Inspirado nos livros do lixo, ex-catador virou médico

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornal GGN – Ex-catador, Cícero Batista sonhou em entrar para a carreira de medicina com livros que encontrava no lixo. Livros de biologia e ciências eram os que deixava Cícero mais feliz. Pegava o que podia no lixo para ganhar algum dinheiro, somado ao trabalho de vigiar carro e vender latinhas. “Diante da minha situação social eu não tinha escolha. Era estudar ou estudar para conseguir sair da miséria extrema”, conta.
 
Sugerido por Cláudio José
 
Do Uol Educação

Pegava livros no lixo: ex-catador de Brasília conta como virou médico

O dia seis de junho de 2014 é uma data muito importante para Cícero Pereira Batista, 33. É data da sua formatura, quando ele fez o “Juramento de Hipócrates” e jurou fidelidade à medicina. O diploma na tão sonhada carreira foi um investimento de quase oito anos da vida do ex-catador.

Natural de Taguatinga, cidade satélite a 22,8 km de Brasília, Cícero nasceu em família pobre e precisou de muita perseverança para alcançar a formação em uma das carreiras mais concorridas nos vestibulares. Ele só começou a fazer a graduação aos 26 anos.

“Minha família era muito pobre. Já passei fome e pegava comida e livros do lixo. Para ganhar algum dinheiro eu vigiava carro, vendia latinha. Foi tudo muito difícil pra mim, mas chegar até aqui é uma sensação incrível de alívio. Eu conseguir superar todas as minhas dificuldades. A sensação é de que posso tudo! A educação mudou minha vida, me tirou da miséria extrema”, conta Cícero.

O histórico familiar de Cícero é complicado: órfão de pai desde os três anos e com mãe alcoólatra, o médico tinha dez irmãos. Dois dos irmãos foram assassinados.

Quando tinha 5 anos, o menino pegava o que podia ser útil no lixo. Inclusive livros, apesar de não saber ler. Com o tempo, conta o ex-catador, eles foram servindo de inspiração. Ficava mais feliz quando encontrava títulos de biologia, ciências. Certa vez encontrou alguns volumes da Enciclopédia Barsa e “descobriu Pedro Álvares Cabral, a literatura, a geografia”.

Cícero é o único da família que concluiu o ensino médio e a graduação. Para ele, a educação era a única saída: “Diante da minha situação social eu não tinha escolha. Era estudar ou estudar para conseguir sair da miséria extrema”. Ele terminou o ensino fundamental na escola pública em 1997 — na época as séries iam do 1º ao 8º ano. Entre 1998 e 2001, fez o ensino médio integrado com curso técnico em enfermagem.

Ajuda dos professores e colegas

“Quando eu fazia o ensino médio técnico eu morava em Taguatinga e estudava na Ceilândia. Não tinha dinheiro para o transporte e nem para a comida. Andava uns 20 km, 30 km a pé. Muitas vezes eu desmaiava de fome na sala de aula”, explica.

Ao perceber as dificuldades do rapaz, professores e colegas começaram a organizar doações para Cícero de dinheiro, vale-transporte e mesmo comida. “Eu era orgulhoso e nem sempre queria aceitar, mas, devido à situação, não tinha jeito. Eu tinha muita vergonha, mas nunca deixei de estudar”, conta.

Na época da faculdade, Cícero também recebeu abrigo de um amigo quando passou em medicina numa instituição particular em 2006 em Araguari (MG), a 391 km de Brasília. “Frequentava as aulas durante a semana em Minas e aos finais de semana vinha para Brasília para trabalhar. Era bem corrido”, diz. Ele conseguiu segurar as contas por um ano e meio. “Eu ganhava cerca de RS 1.300 e pagava RS 1.400 [de mensalidade]. Até cheguei a pedir o Fies [Fundo de Financiamento Estudantil] por seis meses, mas no fim as contas foram apertando ainda mais e parei”.

Ao voltar para Brasília decidiu fazer Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) para conseguir uma bolsa do Prouni (Programa Universidade para Todos). Estudou por conta própria, fez a prova no final de 2007 e conseguiu uma bolsa integral em uma universidade particular de Paracatu (MG), a 237,7 km de Brasília. Foram mais seis meses — e Cicero voltou a Brasília mais uma vez.

