O trabalho em plataforma digital precisa de regulação especial?, por Rodrigo Carelli

Não se deve regular o “trabalho em plataforma digital” e sim o trabalho digitalizado e suas repercussões, que são expandidas para todas as relações de trabalho.

Ilustração: Dessin Miles Hyman

do Coletivo Transforma MP

O trabalho em plataforma digital precisa de regulação especial?

por Rodrigo Carelli

O processo acelerado de digitalização da sociedade e a utilização intensiva de instrumentos das novas tecnologias para a realização de atividades econômicas cada vez mais diversas nos fazem às vezes não parar para refletir sobre o significado de expressões e certas relações sociais que trazem aparente novidade. Por isso é necessário para responder à pergunta do título tratar de outras questões imprescindíveis: o que é afinal uma plataforma digital? Quais são as características de um trabalho por ela controlado? Quais são suas especificidades?

De pronto deve ser dito que não há sentido nenhum a expressão “trabalhador de aplicativo”. Aplicativo é somente a interface que leva (e traz) dados do aparelho celular até a plataforma digital, por meio da qual “todo o milagre” é realizado. A plataforma digital, por sua vez, é a infraestrutura eletrônica de coleta e processamento de dados para a realização de determinada atividade econômica. A maior parte das empresas que se autodenominam “plataformas digitais” em verdade utilizam os serviços da Amazon Web Services, como é o caso da iFood, rodando seus programas sobre a infraestrutura e soluções criadas pela empresa estadunidense. Ou seja, não são nem proprietárias da plataforma ou das soluções tecnológicas. A Amazon sim é uma empresa de tecnologia. Mas dispor de uma plataforma, própria ou contratada, não é o suficiente para a realização de um negócio. Tome-se o exemplo da mesma iFood, que começou suas atividades totalmente analógica com pedidos de comida por telefone a partir de catálogos de restaurantes em papel. A iFood é uma empresa cuja atividade econômica é a realização de vendas de produtos alimentícios prontos de restaurantes para consumidores finais, e para isso se compromete a realizar uma série de serviços, como processamento de pagamento, disponibilização de espaço digital para informações dos produtos (hoje catálogos virtuais) e, caso os seus clientes, que são os restaurantes, desejem ela inclui o serviço de entregas dos produtos vendidos. A iFood não faz nenhuma intermediação entre trabalhadores e usuários de seus serviços: ela vende produtos alimentícios de terceiros e garante sua entrega quando contratada para isso.

A infraestrutura eletrônica e digital hoje está presente em todas as áreas da economia. Supermercados, bancos, imobiliárias, locadoras de automóveis, agências de viagem, hortifrutis e lojas de varejo são exemplos comuns. Várias dessas empresas acumulam, ao mesmo tempo, infraestruturas digitais e físicas para a realização da sua atividade econômica, como CarrefourMagalu, Itaú, Localiza e tantas outras. O Nubank, como exemplo diverso, realiza boa parte de seu negócio por meio de infraestrutura digital em substituição às agências físicas, o que não a exime de ter uma poderosa infraestrutura física, como um prédio de oito andares no coração de São Paulo. Todos que estão em sã consciência sabem o fato de que o Nubank é um banco e que seus concorrentes são Itaú, Banco do Brasil e Bradesco e não Uber, iFood ou Spotify. Chamar todas as acima citadas de “empresas de tecnologia” não faz qualquer sentido, primeiro porque não é essa a atividade econômica dessas empresas e segundo porque ter infraestrutura digital para realização de toda ou parte de seu negócio hoje é pressuposto para sobrevivência no mercado, não uma especificidade de um setor.

Há outras empresas, no entanto, que se apresentam como “marketplaces”, ou seja, modelos de negócio do estilo “plataforma”, fazendo a conexão entre fornecedores e clientes, como shopping centers e feiras livres, operando de forma completamente digital. A Mercado Livre é uma dessas empresas. Se olhar de perto com atenção, no entanto, o que se vê que a Mercado Livre, como a Amazon nos Estados Unidos, tem uma infraestrutura física gigantesca: frota de aviões, dezenas de milhares de vans, armazéns logísticos opulentos, empresa financeira para garantia de pagamentos. Além disso tudo, necessita de um gigantesco capital para garantir as transações. Apesar da aparência, a Mercado Livre não é um aplicativo ou um site na Internet pelo qual de forma mágica você pode comprar qualquer coisa.

Assim, as empresas não têm nada de diferente em relação às demais. Ao contrário, elas concorrem com as ditas “empresas tradicionais”, que estão cada vez menos “tradicionais”.

E a relação dessas empresas com seus trabalhadores? É diferente daquelas travadas em outras empresas?

Retomando o caso da iFood como exemplo, qual a sua característica que diferencia essa relação de outras abrangidas tradicionalmente pela CLT?

