Ethos social e violência, por Sandro Luiz Bazzanella e Cintia Neves Godoi

A barbárie, a violência física e simbólica é marca distintiva das relações sociais que perpassam a trajetória e o cotidiano da sociedade brasileira

Ethos social e violência

por Sandro Luiz Bazzanella e Cintia Neves Godoi

O brutal assassinato de quatro crianças numa creche em Blumenau-SC e os ferimentos provocados em outras crianças no mesmo educandário nos coloca diante da urgência do debate público em torno da violência da, e na sociedade brasileira. Infelizmente este trágico acontecimento não é um fato isolado. Nos últimos anos (Brasil registrou 12 ataques com armas de fogo em escolas nos últimos 20 anos …)[i] “assistimos” a bárbaros acontecimentos desta natureza em nossas comunidades, no Brasil.

Este fenômeno necessita ser compreendido e debatido socialmente em suas múltiplas variáveis como forma de posicionamento, de ação social e governamental.  Evidentemente são múltiplas as variáveis implicadas a análise de fenômenos desta natureza e, não é nossa pretensão apresentar análises eivadas pela vontade de verdade e, portanto conclusivas sobre tais fenômenos. Também não faz parte de nossa proposta reflexiva apresentar soluções imediatas para o fenômeno para além das iniciativas sociais e legais cabíveis em situações deste gênero, muito menos reverberar argumentos e discursos advindos do impacto humano e social que fenômenos desta natureza provocam na opinião pública.

Antes de adentrarmos na problematização da barbárie é preciso considerar que a violência física sobre o corpo, a integridade e a vida do outro é uma constante na trajetória do Brasil colônia à atualidade. É preciso rememorar e, reconhecer a barbárie perpetrada sobre os povos indígenas, outrora escravizados, ainda assassinados por defenderem seu território, expostos a exploração de suas terras, de suas águas e, portanto condenados à morte pela destruição do meio ambiente e de seus modos de vida. Rememoremos os 320 anos de escravidão de povos negros no Brasil colônia, até 13 de maio de 1888 (um ano antes da “proclamação da república”). Aprisionadas em solo africano, as pessoas que sobreviviam à travessia do Atlântico eram submetidas às formas mais cruéis de violência no contexto do trabalho escravo. Rememoremos os preconceitos, a discriminação, que ainda persiste socialmente sobre os corpos e mentes dos indivíduos pardos, negros, afrodescendentes, indígenas em curso em nossa sociedade multiétnica na atualidade. Rememoremos a violência das execuções levadas adiante pelas forças coercitivas do Estado durante a ditadura militar de 1964-1984. Torturas, desaparecimentos, execuções. Impunidade. Rememoremos a ação policial na comunidade do “Jacarezinho/RJ (Massacre no Jacarezinho completa um ano com 24 das 28 mortes arquivadas pelo MP)[ii], na comunidade da vila “cruzeiro/RJ”( Não foi uma operação, foi um massacre”, relata morador da Vila Cruzeiro)[iii].

A rememoração da barbárie, da brutalidade, da violência contra adultos, jovens, adolescentes e crianças na sociedade brasileira é interminável e cotidiana e, por vezes soterrada por novas tragédias. Reconheçamos que a barbárie, a violência física e simbólica é marca distintiva das relações sociais que perpassam a trajetória e o cotidiano da sociedade brasileira. O mito construído da cordialidade, da hospitalidade do povo brasileiro não resiste a observação atenta ao cotidiano da vida das minorias, trabalhadores, mulheres, das crianças, negros, pardos,  homo afetivos, dos pobres, dos lgbtqia+, dos neurodiversos ou neurodivergentes, etc. É possível ou aconselhável considerar com isto, que há uma herança de violência que vai sendo considerada como constitutiva do tecido social brasileiro? É possível relacionar uma possível violência como constitutiva do tecido com a barbárie cometida na creche que vitimou crianças em Blumenau? Se sim, se o tecido social brasileiro foi forjado sob a violência de um ethos escravocrata porque a barbárie perpetrada na creche nos incomoda? Se sim, o ocorrido poderia ser visto como apenas estarmos diante de uma de suas formas cotidianas de sua manifestação?

Se não, se o a violência não poderia ser considerada como parte do ethos de uma sociedade escravocrata, então estaríamos diante da decadência do tecido social brasileiro? Estaria a sociedade brasileira e ocidental doente e reverberando na violência seu mal-estar?

