Brasil: em um ano, 17 mil crianças foram vítimas de violência sexual

Em 73% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, o crime ocorreu na casa da própria vítima ou do suspeito. Os principais abusadores são os padrastos e pais

Imagem ilustrativa. Crédito: Deposit Photos

do Observatório do 3º Setor

Brasil: em um ano, 17 mil crianças foram vítimas de violência sexual

Por: Isabela Alves

De acordo com o balanço anual do Disque 100, 17 mil crianças e adolescentes foram vítimas de violência sexual ao longo de 2019. Em 73% dos casos, o crime ocorreu na casa da própria vítima ou do suspeito. Os principais abusadores foram os padrastos (21%) e os pais (19%).

Outro relatório, este divulgado pelo Ministério da Saúde, apontou que entre 2011 e 2017 ocorreram mais de 184 mil casos de violência sexual no Brasil.

No total, 31,5% das vítimas eram crianças, enquanto 45% eram adolescentes. Isso significa que em 76,5% de todos os casos as vítimas tinham menos de 18 anos. Entre as crianças vítimas de violência sexual, 51,2% tinham entre 1 e 5 anos de idade.

Sara Oliveira, gerente de implementação de programas e projetos na Plan International Brasil, explica que a violência sexual pode se expressar de diversas maneiras.

“É importante destacar que o abuso sexual também ocorre nas práticas sexuais sem contato físico, como o assédio, abuso sexual verbal, exibicionismo e o voyeurismo. Já com contato físico, ocorre com carícias em órgãos genitais ou em outras partes do corpo, tentativas de relações sexual, masturbação, beijos e o estupro”, diz.

A especialista afirma que a maneira de se combater esse crime é justamente jogando luz sobre o tema. Caso a violência ocorra, é necessário acionar as autoridades em 48 horas, como o Conselho Tutelar e as delegacias. Posteriormente, também é importante garantir o acesso a um tratamento psicológico adequado para a criança.

O trauma é algo que vai deixar marcas por toda a vida. Portanto, Oliveira aponta que uma das maneiras de ajudar a criança a lidar com essa situação é fazer com que ela se sinta acolhida pelas pessoas mais próximas.

“Quando a criança tentar falar alguma coisa, ela precisa se sentir ouvida. O adulto não deve responsabilizá-la e nem questionar o ocorrido. É uma violência que deixa muitas raízes de desconfiança, amargura, e outras consequências que irão prejudicar essa criança por toda a sua vida”.

Qual é a importância da educação sexual?

Jennifer Garrido, de 22 anos, é professora e defende a importância da educação nas escolas. Neste ano, ela começou a educar menores de 14 anos sobre o tema e um vídeo seu em sala de aula viralizou na internet.

Ela afirma que educação sexual não é sobre ensinar a fazer sexo, e sim fazer com que as crianças conheçam o seu próprio corpo, para, caso aconteça alguma situação de abuso, elas saibam onde procurar ajuda.

“As crianças são as maiores vítimas de abuso sexual e, caso elas estejam sendo vítimas dessa violação dentro de casa, na escola elas podem ter um porto seguro. Se o próprio responsável, que dá abrigo e comida, está fazendo isso, como que ela vai saber que é errado?”, destaca.

Para promover esse conteúdo em sala de aula, o professor deve se sentir seguro do assunto e também estar preparado para perguntas inusitadas que possam surgir. Para as crianças, as imagens do corpo humano são ilustrativas, enquanto para os maiores de 12 anos, elas são mais realistas.

A professora se orgulha de dizer que, logo que começou a dar essas aulas, as crianças se animaram para contar a novidade para os pais. “Elas têm curiosidade de saber por que os pais chamam de ‘piu piu’, ‘borboleta’ e outros nomes. A gente não chama a orelha de orelha? Então por que temos vergonha de dizer pênis e vulva? Também são partes do corpo”, reflete.

No caso de denúncia, Garrido afirma que também é preciso ser cuidadoso para que a criança não fique repetindo a mesma história, porque além de ter que reviver o trauma, alguns pontos podem não ligar mais, e a criança terminará como mentirosa. É preciso falar apenas uma vez para que ela não se sinta coagida e depois encaminhá-la para um psicopedagogo.

No momento, a professora está preparando um curso com materiais didáticos para que as crianças conheçam o seu próprio corpo. Dessa forma, elas saberão reconhecer pontos que as deixam desconfortáveis em ser tocados.

