Carioca da gema

Enviado por joao

Por João Antônio

Carioca, carioca da gema seria aquele que sabe rir de si mesmo. Também por isso, aparenta ser o mais desinibido e alegre dos brasileiros. Que, sabendo rir de si e de um tudo, é homem capaz de se sentar ao meio-fio e chorar diante de uma tragédia. O resto é carimbo.

Minha memória não me permite esquecer. O tio mais alto, o meu tio-avô Rubens, mulherengo de tope, bigode frajola, carioca, pobre, porém caprichoso nas roupas, empaletozado como na época, impertigado, namorador impenitente e alegre e, pioneiro, me ensinar nos bondes a olhar as pernas nuas das mulheres e, após, lhes oferecer o lugar. Que havia saias e pernas nuas nos meus tempos de menino.

Folgado, finório, malandreco, vive de férias. Não pode ver mulher bonita, perdulário, superficial e festivo até as vísceras. Adjetivação vazia… E só idéia genérica, balela, não passa de carimbo.

Gosto de lembrar aos sabidos, perdedores de tempo e que jogam conversa fora, que o lugar mais alegre do Rio é a favela. E onde mais se canta no Rio. E, aí, o carioca é desconcertante. Dos favelados nasce e se organiza, como um milagre, um dos maiores espetáculos de festa popular do mundo, o Carnaval.
O carimbo pretensioso e generalizador se esquece de que o carioca não é apenas o homem da Zona Sul badalada — de Copacabana ao Leblon. Setenta e cinco por cento da população carioca moram na Zona Centro e Norte, no Rio esquecido. E lá, sim, o Rio fica mais Rio, a partir das caras não cosmopolitas e se o carioca coubesse no carimbo que lhe imputam não se teriam produzido obras pungentes, inovadoras e universais como a de Noel Rosa, a de Geraldo Pereira, a de Nelson Rodrigues, a de Nelson Cavaquinho… Muito do sorriso carioca é picardia fina, modo atilado de se driblarem os percalços.

Tenho para mim que no Rio as ruas são faculdades; os botequins, universidade. Algumas frases apanhadas lá nessas bigornas da vida, em situações diversas, como aparentes tipos-a-esmo:

“Está ruim pra malandro” – o advérbio até está oculto.

“Quem tem olho grande não entra na China”.

“A galinha come é com o bico no chão”.

“Negócio é o seguinte: dezenove não é vinte”.

“Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela”·

“Não leve uma raposa a um galinheiro”.

“Se a farinha é pouca o meu pirão primeiro”.

“Há duas coisas em que não se pode confiar. Quando alguém diz “deixe comigo” ou “este cachorro não morde”.

“Amigo, bebendo cachaça, não faço barulho de uísque”.

“Da fruta de que você gosta eu como até o caroço”.

“A vida é do contra: você vai e ela fica”.

Como filosofia de vida ou não, vivendo numa cidade em que o excesso de beleza é uma orgia, convivendo com grandezas e mazelas, o carioca da gema é um dos poucos tipos nacionais para quem ninguém é gaúcho, paraibano, amazonense ou paulista. Ele entende que está tratando com brasileiros.

Redação

7 Comentários

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  1. “Malandro demais se atrapalha”

    “Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela”

    Hehe, ótima!

    Boa inclusive pra bicudos em tempos de eleição.

     

  2. Valeu, João. Valeu, João Antônio

    Muito boa a lembrança àquele que foi (é) um dos mais importantes escritores brasileiros.

    Seus personagens são os expatriados desde sempre, urbanizados coercitivamente pelo drama brutalmente épico da desterritorialização do “homem do campo” – eles ou seus ascendentes imediatos. Suas vidas são as consumidas nas franjas do sistema,  nos arranjos que a necessidade de sobreviver justifica, explica.

    A linguagem marginal chega como nunca chegou aos nossos olhos pela escrita de João Antônio.

    Vale a pena lê-lo.  Vale muito. Leão de Chácara é uma boa pedida inicial. 

  3. sou baiano..

    sou baiano e admito: O Rio é a cidade mais brasileira e os cariocas são aqueles que sintetizam melhor o espírito do povo brasileiro..dizem que o ES foi criado para separar os baianos dos cariocas mas isso é intriga da oposição..como um filho dileto ( povo do Rio de Janeiro) se separa da mãe ( Bahia)??

    VIVA A CIDADE MARAVILHOSA !!!!

  4. Aproveitando o tema Carioca,

    Aproveitando o tema Carioca, já perguntei em outros “locais”: porque a globo insiste em chamar de “Campeonato Carioca” uma competição com times (nada contra…) de Nova Iguaçú, Saquarema, entre outros?

    É carioca, “mermo”? Não seria Campeonato Fluminense, não?

     

    Não seria o caso, por similitude, de chamar o campeonato do Estado de São Paulo de “paulistano”? Por que não?

     

    Isso é algo (desculpem o eventual exagero) estapafúrdio.

     

    Bom, para quem chamou os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro de “jogos Pan-Americanos do Brasil”, não é de se estranhar. Din-din, din-din, din-din…

     

    Vamos esperar os Jogos Olímpicos do Brasil, em 2016…

    1. A história explica

      O campeonato carioca era o campeonato do então Distrito Federal, que depois virou estado da Guanabara.

      A “cidade-estado” tinha muitos times, suficientes para seu campeonato: Flamengo, Vasco, Fluminense, Botafogo, América, Bangu, Canto do Rio (este da Niterói integradai), Portuguesa, São Cristóvão (Ronaldo 9), Madureira, Olaria, além de outros mais antigos, como o Andaraí, Paissandu, Rio Cricket, Mackenzie, etc.

      Este campeonato só terminou em 1979, apesar do fim do estado da Guanabara em 1974. Aí sim, em 1980 começou o campeonato estadual do Rio de Janeiro, que como vc corretamente diz, passou a ser fluminense.

      Além do hábito, ocorre que já desde esta época a Globo mantém locutores importados e a maioria deles, incluindo o paulista nascido no Rio, Galvão Bueno, até os dos dias atuais, que sabe-se lá porque continuam chamando o campeonato fluminense de carioca. 

      Quanto ao “Pan do Brasil”, oficialmente chamado de Pan Rio 2007, foi assim apelidado pelo mesmo Galvão Bueno, que os colegas nos seus primórdios de carreira em Brasília apelidaram de “paulista”, Tinha dificuldade em “conseguir” falar o oficial (e natural) “Rio 2007”, preferindo o “Pan do Brasil!. Faria certamente o mesmo nas Olimpíadas (a menos que fosse para a Record).

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