Xadrez sobre as saídas negociadas e as autoritárias, por Luis Nassif

Lula tenta ampliar alianças visando próximo governo, em momento crucial para o liberalismo. A partir daí, há uma certeza e muitas dúvidas

No programa TV GGN 20 Horas de ontem, procurei avançar alguns raciocínios sobre o projeto Lula de governo e os projetos alternativos autoritários de Nação, em torno de alguns conceitos que expus no “Xadrez da ultradireita e de Lula, a última esperança liberal”. E também avançar em algumas explicações sobre a lógica dos grupos radicais que tentam ocupar espaço político.

Uma boa síntese dessas idéias está no livro “O velho está morrendo e o novo não pode nascer”, da americana Nancy Fraser, com um belo prefácio à edição brasileira de Vitor Marques.

Peça 1 – o anti-identitarismo

Militante da geração de 1968, a autora se desiludiu com o fracasso da gestão Barack Obama, entusiasmou-se com a possibilidade Bernie Sanders e tentou decifrar os caminhos do liberalismo.

Dividiu os liberais em dois grupos, os liberais-reacionários e os liberais-progressistas, ambos empenhados em preservar os pontos centrais do liberalismo, a financeirização e a enorme concentração de renda trazida pelo modelo. O papel do liberal-progressista seria apenas o de conferir glamour ao liberalismo, preservando seus vícios.

Depois, divide as ações afirmativas em dois campos: o do reconhecimento e o das desigualdades. O liberalismo-reacionário – implantado no país a partir do golpe do impeachment – é o que sequer reconhece as diferenças. Já o liberalismoprogressista avança, mas se restringe ao nível do reconhecimento. Reconhece a falta de oportunidades dos negros, das mulheres, das minorias, cria cotas, empenha-se em defender o meio ambiente e em outras pautas legitimadoras, mas como maneira de deixar o modelo intocado. Edulcoraram o liberalismo, para lhe dar sobrevida.  Nos Estados Unidos, o representante máximo seria o casal Clinton. No Brasil, as experiências de políticas sociais de Lula.

É por aí que se entendem as críticas às pautas identitárias. Segundo as críticas, elas se limitariam a atender às demandas dos grupos mais ativos, mas sempre individualmente, dentro das regras da meritocracia. Aumentam o número de negros, mulheres e pobres nas universidades, nas empresas, nos postos de gerência, mas mantém intocadas as estruturas que conservam na mais profunda exclusão o grosso dos negros, mulheres e pobres.

O caminho adequado não seria o não-reconhecimento dos direitos de auto-defesa das minorias, mas a conscientização maior desses grupos de que, embora com suas especificidades, integram o grande mundo dos excluídos e só a política trará soluções definitivas.

Mesmo sendo críticos do liberalismo progressista, no entanto, os radicais reconhecem nele uma possibilidade maior de mudanças do modelo, dependendo obviamente da correlação de forças.

Peça 2 – o caso Lula

A grande questão é que, a partir da crise de 2008, o fim da hegemonia absoluta do liberalismo abriu espaço para toda sorte de propostas alternativas. Os vícios do liberalismo tornaram-se explícitos demais, ainda mais com o desnudamento do que prometia, com a lição de casa: o crescimento beneficiando a todos. No caso brasileiro, o desmonte do Estado, iniciado com o governo Temer, acelerou essa decepção com o modelo.

O vácuo criado abriu espaço para toda sorte de discursos e questionamentos. Inclusive em relação a um possível futuro governo Lula.

Lula foi o representante mais bem-sucedido desse liberalismo progressista. Deu voz aos sindicatos, aos movimentos sociais, criou políticas sociais inovadoras e bem sucedidas, tirou o Brasil do Mapa da Fome, reduziu as desigualdades. Por essa obra mereceu os elogios de Obama, ele próprio prisioneiro da estrutura de forças do mercado. Mas não arranhou as bases do modelo, a financeirização absurda da economia, a concentração de renda.

Ressalve-se que seus dois governos aconteceram em pleno apogeu do neoliberalismo, como modelo econômico e de relações sociais. E ninguém escapou incólume dessa hegemonia, nem o PT, nem a social-democracia europeia. Lula rompeu com os dogmas apenas a partir da crise de 2008, empurrado pelo Sr. Crise. 

2008-2010 foram dois anos gloriosos que projetaram o Brasil de Lula como modelo para a social-democracia europeia e mundial, assim como para o sindicalismo americano. Logo que terminou seu governo, aliás, Lula fez uma longa maratona de palestras para os dois públicos. 

