2016, por Antonio Prata

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Folha

2016, por Antonio Prata

Eis então que, na noite da virada, me aparece em sonho uma figura toda estropiada, coberta de hematomas, seu corpinho esquálido mal dando conta de segurar os andrajos. Naquele furta-cor emocional dos sonhos, o pobre diabo aparentava ao mesmo tempo velho amigo e desconhecido. “Quem é você?”. Com um fiapo de voz, ele sussurrou: “Sou 2016”.

“2016?! Que aconteceu? Você nem começou, já tá nessa situação?”. “É que eu venho de 2015, meu filho. Eu sou 2015! 2015 rebatizado. ‘Rebatizado’, ouviu bem? Não recauchutado, nem remasterizado: ‘Re-ba-ti-za-do’!”. A euforia levou o ano a um acesso de tosse do qual pensei que não fosse sair vivo, mas saiu, vivo e sedento: “Será que você podia me arrumar um copo d’água?”. “Claro. Gelada ou natural?”. “Natural. Se eu pegar uma gripe, não chego a 2017. E, se não for pedir muito, uma bebidinha ia cair bem.”

Corri para a sala. Achei meia garrafa de uísque sobre a mesa, junto aos restos da ceia. 2016 surgiu capengando pelo corredor, botou seus olhos famintos no pernil e tive que lhe servir um prato. Depois de banquetear-se, tomar três doses e ouvir deste esforçado cronista algumas piadas ruins sobre a “voracidade do tempo” -eu só tava tentando descontrair… -, o ano desabafou.

“É muita pressão, meu filho. É expectativa demais nas minhas costas. O governo acha que eu vim salvá-lo. A oposição quer que eu venha redimi-la. E o PMDB?! Só se eu dedicasse meus 366 dias… Mas como eu poderia dedicar meus 366 dias ao PMDB, em ano de Olimpíada? O Dunga quer que eu faça o Brasil esquecer o 7 x 1. O COB quer que eu bata o recorde nacional de medalhas. Tudo na última hora. Tivessem falado comigo quando eu me chamava 2002, 2003, mas não. Chegam esbaforidos, agora: 2016, medalhas! 2016, crescimento! 2016, impeachment! 2016, sangue! 2016, paz! Ah, que ingênuos vocês são! Eu não posso nada disso, sabe por quê?”. “Por quê?”. “Porque eu não existo!”. “Bom, eu tô te vendo”. “Isso é um sonho!”. (De fato, mesmo sem existir, 2016 estava coberto de razão). “Eu sou um número no calendário. Rabiscos na areia da praia. Um post-it colado no vento. Veja só: às 23:59 de 2015 um sujeito jogou um moeda do alto do Martinelli. Quando deu o primeiro segundo de 2016, ela estava a meio caminho do chão. Sabe o que aconteceu com a moeda?”. “O quê?”. “Nada, pombas! Continuou caindo!”.

2016 se serviu de mais uísque. “Eu não entendo vocês. Quando vocês fazem aniversário, vocês ficam mais sábios? Vocês imediatamente se dão conta da finitude e da urgência e da inutilidade e da beleza de tudo?”. “Acho que não”. “Então por que vocês esperam tanto de mim? A terra vai continuar girando, passando pelo mesmo lugar de sempre, em torno do mesmo sol. Posso pegar umas lichias?”. “Por favor”. “Outro dia, um grego disse que um homem nunca entra duas vezes no mesmo rio, porque da segunda vez já não é o mesmo homem nem o mesmo rio”. “Heráclito”. “É. Esse aí. Uma besta quadrada! É sempre o mesmo homem, sempre o mesmo rio, sempre eu, igualzinho”. Dito isso, 2016 matou o uísque num gole, soltou um arroto formidável e saiu trôpego pela madrugada, rumo a fevereiro, já no ponto pro Carnaval. 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

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  1. ano que vem esse juno,
    esse 

    ano que vem esse juno,

    esse  january,

     esse janeiro  olha pra trás,

     para as ruínas de ontem,

    em direção ao futuro.

    e o que vê? daqui a um ano,.novo janeiro,.

    novo ano, ali 2017..

    estará um pouco mais velho.

    tropeçando pelas tabelas,

    festejando a virada ….

  2. mesmineiricece

    querido, em Minas é mais torresmo andando a esmo, trôfego no trâfego e no fôlego que resfolega feito lesma na lama descendente e doce, já agridose, agressiva dose, a mesma gosma e veneno que engoma e atiça a justiça, essa preguiça que espreguiça diante do (belo) horizonte, tomando cachaça envelhecida, enrijecida em face da mudança do ritmo da dança, na moita ou sombra, comendo queijo, descendo descendentemente indecente o morro, subindo e seguindo fervorosamente a trilha do namoro no adro, triângulo quadrado, rabisco tratado,rebusco manjado, imitandoo reinado, a ladainha dos podres e dos pares besuntados, bestas untadas, a marca da fé sobre o pó de café, padres a esfriar a banha dos porcos, que espalha a porca onda, outra vez lama e fama, recusando o beijo do sol, apelando ao carvão, escondendo o segundo, segundo a devoção, o minuto seguindo a tradução, a hora, agouro do agora, o dia, exposição que assombra o mês das contas e das quantas, igrejas, rezas e toucinho pingando do focinho, do farnel, desconfiança da penumbra, da obra, que faz brotar o quintal do futuro, o tal do furo no châo, tirado de dentro da cova, da fossa da tradição, o naco, a mandioca, o minério, necrotério que faz ministério, leite e mel, o  buraco branco que engole o ego, e o pior cego, que vê a vereda fazendo angu feijõ e couve, quase u berro que não se ouve, o ano novo em folha, em folhas, folhinhas amestradas, folias ultrajadas, engambeladas e bolhas na mão do espanto, espantalho, a sobra da sombra a temperar o prato, ato do alho e da cebola  cavando o cascalho, remoendo a remota memória, bicada e lambada, sob o céu de terno e gravata, lorota e gravata, bravata sobre o inferno que cata o riacho, que vai em cana, sempre a espera de um fio, e põe o filho no destino sombrio, sinfonia ingrata, estribilho do milho, do dono do aconchego e abandono, madrasta dos ais, a guardar a senha da próspera idade, criptografia alterosa, (La vie en rose), UAI?

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