que ter em mente é o seguinte: como a cidade vai ser mais humana e vai cuidar daqueles que são mais vulneráveis? Essa é a questão fundamental. A população de rua não é a única vulnerabilizada da cidade. Também existem os que não têm moradia, os que têm transtornos mentais, as pessoas com necessidades especiais, os idosos. Nossa cidade é um lugar em que tudo é para quem é esperto, para quem tem mais força, mais autonomia. Ela está inserida dentro de um modelo de competição, de premiação por consumo, não é uma cidade voltada para agregar.

Os idosos não são cuidados na nossa sociedade?
Outro dia perguntei na igreja: Quem leva o cachorro para passear? Todos levam. E quem leva a vovó para passear? Muito poucos. É mais fácil pegar o cocô do cachorro do que trocar a fralda do vovô. Nós estamos vivendo uma sociedade do individualismo. Aumenta o número das pessoas que vivem sozinhas. As pessoas querem pensar só no seu próprio bem-estar, não o bem-estar do coletivo, o bem-estar dos mais fracos. A grande mudança seria pensar o bem-estar dos mais fracos.

Qual o cenário dos albergues para a população de rua em São Paulo hoje?
Em algum momento, os albergues podem ser necessários. Qual o nosso problema? Nós tornamos os albergues a única resposta. A mesma lógica que coloca todo mundo pra ser varredor. A população de rua é bastante heterogênea. Não se pode ter uma mesma resposta para todos. 

E as condições desses albergues? No final de 2013 houve protesto por causa disso.
Sim, porque eles estão precarizados, por falta de manutenção, falta capacitação das pessoas que lá trabalham, e porque os albergues não estão seguindo a própria diretriz nacional da política para a população de rua, que prevê que tenham um número reduzido de pessoas, não passando de cem. E hoje nós temos albergues com 200 pessoas que só têm dois chuveiros. 

Mas querendo ou não é um abrigo para eles, não?
Nós temos uma ideia muito assim: para o pobre qualquer coisa está bom. Pensamos assim: “Você não tem o que comer, eu estou te dando essa comida aqui. Você está achando ruim por quê? Estou te dando essa calça velha, só está um pouco apertada…” Muitas vezes nós somos uma sociedade que nivela tudo por baixo. 

Quais soluções deveriam ser pensadas, além dos albergues?
Nós temos sugerido muito a locação social, que hoje é um programa pequeno, mas ajuda. Hoje, já há legislação no sentido que o programa federal Minha Casa, Minha Vida tenha uma porcentagem para população em situação de rua. Que eles possam ingressar nas políticas habitacionais como pessoas que não têm capacidade de endividamento. 

Quatro moradores de rua foram presos na manifestação em dezembro contra as condições do albergue. Falou-se que eles eram presos políticos. Por quê?
Porque lendo o boletim de ocorrência e vendo tudo o que aconteceu com eles, nós percebemos que a motivação não foi técnica. A grande questão é que há uma palavra-chave hoje: manifestação. Esse ano será de grande repressão por causa da Copa. Todas as manifestações serão duramente reprimidas, e essa manifestação das pessoas em situação de rua mostra que há um peso político muito forte nesse sentido. Há uma ideia no poder público de que é preciso coibir qualquer forma de expressão. Nos atos que nós fizemos contra a prisão deles, a quantidade de polícia que nos acompanhou era o triplo da de manifestantes. 

Quem são as pessoas que vivem na rua na cidade de São Paulo?
Em São Paulo há o Censo da População em Situação de Rua. Há um perfil de maioria masculina, mas há o aumento de mulheres e famílias na rua. Há muitas pessoas que passaram pela escola. A maior parte é do Sudeste. Como essa população é muito heterogênea, você encontra na rua pessoas com nível universitário, com nível médio. A maior parte é alfabetizada, ou passou pelo mundo do trabalho e viveu com a família, não nasceram na rua. Boa parte está na rua por causa de desavenças familiares, pessoas com problema de transtorno mental e que a família não aguenta mais. Ou pessoas que usam álcool e a família não sabe mais como lidar. Como não há uma assistência, essas pessoas acabam indo para a rua.

Como a cidade trata essas pessoas?
É uma população muito estigmatizada e muito associada à criminalidade. De fato há vários egressos do sistema penitenciário na rua, mas nós não podemos lidar com essa intolerância tão grande. Uma pessoa em situação de rua não entra num shopping. Eles são impedidos do convívio social. Mas a pessoa que está na rua tem uma história. Por isso, várias práticas vêm sendo discutidas para garantir que essas pessoas tenham direito ao SUS, a possibilidades de educação, de cultura, de lazer.

Como o senhor avalia a atuação do novo Papa?  
O Papa Francisco é um presente, mostrando para nós que a igreja está no meio do mundo, enlameada e suja. Ele mesmo diz: “eu prefiro uma igreja ferida e enlameada do que doente e fechada”. É o caminho para uma igreja sem luxo, uma igreja servidora que caminha no meio do povo, que não tem medo de sentar na rua e partilhar a vida com o povo.

O papado dele caminha então nessa direção mais humana?
Sem dúvida. O Papa Francisco está buscando mostrar um caminho muito mais humano, muito mais próximo de Jesus. Jesus não era nenhum moralista, não impunha nada, ele era aquele que queria uma vida mais humana, que as pessoas fossem felizes. Jesus não veio impor uma religião, ele veio salvar e libertar as pessoas de toda a opressão.

O senhor acha que religião tem a ver com política?
Jesus foi condenado como preso político, foi executado, condenado à pena de morte. Ele tinha mais a ver com a vida do povo do que com qualquer outra coisa. As coisas são interligadas entre si, não são separadas. Sabe um grupo que eu gosto muito? Os Black Bloc. Eles são muito humanos, são jovens com vontade de lutar, acho impressionante.

O que acha do uso que eles fazem da violência?
É uma resposta à violência que está aí. Eles destroem os símbolos do poder. Você acha que eles dão prejuízo para os bancos por quebrar uma agência? Os jovens se expressam de muitas maneiras. Não adianta só combatê-los, é preciso entendê-los. O Papa Francisco disse algo interessante nesse sentido: “Eu não gosto de uma juventude que não se manifesta, apática, amorfa.” É preciso agitar. Jesus era mais para Black Bloc.

Publicado originalmente em: http://www.brasildefato.com.br/node/27226

Redação

4 Comentários

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  1. Ok, ele apresentou uma série

    Ok, ele apresentou uma série de problematizações e nenhuma resposta. Não vejo utilizade nisso. O tratamento humano que ele propõe, com direitos trabalhistas e tudo mais, não cabe no orçamento do município de São Paulo. O probema que o formulador de políticas públicas tem de ser mais pé no chão, propor uma resposta factível dentro das limitações orçamentárias.

    Boa parte da esquerda fica presa nessa coisa de que devem ter soluções mais estruturais, de longo prazo etc. Como elas nunca são possíveis, o problema persiste, dando lugar para ações mais higienistas de governo de direita.

    Outra coisa é tratar como absurdo a limpeza da Cracolândia. Faça-me o favor. É uma área com metrô, iluminação e água, praças, equipamentos culturais que está competamente subutilizada. O centro de São Paulo tem um potencial enorme de ser moradia da classe C e D, das pessoas que hoje passam horas esmagadas no metrô e ônibus. Limpar o centro tem sim um caráter progressista.

    Sempre que leio as declarações absurdas do governador Alckmin (de que a polícia estava certa) ou as declarações bonitas, mas inúteis do ponto de vista do formulador de políticas públicas, entendo que Haddad não tinha como ter uma estratégia melhor na região. Dentro das restrições da PMSP, correlação de forças políticas e respeito à dignidade do ser humano, não existe alternativa melhor que a testada por Haddad.

  2. Devagar e sempre

    O pe Julio é uma pessoa muito inteligente e um lutador de respeito, mas creio que neste caso ele comete um erro de avaliaçao. Primeiro:porque trata-se de um primeiro passo, nao é a soluçao definitiva; segundo: porque apesar da questao relacionada à proposta de pagamento pelo recolhimento do lixo, creio que a situaçao deve ser vista como auxilio no processo, visto que enquanto faz o trabalho, o adicto nao está se drogando; terceiro: a hospedagem nos hoteis tira da rua pessoas que iam continuar sem teto de qualquer maneira, permitindo que eles possam ter um pouco de paz pelo menos na hora de dormir, porque na rua eles sao muito mais vulneraveis.  Enquanto isto, procura-se novas soluçoes para o problema com a participaçao da area de direitos humanos do governo federal, ja que o governo estadual acredita na maxima: direitos humanos para humanos direitos….

  3. Entrevista do Pe. Lancellotti.

    Olha, achei bem oportuna e inteligente a entrevista com esse sacerdote. Ele quer fazer os reparos na origem e acho que tem razão. Porém, não posso concordar com ele quando se refere aos “Black Bloc”. Apoio à violência seja que forma for só pode gerar outra violência. Parece-me que ele quis se referir à revolta como meio de dar prejuízo a quem se esconde na camada mais privilegiada. Isso não é bom de ser ver em um pais, eminentemente, capitalista. O sistema favorece o capital e por isso quem tem mais pode mais. Assim, incentivar o vandalismo é o mesmo que apedrejar o sistema.

  4. Fácil assim

    Tudo muito bom, tudo muito bonito.

     

    Como já diziam: falar é fôlego

     

    Quero ver é a Igreja (nesse caso a católica), com seus bilhões (ou trilhões, provavelmente) resolver algum desses casos que o padre cita. Enquanto temos pobreza, cracolândias, desabrigados o banco do Vaticano só vai engordando (e o bolso de alguns de lá também).

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