Agora, tenta montar um largo arco de alianças visando viabilizar seu próximo governo, em um momento em que caem por terra todos os dogmas do liberalismo. A partir daí, há uma certeza e muitas dúvidas.

A certeza é que Lula avançará célere em todas as políticas que não interfiram no jogo de interesses do mercado. Em seu governo, haverá uma inclusão ainda maior de movimentos, grupos identitários, ONGs, assim como os investimentos em educação, saúde, fortalecimento do SUS, do sindicalismo aprimorado etc. E fortalecimento de estatais estratégicas e o fim da camisa de força da Lei do Teto.

As dúvidas são em relação às mudanças mais profundas do modelo, a redução da financeirização, a interferência nos juros e spreads bancários, a tributação do capital, as medidas restringindo a atuação das grandes redes, em detrimento do pequeno comércio. Ou seja, tudo o que implica em confronto depende da correlação de força fica sob dúvida. Mas há o fato novo, que é o fim da hegemonia ideológica do neoliberalismo no mundo.

É por aí que se apegam os radicais.

Peça 3 – as soluções autoritárias

Para os militares do Projeto de Nação, para os pouco seguidores de Aldo Rebelo, para os 8% de Ciro Gomes, não há saída na política negociada. As forças da financeirização seriam influentes demais para permitir mudanças através do jogo político convencional.

Como romper o nó?

Eles têm razão nas dúvidas em relação à superação negociada da financeirização. Mas a única estratégia de que dispõem é o voluntarismo. Ciro Gomes acena com o voluntarismo, como se o mero poder dos argumentos mudassem o mundo. Aldo Rebelo acredita em um pacto militar-ruralista. Os militares se acreditam como a força moderadora, supervisionando os poderes constituídos.

Todos os ensaios implicam uma ideia central, proposta por um iluminado, e que deve ser apoiada sem questionamentos. Como na guerra, não há espaço para questões identitárias, para defesa do meio ambiente, para questionamentos políticos, nada que desvie o foco das propostas salvacionistas. 

Pode-se chegar a esse resultado por dois caminhos. O primeiro, pela reeleição de Bolsonaro, acabando com a alternativa Lula e aprofundando definitivamente a crise até o ponto de ruptura. O empenho com que Ciro ataca Lula faz desconfiar de que aposta nessa saída. O segundo, se Lula falhar em sua tentativa de aprofundamento da democracia.

De qualquer modo, a visão radical será relevante como contraponto às pressões de mercado. Espera-se que Lula tenha ideias claras sobre os riscos de não aprofundar as reformas sociais e econômicas.

10 Comentários

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  1. Nada disto foi muito discutido na eleição passada , a cortina de fumaça do casamento gay , mamadeira fálica e outras coisas abafou o debate.
    E não será neste os “bytes” da urna devem entram no meio …

  2. Pois é o governo Lula promete mais do mesmo , emponderar “ong´s de interesses estrangeiros que a população odeia,e certamente não mexer no interesse dos Banqueiros.
    A população pode esperar sentada que seus reais interesses sejam atendidos como por exemplo a correção tabela do imposto de renda que permaneceu ” imexida” nos tais governos progressistas

  3. As figuras chaves desse Projeto de Nação dispensa qualquer especulação em que daria essa nova ditadura ideológica dos quarteis; uma versão anos 20 e 30 do “prendo e arrebento” quem não se curvar à esse bando de milicos viúvas carcomidas da ditadura. No que daria ja temos ideia mas com certeza geraríamos novos Ustras e Fleurys. Ciro como você disse vem com um voluntarismo de argumentos o que deixa a mesma duvida de um governo de alianças proposto por Lula; ou seja; se o sistema não admite concessões porque aceitaria um rompimento sem gerar um novo golpe? Façam suas apostas!