No ano seguinte, fez o Enem mais uma vez. Ele queria estudar mais perto de casa por causa do trabalho — ele era técnico de enfermagem concursado — e da família. Com sua nova nota do Enem, ele conseguiu uma vaga com bolsa integral na Faciplac (Faculdades Integradas da União Educacional do Planalto Central), na unidade localizada na cidade satélite Gama, 34,6 km de Brasília.

“Tive que começar tudo zero novamente. Tive vontade de desistir na época. Poxa, já tinha feito um total de dois anos do curso de medicina, mas não consegui reaproveitar nenhuma matéria. Mas no fim deu certo”, conta o médico que enfrentou os anos da faculdade também com a ajuda dos livros do projeto Açougue Cultural, uma iniciativa que empresta livros gratuitamente nas paradas de ônibus de Brasília.

Atualmente, Cícero é diretor clínico de um hospital municipal e trabalha em outros dois. O momento para ele agora é o de “capitalizar” [ganhar dinheiro] para melhorar de vida e ajudar a família. Cursar um doutorado fora do Brasil também está entre seus planos.

“Não há desculpa para não seguir os sonhos. É preciso focar naquilo que se quer. Não é uma questão de inteligência e sim de persistência. A educação mudou a minha vida e pode mudar a de qualquer pessoa”, conclui.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

29 Comentários

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  1. Emocionante!!!

    Parabéns ao Cicero!  Que belo exemplo ! Este é o jovem brasileiro que merece ser reverenciado!  E pensar que outros jovens com condições de vida muito superiores, vão às ruas quebrar patrimônio público e privado, e incediando o país. Intitulam-se ativistas e clamam por liberdade.  Mas não estamos numa ditadura!  Já houve época em que era proibido falar em liberdade! Que mirem-se em Cícero, que estudem e trabalhem !  Toda a minha admiração ao Cícero, que tenha uma bela carreira e que continue a demonstrar extrema ternura nesse lindo olhar! Que belo post!

  2. Olha a Vida Aí, Imitando a Arte!

    … Bom dia.

    Ou será o contrário? Ao ver o depoimento deste estudioso e tenaz cidadão, não pude deixar de me lembrar do vídeo “Meu Amigo Nietzsche”. Uma notícia destas serve de alento e detona o “mundo cão” dos coxinhas.

    http://vimeo.com/79532028

  3. Comparem com o candidato…

    Comparem a vida deste cidadão a vida que levou outro cidadão: o candidato a presidente do Brasil Aécio Neves. Aécio tem 20 anos a mais que Cícero. Em sua longa vida não fez nada além pegar ondas em Ipanema, cheirar pó, encher a cara e bater em mulher. Não estudou nada, não teve nenhum esforço para estar onde está, e lá estando continuando fazendo nada… Alguém acha que uma pessoa com este currículo está apta a governar o país onde existem milhares de Cíceros que todo dia fazem o impossível somente para ter uma vida digna, de gente, ser humano.Porque a gente vai botar um incompetente para governar um povo de gente tão habilidosa e perseverante como Cícero?

  4. Parabéns,muito bacana.
    Parabéns,muito bacana. Exemplo para muita gente que se sente soterrada pela situaçao de pobreza ou para quem se acha beneficiado pela situaçao confortável financeira para não se achar na condição de estudar e melhorar na vida,principalmente no aspecto moral. Parabéns.

  5. talvez o esforço nobre do

    talvez o esforço nobre do pobre catador e sua história de sucesso educacional possa inspirar MEC e MinC a lançarem mais programas federais para jogar mais e mais livros no lixo…

  6. Uma exceção digna de

    Uma exceção digna de louvor.

    Mas não nos esqueçamos que é apenas uma exceção. Um cursó de medicina particular custa  em algumas faculdades cerca de 6 mil reais por mês.

    Faculdades públicas como a UNICAMP chegam a ter 120 alunos por vaga (!) nos vestibulares de medicina. E os outros 119 alunos reprovados, o que a gente recomenda para eles?

    Enquanto milhares de pessóas tentam uma carreira num cursó superior, outras centenas de milhares não conseguem.

    Enquanto faltam médicos, de um lado e outros milhares tentam em vão chegar a se formar em medicina, o país dorme em berço esplêndido.

    Impávido colossó a beira do abismo.

    A falta de médicos não é por preguiça do povo brasileiro de estudar, como alguns jornalistas coxinhas gostam de alardear aos quatro ventos.

