A geração escoliose e seus temíveis espertofones, por Dafne Sampaio

Do Yahoo!
 
A geração escoliose e seus temíveis espertofones
 
Por Dafne Sampaio | Mexidão – dom, 1 de dez de 2013
 
Entrei no ônibus e eles estavam lá, hipnotizando metade dos passageiros. Pouco depois desci, peguei o metrô e a cena se repetiu: homens e mulheres de todas as idades e jeitos quase todos de corpos curvados, olhando para baixo a passear com seus dedos por espertofones e tablets de última e não tão última geração. Tem sido assim no mundo todo e a tendência é aumentar e se multiplicar em inúmeras plataformas. Talvez daqui a alguns anos essa gente ganhe corcundas e seus descendentes já nasçam assim, ou talvez voltem a ficar eretas. Vai saber o que pode acontecer.
 
Mas contrariando as lamentações dos saudosistas essas pessoas curvadas continuam interagindo, talvez até mais, só que com pessoas que não estão ali fisicamente, olho no olho. Isso é bom por alguns lados, afinal as informações navegam mais rapidamente e com menos interferências e, efetivamente, é possível conhecer mais pessoas e posteriormente trazê-las para a vida real. O lado ruim, pelo menos um deles, é que essa virtualidade transforma tudo em imagem, desmaterializa. Imagem não grita, não chora, não revida. Dá pra torcer e retorcer uma imagem.

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Essa desumanização, que já acontece no universo muito real do nosso cotidiano – pensem nos invisíveis moradores de rua, por exemplo, ou em minorias que tem negados direitos essenciais -, ganhou novas e absurdas fronteiras no vasto mundo da internet. Agora, acrescente nessa receita pitadas industriais de machismo e o resultado são suicídios, traumas, famílias em pedaços.

 
Nesta semana, um garoto menor de idade de Manaus publicou no Facebook um vídeo curto de uma singela orgia de três caras e uma garota. Nada errado no ato em si. Sexo é divertido, é saudável, é massa. Sendo consentido por ambas as partes, claro. Mas aí no final do vídeo a garota percebe o celular e pergunta: “Você não tá tirando fotos, né?”. Não, ele estava filmando mesmo e depois publicou na rede social. Antes ser tirado do ar, o vídeo já possuía mais de 2000 compartilhamentos e a maioria dos comentários reprovava o comportamento da garota. Poucos falavam da atitude cretina do garoto de postar o vídeo.
 
Até onde sei, a garota de Manaus tirou de letra os insultos machistas de homens e mulheres. Não aconteceu o mesmo com Giana Laura Fabi (16 anos, Veranópolis, RS) e Julia Rebeca (17 anos, Parnaíba, PI). Ambas foram vítimas de vídeos compartilhados em espertofones pelo programa Whatsapp e não aguentaram os julgamentos, os insultos, a vergonha. No Twitter, Giana escreveu “Hoje de tarde dou um jeito nisso. Não vou ser mais estorvo pra ninguém”, enquanto Júlia disse que “É daqui a pouco que tudo acaba. Eu te amo. Desculpe não ser a filha perfeita, mas eu tentei… desculpa, desculpa, eu te amo muito. Eu tô com medo mas acho que é tchau pra sempre”. As duas suicidaram. Outra vítima no Whatsapp, a goiana Fran, não se matou, mas “morreu em vida”.
 
Para esses machinhos exibicionistas que jogaram os vídeos na rede – e para todos e todas que compartilharam – essas garotas não passam de carne, de imagem de carne. E a intimidade tem que ser compartilhada para risos, escárnios e ofensas. Se algo sair do controle sempre é possível apelar para um “fui mal interpretado(a)”, “era só uma piada” ou “não achei que fosse acabar desse jeito”, como qualquer Danilo Gentili ou Rafinha Bastos da vida boçal.
 
Claro que machismo, intolerância, ignorância e espírito de linchamento não são invenções da internet. São coisas que andam dentro da gente desde que tivemos a brilhante ideia de descer das árvores. Mas essa geração escoliose e seus espertofones conectados deram velocidade a um certo vazio ético. Quem está errado é quem compartilha intimidades sem consentimento. Não quem faz ou gosta de sexo. E muito menos meninas tão jovens que só estão descobrindo e experimentando do mesmo modo que os meninos. “Nossa sociedade costuma julgar as mulheres. É como se o sexo denegrisse a honra delas”, disse o deputado federal Romário, que apresentou no fim de outubro ao Congresso um projeto de lei que transforma em crime a divulgação indevida de material íntimo.
 