  4. A situação tem um complicador que você não considerou Nassif: o aumento do poder da China e a reação dos EUA em franca decadência. A hegemonia chinesa é um fato que não se ajusta à ideologia que predomina entre os norte-americanos (e seus lacaios terceiromundistas). Tudo o que ocorre no Brasil é condicionado por essa disputa em escala global, e as contradições não são pequenas: ruralistas preferem os EUA, mas tem que vender para a China porque os norte-americanos são protecionistas; os banqueiros também preferem os EUA, mas são obrigados a financiar a produção e exportação de alimentos para os chineses; Bolsonaro corre que nem um cachorrinho atrás dos gringos, mas o governo Biden não quer saber dele (isso provavelmente faz parte de uma estratégia dos EUA para levar o Brasil a ponto de uma ruptura, pois os gringos temem um grande concorrente no hemisférios e trabalham para fragmentar nosso país desde a Confederação do Equador no século XIX). O Exército brasileiro sabe de suas fragilidades e prefere os EUA, mas se resolver sentar no colo dos gringos ele causará uma tragédia econômica maior (pois os chineses podem comprar em outro lugar, inclusive nos EUA, o que compram no Brasil). SSaporra de labirinto só vai resolver de vez quando as bombas nucleares começares a explodir nos EUA. Mas essa solução obviamente não é muito satisfatório, pois nós morreremos em decorrência do Inverno Nuclear, da radiação e da destruição do sistema internacional de comércio do qual dependemos.

  5. Grande Nassif, assisti ao programa da sexta 27/05 e devo dizer que o achei muito enviesado. Peço por gentileza que convide o presidente do PCO Rui Costa Pimenta. Vejo reiteradas mentiras sendo ditas sobre ele e o PCO. Há sim uma dita esquerda que é, vamos dizer, “esquisita”, que parece mais preocupada com as pautas do partido democrata dos EEUU do que com a nossa soberania e o nosso desenvolvimento.
    Peço também que convide, em outras oportunidades, o Anitablian e o Farinazzo. Ambos defendem os interesses nacionais: o desenvolvimento da nossa indústria, a preservação e fortalecimento das nossas estatais estratégicas, o fortalecimento dos BRICS e falam abertamente do golpe do impeachment. Muitas pautas consideradas importantes por nós!
    Eu mesmo me negava a escutar o Farinazzo por ser conservador nos costumes, mas eu aprendi com vc mesmo que não devemos ter preconceitos (a não ser contra o preconceituoso!).
    Abra o espaço para discussão. Convide-os. Afinal, ate o Santa Cruz já foi convidado!