Os trabalhadores dessa empresa podem ser contratados de duas formas: o chamado “entregador nuvem”, que contrata diretamente com a empresa por meio de sua plataforma digital, e é controlado por ela por meio do algoritmo; e o chamado “entregador OL”, que é controlado por uma empresa (ou pessoa) denominada “Operador Logístico” que lhe impõe o controle pessoal e fixa seus turnos de trabalho. Ora, o controle por algoritmo não é específico desse tipo de empresa: hoje ele é adotado por praticamente todas as empresas que têm trabalho à distância do tipo teletrabalho. Ou mesmo de trabalhadores localizados, como os dos armazéns da Amazon, cujos passos e tempo são contados cirurgicamente por smartphones presos aos seus pulsos. Esse tipo de controle, muito mais eficiente e impiedoso que o pessoal, tem a tendência de se expandir cada vez mais e já está previsto na CLT como uma forma de subordinação para fins do reconhecimento do vínculo de emprego (art. 6º, parágrafo único). Ou seja, a CLT já prevê esse tipo de trabalho e o considera subordinado. Quanto ao “entregador OL”, ou entregador gerido por Operador Logístico, essa forma é mais do que tradicional: é uma forma de terceirização do tipo intermediação de mão de obra, muito comum no meio rural e também na construção civil, pela arregimentação e controle por capatazia da mão de obra, e que é muitas vezes relacionada com o trabalho escravo contemporâneo. Os OLs são os capatazes do mundo digital.

Muito se diz que o diferencial desses trabalhadores é a flexibilidade. Afinal, os trabalhadores, em tese, podem trabalhar o momento e a quantidade que quiserem. Tecnicamente esse tipo de trabalho se chama “trabalho sob demanda”, e também não traz grandes novidades. Esse é o modo de funcionamento principal do trabalho portuário há décadas, tendo desde a Constituição de 1988 a isonomia de direitos com os empregados, na forma de trabalho avulso. Além disso, a fixação de jornada e de horário nunca foi requisito para a configuração da relação de emprego. E mais: em 2017 foi incluída na CLT modalidade específica de trabalho sob demanda denominada “contrato intermitente”. Ali especificamente se prevê um contrato de emprego em que o empregador oferta trabalhos ao empregado e este pode aceitá-los ou recusá-los, tudo sem prejuízo da condição de empregado, variando a remuneração a partir dos trabalhos efetivamente realizados. Esse pagamento por trabalho realizado é forma histórica de apuração de remuneração chamado de salário por peça ou tarefa, que remonta à revolução industrial e comentado sobre sua perversidade, veja só, por Karl Marx. Assim, a premissa da iFood e das pesquisas financiadas pelas empresas está errada: não há incompatibilidade entre flexibilidade e os direitos trabalhistas, invalidando totalmente qualquer ilação de que os trabalhadores não querem ser empregados e, mais ainda, que não querem o Direito do Trabalho.

Qual a diferença entre o trabalho realizado por um entregador controlado por uma empresa igual à iFood e aquele que realiza o mesmo serviço controlado por um restaurante ou uma terceirizada? Nenhuma em sua natureza e em condições intrínsecas de realização da atividade, e em sua forma podem ser também idênticas.

Assim, não há nada intrínseco que faça com que haja a necessidade de um tratamento fora da CLT, pois todas as características já têm inclusive previsão legal. Isso não quer dizer que não haja espaço para se avançar na regulação, não somente em relação aos chamados “trabalhadores em plataforma”, seja lá o que isso queira dizer, mas em relação aos novos contornos do trabalho em geral.

O controle por algoritmo deve ser regulado, pois assume as funções não somente de supervisor e gerente, como também de regulamento de empresa, afetando diretamente as obrigações contratuais. Como não pode haver cláusulas contratuais secretas, os trabalhadores e sindicatos devem ter o direito de acessar o algoritmo.

Também deve ser avançada a regulação da coleta, processamento, guarda e utilização de dados dos trabalhadores, realizados não somente pelas autodenominadas “plataformas”, mas atualmente por todas as empresas que utilizam plataformas digitais para a gestão de seus negócios.

O trabalho sob demanda e o pagamento por tarefa, na forma do contrato intermitente, deve ser regulado com o fim de salvaguardar renda mínima e condições de trabalho humanas, proibindo-se a exaustão e acidentes.

Respondendo então à pergunta inicial: o trabalho em plataforma digital não tem nenhuma característica que o diferencie do que a CLT já regula. No entanto, os instrumentos eletrônicos de controle, disciplina e regulação interna do trabalho, expandidos para todas as áreas da economia, demandam regulação urgente para ampliar a proteção aos trabalhadores. Não se deve regular o “trabalho em plataforma digital” e sim o trabalho digitalizado e suas repercussões, que são expandidas para todas as relações de trabalho. Regular o trabalho em plataforma de forma diferenciada é criar uma subcategoria de trabalhadores com cidadania reduzida a partir da identificação de seu empregador.  A premissa utilizada pela iFood de que a CLT inadequada e não interessa somente é aplicada para empresas que pretendem o monopólio de setores da economia e não toda a população brasileira preocupada com direitos fundamentais e organização democrática da sociedade.

Rodrigo de Lacerda Carelli é professor do programa de pós-graduação em Direito da UFRJ, procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro e membro do coletivo Transforma MP.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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