    É antes o resultado de uma legislação corporativista criminosa que rege este país com mão de ferro. A recepção dos médicos cubanos com vaias por outros “médicos” ilustra esta realidade. Os profissionais formados criaram um poderosó lobby no Congressó, para barrar qualquer lei que facilite a formação de novos profissionais.

    As dificuldades são inúmeras, desde burocracia na hora do estudante fazer estágio, (carga horária inflexível para estágio, o estudante tem de mendigar estágio nas portas das empresas, as vezes em vão, etc) até a burocracia no reconhecimento do diploma (algumas universidades ministram cursós, como o de magistério, mas não tem reconhecimento pelo MEC; pergunta-se porque o MEC permite que uma universidade ponha um cursó para funcionar sem estar regularizado? Ou há uma desórganização sem tamanho dentro do MEC ?)

    Faltam não só médicos, mas engenheiros, técnicos, e muito mais, e isto se reflete no aumento do custo de mão de obra destes profissionais, e também no custo Brasil, que colabora para termos um crescimento de PIB da ordem de 1% ao ano. As indústrias fogem do país devido à burocracia, à elevada carga tributária, e à dificuldade em encontrarem profissionais formados no mercado de trabalho.

    Não é a toa que só os países com algum grau de autoridade no executivo conseguem crescer. Aqui o Presidente tem de pedir permissão ao congressó até para ir ao banheiro. Se fosse na China, em Cuba, ou mesmo nos EUA, o departamento de de segurança nacional já tinha enquadrado os parlamentares em nome do progressó do país.

    O que levou estes países a dar plenos poderes só executivo (centralizar o poder)  foram tempos difíceis, como guerras, depressões econômicas, fome intensa. O Brasil pelo jeito vai esperar estes tempos chegarem para mudar sua legislação.

      1. Todos os posts resposta

        Não.

        Realmente todas as respostas acima indicam que não entenderam nada do que escrevi.

         

        Aqui no Brasil, é 8 ou 80. Mais poder para o executivo não significa necessariamente ditadura, mas centralização.

        Na Argentina, Cristina Kirschner quis criar a Ley de Médios e criou. Isto no Brasil seria impensável, pois Dilma teria de pedor “benção” pro Congresso antes, logicamente que iriam negar.

        Cadê o autotitarismo na Argentina? Só centralização de poser.

        O que estraga nossa centralização é que há um sistema de “base aliada”, diferentemente de países onde o Congresso é composto de poucos partidos como os EUA, o sistem base aliada só seve para impor ao presidente os próprios interesses, e criar fisiologismos.

        Ou alguém aprova o “apoio” que o PMDB tem dado ao PT nos últimos anos?

    1. Um Ataque e uma defesa!

      Muito bom ver além do mérito do medico!

      Você destrói a reportagem assim.

      E quanto ao sistema das faculdades de medicinas. A reportagem não fala Nada! Como se os 119 alunos não estudassem!

      Etah sistema ingrato, difícil e olha o funil.

      – Mas não nos esqueçamos que é apenas uma exceção.

      – Faculdades públicas como a UNICAMP chegam a ter 120 alunos por vaga (!) nos vestibulares de medicina. E os outros 119 alunos reprovados, o que a gente recomenda para eles?

      – Enquanto faltam médicos, de um lado e outros milhares tentam em vão chegar a se formar em medicina,

      – A falta de médicos não é por preguiça do povo brasileiro de estudar

       

      1. Eu disse alguma mentira sobre

        Eu disse alguma mentira sobre a dificuldade de formação dos médicos aqui no Brasil? Sobre a relação candidato vaga? Ou sobre os custos de faculdades particulares?

         

        A verdade não destroi nada.

        Isto não destroi o mérito de Cícero, mas o engrandece.

        1. ? Caracas

          Muito bom ver além do mérito do medico!

          Muito bom ver além do mérito do medico!

          Muito bom ver além do mérito do medico!

          Muito bom ver além do mérito do medico!

    2. Que comentário horrível,

      e alem disso o post é formidável, Inacreditável foi a capacidade de escrever lixo a respeito de uma história tão bonita.

      Mas o nick estúpido já dava para prever o que viria depois!

    3. Defesa absurda do autoritarismo

      Fala coisas até boas sobre o corporativismo médico e depois “emenda” com esses 2 parágrafos finais de defesa de regimes autoritários. Passa fora! 