  6. A saída, onde fica a saída?, perguntava-se o poeta, já lá se vão mais de 50 anos.
    A pergunta agora é: Mas, tem saída?
    Detratores e exaltadores dos resultados do governo Lula (2003-2011) só são unânimes em uma coisa: a influência do fator “boom das commodities” verificado no período, considerado decisivo, por uns, e parte componente, por outro, do crescimento verificado, então.
    Isso deixa claro que o cenário internacional é um fator básico a ser considerado para um futuro novo governo Lula.
    Para Temer, Bolsonaro, o cenário pouco importa; favorável ou desfavorável, nosso papel nele é o de sempre, ou seja, de ex(sic)-colônia fornecedora de matérias primas e alimentos. Basicamente, o agronegócio enfileirando resultados bilionários anos após ano, enquanto a fome e a miséria nos campos (e nas cidades, por conseguinte) também segue enfileirando números vergonhosos, ano após ano. Além disso, há o generoso pernoite oferecido ao capital estrangeiro, para que aqui seja cevado antes de voltar aos pastos sempre verdes do mundo rico, farta quantidade de recursos naturais e minerais que, ainda generosamente, vendemos, como banana em fim de feira, para comprar, lá na frente, produtos e equipamentos altamente sofisticados e astronomicamente mais caros, sem mencionar custos com patentes, etc., etc., etc.
    Mas para um governo que pretende, ainda que de forma tímida e tateante, desenvolver sua indústria, agregar valor aos seus produtos, melhorar a vida de seu povo, dentre outras situações minimamente exigíveis para prosperar, lamentavelmente de nada servem as boas intenções e a vontade de seu líder, e mesmo do próprio povo.
    O último país do planeta a emergir para a prosperidade e liderança, com as próprias pernas, foram os Estados Unidos; em comum com outras potências e impérios, apenas o vale-tudo habitual, o crime e a opressão, o uso da força e da crueldade. Mas, ao contrário, os EUA sempre souberam que, assim como vem a Glória, vem a Decadência (aliás, eles são obcecados por isso) – e, ainda que eu considere, do meu limitado ponto de vista, que eles não estão suficientemente equipados e preparados para evitar esta última, a decadência americana que se aproxima será, talvez, o mais conturbado, violento e ameaçador período da História da Humanidade. Os EUA serão o primeiro império decadente da Humanidade a dispor, ainda, de alguma superioridade militar em relação aos seus inimigos – e, principalmente, de meios para destruir o planeta e a vida na terra, ou, ao menos, para torná-la tão difícil que o melhor terá sido a destruição total, mesmo.
    Dizem que Donald Trump teria perguntado, candidamente, em face a uma situação de possível confronto armado: ‘Ora, se temos armas atômicas, por que não as usamos?’ Creio que, nessa ocasião, ele terá sido informado da existência da palavra ‘persuasão’. Serviu para persuadir o Japão. Para tirar o Império Britânico da jogada, depois do desastre de Suez, em 1956, e assumir em definitivo a liderança mundial, bastou uma ameaça financeira, e nada mais; tais armas serão tão eficazes assim, contra os russos? Os chineses?
    O Brasil se colocou sob a asa da grande galinha americana, definitivamente, eu diria, depois de 1945. De lá para cá, alguns arrufos – briguinhas de casal, nas quais, ao contrário do que reza a crença popular, às vezes é melhor meter a colher, embora isso nem sempre seja possível – e uma certa atitude de mulher de malandro, como a dos dias de hoje, que o Fábio de Oliveira Ribeiro sublinhou; mas seguimos batendo continência à bandeira americana. Lula começou a movimentar-se de forma mais efetiva para sair debaixo dessa asa sufocante, começou a apropriar-se de métodos consagrados e comumente utilizados para prosperar e expandir o alcance da economia brasileira, para além das exportações de commodities, e a aproximar-se de países em que o progresso e a prosperidade poderiam ser uma via de mão dupla; deu no que deu.
    Uma das grandes mentiras (uma dentre muitas) da Mídia corporativa do Brasil foi a de que, a partir do atentado das torres gêmeas, a América Latina teria perdido espaço entre as preocupações do Departamento de Estado. Ora, não há necessidade de se preocupar com algo que, além de ser de nossa propriedade, ainda por cima quer permanecer nessa condição – que é, mais ou menos, uma descrição da relação de nossas elites com o Grande Irmão do Norte, e a própria visão que este tem de nós. Alguém ainda pensa assim, depois dos Brics, do Pré-Sal, da crescente influência e da nossa dependência comercial da China, e depois da Nova Rota da Seda, do crescente interesse chinês pela África?
    Um Lula só não faz verão, como não fez, da primeira vez em que ocupou aquela cadeira. O outono que se seguiu foi barra pesada, e o prolongado inverno atual, pior ainda. Assim como é com as estações reais, aqui é uma coisa, lá (no hemisfério norte) é outra. O equilíbrio é precário, mas pode ser obtido; ao menos durante escassos 13 anos, foi possível sonhar com ele. Lula não vai salvar esse país – e eu nem sei se isso ainda é possível. Mas minorar o sofrimento e a humilhação é possível. Resta saber se queremos isso, ou se queremos continuar sendo mulher de malandro. Malandro americano.

  7. Acho que este arco de aliança conservadora de Lula impede: o rompimento da financeirização, a taxação das grandes riquezas, a reversão das eststizações feitas à partir de 2016, o aumento do salário mínimo acima da inflação é a mudança no Imposto de Renda.
    Será um governo que não defenderá a Soberania Nacional. SERÁ um governo controlado pela direita alá PSDB da época de FHC. Será um Governo de crises.

  8. Li este artigo do Nassif ainda sob efeito da visão de uma foto do Lula hoje no sul.
    No mesmo enquadramento da imagem estavam: Lula, Alckimin, Mercadante, Dilma e a intérprete de libras, .
    A imagem ilustraria bem este artigo.
    A única novidade era a intérprete de libras.

  9. Prezado Nassif, sou leitor contumaz de suas analises, no entanto, já faz um tempo que você aderiu sem qualquer reserva ao projeto de poder do Lula, que nunca teve projeto de país, e agora fica claro que se corrompeu. Atribuir a Aldo e Ciro um projeto autoritário é de enorme desonestidade intelectual, o primeiro tem interlocução com setores do agro e militar, porque nas oportunidades que teve entregou, como o Código florestal. Ciro está desde 2015 diagnosticando, propondo e debatendo o país, ao contrário do Lula que envergonha o pensamento progressista: “picanha e cerveja, tratar de forma descuidada do aborto. Ademais uma candidatura como a do Ciro, é no mínimo necessária para tensionar o mundo progressista para uma agenda de transformação do País: Tributação progressista, revolução na educação, saúde e de industrialização.

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