Também é preciso ter cuidado para que a criança não fique com medo de tudo, já que ela precisa de ajuda dos adultos para a sua higiene pessoal, por exemplo. “Temos que tratar desse assunto com tranquilidade e sem tabus. A criança precisa conhecer os pontos de alerta antes que aconteça e, caso aconteça, saber como agir”.

Abusada aos 4 anos, até hoje ela sente as consequências do trauma

De acordo com um levantamento divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registra uma média de 4 estupros por hora contra meninas de até 13 anos. A história de Carolina*, de 32 anos, é um exemplo desta estatística.

Seus pais se separaram quando ela tinha 4 anos e seu irmão do mesmo casamento tinha 3. Como a mãe trabalhava fora, eles ficavam em tempo integral na escola particular. Nos dias em que não havia aula, a mãe contratava pessoas para cuidar das crianças.

Durante o período de férias no meio do ano, ela, ainda com 4 anos, e o irmão, com 3, ficaram aos cuidados de um tio que tinha problemas com a bebida. “Ele deixava a gente na rua para receber uns amigos na casa. Quando a gente não estava na rua, estávamos dentro de casa sofrendo o abuso”.

Carolina lembra dos banhos longos e de quando o tio a levava para o quarto, fazia contato com a sua genitália e mostrava a parte íntima. No fim, ele sempre dizia que, se um dos dois contasse o que estava acontecendo, iria matá-los.

Um dia, o irmão contou para a mãe: “o tio está fazendo coisa ruim com a gente”, mas o medo impediu Carolina de contar a verdade e ela acabou desmentindo a história. Depois destas férias, os irmãos continuaram sendo amigos. Falavam sobre tudo, menos isso.

Ela acabou crescendo tímida e sem falar com muitas pessoas. Quando tinha 14 anos, seu maior medo voltou a assombrá-la. O tio estava debilitado por conta do álcool, teve uma convulsão, tentou cortar a própria língua e passou a morar na mesma casa que ela.

Ele tentava puxar assunto normalmente, já que não tinha tanta lucidez. No entanto, apenas em olhar para ele, Carolina sentia a repulsa e passava mal. “Eu não dormia e pensava em matar ele o tempo todo. Comecei a chorar muito e isso começou a atrapalhar no meu trabalho e os estudos”, lembra.

Ela então começou a fazer terapia e, quando finalmente conseguiu falar sobre o assunto, parecia que a ficha não havia caído. Agora ela entendia com clareza que havia sido vítima de violência sexual.

Posteriormente, alguém deu abrigo para o tio, porque a sua casa de Carolina estava cheia, já que moravam no local a mãe, uma tia e os 4 irmãos (dois deles do segundo casamento da mãe de Carolina).

Depois que ele saiu, Carolina teve coragem de contar a verdade para a mãe, mas a reação não foi como ela esperava. “Ele penetrava você? Tem gente que sofre coisa pior”. Essa frase deixou Carolina ainda mais fragilizada, pois soou como se a mãe tivesse minimizado a situação.

Hoje, ela é mãe de uma menina de 2 anos, e um de seus maiores medos é que a filha passe pela mesma situação. Carolina está desempregada no momento, mas ela prefere viver somente em prol da filha por enquanto, até que ela cresça forte e saiba se defender.

Ela conta que desde que a bebê era recém-nascida, ela nunca foi forçada a ficar no colo ou abraçar pessoas que não queria. A menina bate na mão quando não gosta de algo e tudo é feito conforme a sua vontade. “Se ela quebra algo, ela já vem correndo me contar, porque sabe que eu não vou punir”, conta. Na hora do banho, a mãe sempre avisa que vai tocar apenas para limpar e que ninguém pode fazer isso além dela e do pai.

“O trauma se reflete em tudo na minha vida até hoje. Eu não me permito envolver ou confiar, e sempre estou à procura de pessoas com as quais eu não precise me abrir emocionalmente”. Carolina ainda conta que isso se espelha até na sua aparência, já que ela não se arruma para não chamar a atenção de ninguém. Agora, ela quer voltar para a terapia e interiorizar que ela é digna de amor e carinho. Ela também quer ter paz e encontrar prazer na sua própria companhia.

*Nome fictício para preservar a imagem da entrevistada 

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