      1. Autoridade sim, autoritarismo nunca

        Note bem:

         

        Disse autoridade do executivo. Não autoritarismo.

        Mas agradeço pela correção; EUA  e China são exemplos pesados demais. Talvez a Argentina fosse um exemplo melhor.

  7. Estas historias deveria ser

    Estas historias deveria ser mostradas, para os jovens nas escolas, através de video, como fator motivador; não na mídia , pois já usariam para obter proveito através da audiencia, mostrar nos programas do Governofederal na area de educação, pois o Prouni foi parte deste processo como elemento de politica pública de inclusão de estudantes pobres.

    1. será?

      eu gostaria que a reportagem tivesse sido objetiva e questionado sobre o que o jovem medico pensa do “Mais Médicos”.

      No mais, parabéns ao Cícero Pereira pelo esforço e vontade inquebrantável.

      Bom senso e muito sucesso em seu trabalho

      😀

  8. Fico imaginando o sofrimento

    Fico imaginando o sofrimento e o preconceito que esse rapaz passou durante a sua formação.

    Negro, pobre, catador de parpel cursando medicina, umas das faculdades mais elitizadas do país.

    Não tenho dúvidas que ele será um bom médico, tanto profissionalmente como no trato com os pacientes, principalmente os mais humildes.

    Que Deus abençoe a sua vida pessoal e profissional, e que lhe guie no caminho da retidão.

     

    PS. exemplo como desse jovem deveria ser destaque no programa da Regina Casé, para servir de exemplo aos jovens das periferias, que os negros podem irem além, não apenas  serem sambistas, pagodeiros, funkeiros, jodagor de futebol…

  9. Uma historia bonita, mas quem

    Uma historia bonita, mas quem nao passa de excessao.

    Que nao sirva de pretesto para acabar com nenhum programa social e seja utilizado para dizer que as oportunidades sao iguais para todos.

  10. Muito além do médico…

    A saga do Cícero é um exemplo que deveria ser amplamente divulgado. Seria tão ou mais eficiente do que uma fala de Lula na divulgação e defesa do Enem, do Prouni e demais programas educacionais. Imaginem inserções do MEC nos intervalos do jornal do bonner e das novelas de antes e depois dêle. Seria importante fator de intimidação aos ataques diários contra o Governo.

    Em 1973, entrei para a UFRJ e comecei o curso de Farmácia. No vestibular daquele ano, mais de 300 candidatos disputavam cada uma das 360 vagas do curso de medicina. As diversas faculdades da área médica, que até 1972 eram belos prédios no bairro da Urca, foram levadas para a Ilha do Fundão, instaladas tôdas no Instituto Biomédico, exceto a Psicologia e as especialidades da Farmácia, que continuaram na Urca, e da Educação Física que tinha instalações próprias na Ilha do Fundão.

    Também fruto de reforma universitária imposta pelo MEC em 1972, os currículos dos cursos da chamada área médica – biologia, educação física, enfermagem, farmácia, medicina, odontologia, psicologia e veterinária – foram unificados. Durante os dois primeiros anos, minha turma tinha mais de 300 alunos e as aulas eram dadas em um imenso auditório, com professores falando ao microfone. As aulas práticas separavam as turmas, dada a inconformidade dos médicos em misturar-se com os futuros colegas de trabalho. Assim mesmo.

    Mas estou certo que o Cícero seguirá agindo diferente dos seus colegas do meu tempo.

    Bravo, rapaz!!

  11. Maravilhosa história de

    Maravilhosa história de superação do nosso colega Dr Cícero! Mostra o melhor da Humanidade! Vale a pena!

    E para acrescentar, boas essas idéias de Enem e Prouni aí ein?

  12. Esse, sim, um menino pobre

    Esse, sim, um menino pobre que muda o Brasil.  Pena que não inspire o outro. Porque o outro só sabe bater em mulher,

    ocultar partes de processo. Enfim:  fazer  chicana.

  13. bela história , cidadão valoroso!

    Não é comum entre nós este belo exemplo se superação de enormes adversidades como nos mostrou o dr. Cicero, dificuldades ainda presentes para numerosos jovens brasileiros. O conhecimento da luta do dr Cicero é um alento a ser difundido entre nossos jovens para incentivar o melhor aproveitamento de oportunidades de educação que existem  no Brasil e mostrar para nossas autoridades que educação deve ser prioridade absoluta de seus esforços.

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