Considerar um recorte temporal mais restrito também permite discutir a possibilidade de existência de um ethos violento da ou na sociedade, assim novas questões podem também ser apresentadas, tais como: Porque o autor da barbárie (e de outras deste mesmo gênero) a executa contra crianças indefesas? O que motivou o autor levar adiante seu bárbaro plano de execução das crianças? Bullying sofrido na infância? Humilhações advindas de seu ambiente de trabalho? Precariedade de sua vida econômica e social? Distúrbios psicossociais advindos do período de isolamento imputado pela pandemia? Modo de vida excessivamente individualizado? Perda da dimensão pública da vida? Indiferença às questões humanas e sociais? Excessiva exposição à fake news e a discursos de ódio em relação ao outro, ao diferente?  Corrosão da autoridade pelo cultivo cotidiano da impunidade? Exposição cotidiana real e virtual a situações de violência extrema? A questão é urgente. A barbárie adentrou a escola, a creche. Mas, já está dentro dos lares faz bom tempo manifestando-se na violência doméstica, no feminicídio.

O que fazer? Punir de acordo com o rigor da lei? Reunir especialistas e autoridades para debater o problema e apontar soluções? Implantar em todos os níveis da educação básica e fundamental escolas militarizadas? Disponibilizar seguranças nas portas das escolas? Instalar mais portas e detectores de metais? Treinar e armar os professores? Instalar mais câmeras de vídeo? Monitorar a internet e as redes sociais?

É preciso comprometer-se com o debate público sereno, mas profundo sobre a natureza e manifestação deste brutal fenômeno. E porque não iniciar este debate social analisando os investimentos governamentais em educação? Para o Estado (em âmbito municipal, estadual e nacional) e seus governantes de plantão educação é despesa ou investimento? Qual a qualidade da educação pública oferecida aos brasileiros? Quais as condições de trabalho de que dispõe os professores para executarem com excelência seu trabalho de educadores? Os professores são remunerados de acordo com a importância de sua ação profissional? Qual a diferença salarial dos professores em relação aos salários do poder judiciário, do poder legislativo e executivo nas três esferas de poder? Qual o reconhecimento social dispensado aos professores? Por que professores são agredidos em sua liberdade de cátedra? Por que diante da histórica e vergonhosa precariedade educacional brasileira surgem grotescos debates e propostas como “escola sem partido”, ou “escolas militarizadas”? Por que pais e professores não são ouvidos diante das urgências educacionais do país? Por que os poderes de Estado apoiados pela estupidez de significativos segmentos sociais exportam para a Escola em sua precariedade operacional problemas sociais?

Estratégia para dissimular problemas sociais. Seria este um artifício próprio de uma sociedade forjada na violência da construção de um ethos escravocrata?

Ao mesmo tempo, se considerarmos que temos um ethos escravocrata, isto condicionaria não ser possível ter disposição, perfil, costume diferente deste amálgama no tecido brasileiro? Será que tratar a sociedade brasileira por sua trajetória de tragédias como uma sociedade com ethos escravocrata se consolidaria como visão racista? De que maneira considerar sociedades com características pode ser exercício razoável? Já não fomos considerados inferiores porque miscigenados? Depois cordiais porque miscigenados? Corruptos, malandros porque cordiais? Perceber sociedades com características específicas advindas de sua historicidade talvez não seja exercício reflexivo garantidor de soluções de um dos problemas mais antigos e profundos de nossa espécie, a violência contra minorias que não cessa. No entanto, nas Ciências Humanas e, sobretudo na filosofia é consolidado que as condições presentes de um povo, de uma cultura que se apresenta no presente em toda sua singularidade são herdeiras de tradições, de heranças civilizatórias advindas daqueles que os precederam. A atualidade de um povo é o resultado de suas lutas, de suas contradições, de suas conquistas transcorridas no tempo. E tal condição não é mérito, ou demérito, mas condição constitutiva e, como tal é fundamental compreendê-las em sua profundidade.

Desta forma, tomar o ethos escravocrata como uma das heranças sociais, políticas, culturais que nos trouxe até aqui talvez não implique reverberar concepções racistas, pejorativas, menores, ou algo que o valha. Pelo contrário significa a um povo tomar-se como objeto e reconhecer na violência contra minorias como um dos nossos fundamentos constitutivos. Ainda nesta direção, o conceito operador como ethos escravocrata não tem a pretensão de oferecer explicações, ou constituir teorias conclusivas sobre nossa conformação societária, no entanto, sua condição pode permitir investigações genealógicas, bem como intensificar o debate pelo impacto que produz.