Enquanto isso, enquanto essa geração de tortos afetivos não levantar os olhos de seus espertofones para ver o quanto de sentimentos, sonhos e desejos estão ao seu redor e lá também, dentro de seus aparelhinhos, todos serão culpados por histórias tristes como as de Giana, Júlia e Fran. Porque uma imagem é sempre mais que imagem, sexo é ótimo e respeito é pra quem tem. Simples assim.
Luis Nassif

12 Comentários

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  1. Bom, antes do computador

    Bom, antes do computador entrar definitivamente na minha rotina eu era totalmente antenada, falava e escrevia corretamente, minha vida cultural era repleta de conhecimentos gerais, tinha muitos amigos e nos visitávamos com frequencia. Fazíamos as maiores festas, tomávamos chimarrão com os vizinhos aqui da rua, brincávamos, jogávamos volei, futebol, basquete, dançávamos. Bom demais!!!!!!!!!! Depois do computador, do celular, faço tudo isso, mas virtualmente. Pecado meu, mas tive tudo isso na real, vivi de forma plena esse espetáculo que é estar ao vivo com os, agora, internautas, celulóides. O virtual nos subjugou, infelizmente. Mas, uma coisa não abro mão: o celular é só pra emergências e recados, nunca para ser meu companheiro, meu amigo, meu amor, minha diversão. Por isso, acho que da escoliose estou livre.

  2. George  Owell na cabeça!

    George  Owell na cabeça!

    Já reparei tambem, parece que algumas pessoas não  querem mais se comunicar com  outras, falta

    de paciência tavez..sei lá. Bem mais estranho que isso e ver alguem empurrando um “carrinho

    de bebê e quando se olha de perto descobre que o mesmo na verdade   transporta um cãozinho de chuca  

     e até “chupeta-osso.

  3. Bem, eu penso que quando

    Bem, eu penso que quando inventaram a escrita muita gente estranhou a “escoliose” de pessoas lendo. É assim mesmo. É complicado mas acho que a sociedade acaba por se acostumar com toda e qualquer “evolução” e encontra meios para se adaptar aos “contras” e aproveitar os “prós”. Quanto aos vídeos e fotos íntimas divulgados, vai chegar o ponto em que não se poderá mais saber o que é real ou o que é montagem, o que é verdadeiro ou fake na Internet, etc. E aí a IMAGEM não terá mais significado, e ninguém mais precisará temer qualquer violação de sua intimidade em fotos ou vídeos, pois ninguém acreditará mesmo…

  4. pior que escoliose..

    muito pior que sofrer de escolise será a epidemia de carência de  Alteridade (a capacidade de se colocar no lugar do outro na relação interpessoal (relação com grupos, família, trabalho, lazer é a relação que temos com os outros) com consideração, identificação e dialogar com o outro  que começa a se disseminar de forma alarmante na sociedade com um comportamento emsimesmado e alienado..

  5. Eu só queria saber.

    Eu só queria saber se essa Dafne Sampaio é a mesma que trabalhava na revista NET há uns 3 ou 4 anos. Se alguém puder me informar, agradeço. Espero que não seja a mesma pessoa, porque aquela era fascista até a correntinha de ouro no pescoço.

  6. Parece que o problema, para a

    Parece que o problema, para a autora, não é a existência do machismo e a repressão da sexualidade feminina. É o escancaramento disso que as redes sociais permitiram. Da mesma maneira que, para os racistas, o problema não era o racismo enrustido, mas o fato de serem forçados a se manifestarem pela política de cotas.

    Não culpem a tecnologia pelo mau uso que é feito dela, consequência da estruturação das relações humanas. Tratem de mudar essas relações, isso sim!

    Eu trato as pessoas, pela Internet, da mesma maneira que as trato na vida cotidiana. Amo o mesmo tipo de pessoas e odeio o mesmo tipo de canalhas. O que a Internet me permite é manter contato muito mais próximo com amigos que as vicissitudes da vida levaram para plagas distantes, assim como fazer amizades REAIS com outras tantas pessoas geograficamente distantes, mas por outras razões, muito próximas que, de outra forma, eu jamais teria encontrado.

    Em vez de choramingar de saudade por um passado mítico que nunca existiu – o apanágio de todo o reacionarismo, como o nazismo, que idealizava, no passado, a comunidade mítica da raça superior ariana, ou o fundamentalismo salafista, que aspira ao retorno do paraíso na terra que era o Califado – façam bom uso da tecnologia para estreitar as relações com as pessoas.

    Quando não havia Internet, os que tendem a se isolar faziam uso da televisão. Com o agravante de que não tinham nem a possibilidade da reciprocidade, porque a TV é via de mão única.

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