E deste cenário de não nos entendermos e conhecermos derivam os problemas para o futuro. Por que após quinhentos anos de trajetória societária não dispomos de um projeto educacional de excelência para crianças, adolescentes, jovens e pesquisadores? Por que as elites políticas nacionais desconsideram as justas e urgentes demandas educacionais para a formação humana, científica e laboral de excelência? Numa sociedade mantida na precariedade da luta pela sobrevivência na periferia do mundo trata-se apenas de formação de mão de obra precária e barata para o mercado de trabalho?

Ignorar estas questões (entre outras tantas que poderiam ser apresentadas) implica desconsiderar o fenômeno da barbárie que viceja no tecido social das sociedades, manifestando-se brutalmente na tragédia da morte destas crianças e, em algum momento em qualquer outro educandário do país e do mundo. A compreensão do fenômeno exige que paralisemos as respostas prontas, a verborragia das autoridades políticas, judiciárias, policiais, entre outros especialistas anunciando medidas, promessas de justiça a partir da aplicação do ordenamento jurídico. É preciso paralisar a exaltação dos discursos que reverberam mais violência e barbárie nas fórmulas prontas: “bandido bom é bandido morto”; “pena de morte para esses monstros”, entre outras expressões deste gênero.

Ignorar as questões acima apresentadas é desconsiderar que a precarização da vida individual e social promovida por uma ordem político-econômica predatória do humano, do meio ambiente, dos bens naturais compartilhados em suas mais diversas dimensões promove a violência e a barbárie compartilhada cotidianamente na indiferença, na ausência de empatia com o outro, na ausência de disposição dos indivíduos superarem a privatização de si mesmos e se comprometerem com o debate público necessário à constituição e garantias de um mundo humanamente e vitalmente compartilhado.

Diga-se uma vez mais, ignorar tais questões é aceitar passivamente a condição de meros consumidores de produtos, de entretenimento, de propostas educacionais desprovidas do entendimento da valorização das diversidades, do tempo e do espaço das pessoas. Hannah Arendt em seu seminal livro: “A Condição Humana”, demonstra que o consumidor estabelece uma relação de destruição com o mundo. O ato de consumir é marcado pela destruição do produto, do bem de que se dispõe como condição de saciar momentaneamente o desejo majoritariamente imposto publicitariamente e socialmente exigido. Destruir, descartar parte do produto, das embalagens é marca registrado do consumidor. O indivíduo elevado à condição de consumidor consome a si mesmo, ao outro, ao mundo socialmente compartilhado. Não cuida e não promove o mundo. Destrói a sensibilidade necessária a potencialização do mundo.

Para concluirmos, mas de forma alguma com a pretensão de finalizar este debate, ignorar as questões apresentadas significa aceitar tacitamente o fato hediondo de estarmos inseridos integralmente numa guerra civil local, nacional e mundial, desprovidos de disposição de cuidado com mundo comum resultante da ação política qualificada. Nestas condições sociais, estamos condenados a presenciar de tempos em tempos a brutalidade da barbárie que ceifa a vida das minorias e dos frágeis que se apresentam como a garantia e a esperança de que o mundo pulsa. A brutalidade da morte das crianças implica o fato de que a sociedade perdeu parte das garantias de continuidade e renovação do mundo. Trágica e irreversível condição. A urgência deste brutal acontecimento requer imediatamente nosso envolvimento no debate e nos esforços de construção de um mundo comum, humanamente compartilhado com a diversidade de formas de vida e de viver que ainda resistem neste planeta.

Sandro Luiz Bazzanella – Professor de Filosofia

Cintia Neves Godoi – Professora de Geografia


[i] Brasil registrou 12 ataques com armas de fogo em escolas nos últimos 20 anos, aponta levantamento

https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2022/11/25/brasil-registrou-12-ataques-em-escolas-nos-ultimos-20-anos-aponta-levantamento.ghtml

[ii] Massacre no Jacarezinho completa um ano com 24 das 28 mortes arquivadas pelo MP. https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/chacina-no-jacarezinho-completa-um-ano-com-24-das-28-mortes-arquivadas-pelo-mp/

[iii] “Não foi uma operação, foi um massacre”, relata morador da Vila Cruzeiro (RJ). https://www.terra.com.br/nos/nao-foi-uma-operacao-foi-um-massacre-relata-morador-da-vila-cruzeiro-rj,734ddcf7b2d754eef1926af391dbad08m18910lp.html

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador