Por que é tão difícil apurar denúncias de tortura quando os acusados são policiais?

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Maria Gorete Marques de Jesus

No Justificando

No dia 20 de outubro o delegado do 103ºDP prendeu o sargento da Polícia Militar acusado de torturar um jovem, juntamente com mais dois PMs. O laudo pericial do IML (Instituto Médico Legal) do rapaz teria constatado lesões na região da costela e múltiplas lesões na parte esquerda da nádega e coxas. O laudo indica, ainda, que a vítima teria sido submetida a choques no pênis, bolsa escrotal, pescoço e perna. Todas as lesões teriam sido fotografadas.

Após a prisão, policiais militares cercaram a delegacia em defesa do colega preso. Houve, inclusive, manifestações de deputados estaduais: um policial civil e outro militar. As notícias divulgadas indicam que o delegado teve que sair escoltado da delegacia e que teria recebido uma série de ameaças – não apenas contra ele, mas contra sua namorada e sua mãe. O noticiário também cobriu a audiência de custódia do policial militar. A imprensa, por meio de alguns porta vozes, aplaudiu a violência cometida por policiais contra civis.

Na audiência de custódia, a representante do Ministério Público pediu o relaxamento da prisão do policial e, subsidiariamente, a liberdade provisória. O juiz decidiu manter a prisão provisória do acusado, por entender que a denúncia era grave.  Os advogados do policial recorreram ao Tribunal de Justiça e sua prisão foi relaxada. Na mesma semana, o Comando da Polícia Militar teria soltado uma nota pública em defesa do policial.

O caso do policial chama a atenção pelas manifestações de apoio ao acusado de tortura, inclusive institucionais, sem ao menos ter sido iniciada uma investigação. Como se a suspeita do crime já fosse em si uma ofensa contra o agente policial e sua instituição. A denúncia é grave: trata-se de crime de tortura praticado por agente do Estado no exercício da sua função. Por que o medo da apuração do caso? Acaso milhares de pessoas não são mantidas presas porque supostamente cometeram tráfico de drogas, crime equiparado a hediondo? Por que no caso da tortura é diferente?

Durante o levantamento de acórdãos de casos de tortura na pesquisa Julgado a tortura (2015)[1] nos websites dos Tribunais de Justiça dos estados, nos deparamos com uma questão: ao digitarmos a palavra-chave “tortura” no campo de busca, mais de mil acórdãos apareciam. Contudo, não se referiam a crime de tortura, mas a casos de tráfico de drogas.

O sistema de busca selecionava estes acórdãos porque neles havia a seguinte frase “crime de tráfico é equiparado a crime hediondo, assim como tortura”. Ou seja, a tortura era utilizada para qualificar a hediondez do tráfico. Mas o contrário não acontecia: ao analisar 455 acórdãos de tortura, de 2005-2010, naqueles em que figuravam como réus agentes do estado, raramente havia menção de que a tortura era crime hediondo. Para os julgadores, a tortura não era classificada como hedionda nesses casos.

A tortura é um crime gravíssimo, especialmente quando envolve agentes do Estado, por isso considerado crime hediondo. Mas não causa a mesma reação nos operadores do direito do que o crime de tráfico de drogas. Esse é um elemento que merece ser objeto de pesquisas aprofundadas, mas, nos leva a questionar se não seria – mais uma vez – o perfil do acusado elemento essencial na compreensão da reação do sistema de justiça como um todo.

A tortura praticada por funcionários do Estado é generalizada no país – como já atestado pela ONU em diversas oportunidades[2] – e, mesmo assim, a forma com que os operadores do direito lidam com ela ignora sua ocorrência sistemática. Independentemente da prisão ou soltura do policial do caso citado no início desse artigo, o que é urgente é que as autoridades lidem com seriedade no combate e prevenção a esse crime gravíssimo e se percebam como peças chave nesse sistema e entendam que sua atuação em casos concretos tem potencial transformador de uma realidade ampliada.

O Estado precisa manifestar seu total repúdio à pratica da tortura por seus agentes. Essa, inclusive, foi a primeira recomendação do Relator Especial da ONU Nigel Rodley e relatório resultado da visita que realizou ao Brasil em 2000. O posicionamento do Estado sinaliza tem fundamental importância no combate, e na prevenção, da tortura.

Mais uma vez, falta compromisso e ação para tratar a tortura como questão séria a ser combatida, para que possamos viver em um país que respeite, minimamente, direitos fundamentais básicos. A manifestação de policiais militares e da própria instituição causa constrangimento, igualmente a forma como o Ministério Público conduziu o caso na audiência de custódia. Como órgãos do Estado, o que se esperava de tais instituições era a exigência de uma apuração de acusação tão grave. Certamente que os policiais têm direito à ampla defesa e contraditório, como qualquer pessoa tem (ou deveria ter), mas o fato de serem policiais não os exime da apuração das denúncias. Ao contrário, exige empenho do Estado para demonstrar que a tortura não é admitida ou tolerada.

O que se espera do Estado é que este caso seja devidamente apurado, que a vítimas e seus familiares sejam protegidos de qualquer ofensiva e que sua posição seja publicamente e efetivamente de intolerância à prática da tortura. Quando um delegado é ameaçado por tentar cumprir a lei, precisamos nos preocupar, e muito.

Maria Gorete Marques de Jesus é Socióloga Mestre e Doutoranda em Sociologia pela USP. Especialista em Direitos Humanos. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

14 Comentários

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  1. Até onde ví não houve no

    Até onde ví não houve no exame de corpo e delito nada que comprovasse o uso de choque eletrico.

    como o rapaz afirmou isso e nao foi provado, o discurso dele se torna insustentavel e fica irremediavelmente comprometido no tocante a veracidade do que ele afirma ter ocorrido,  pois o que sobra seriam apenas as marcas citadas no texto que poderiam inclusive ser fruto de açao deliberada do rapaz ao se expor ainda mais aos ferimentos para corroborar uma acusaçao que ele tenha decidido fazer quando fosse apresentado aao delegado.

    Isso é plausivel na medida em que ele tenha mentido ao citar ter sido submetido choques eletricos.

    relembrando que ele ficou preso na parte de tras da viatura algemado junto com uma bike…rs

    entao fica claro que NAO É POSSIVEL TIPIFICAR A TORTURA pois nao houve indicios do choque eletrico e as demais marcas podem ser explicadas pela condiçao onde ele teria sido transportado.

    e muito engraçado os textos dos ditos humanistas que quando gente deles é presa a defesa sobre  o criterio de PRESUNÇAO DE INOCENCIA,  e a condenaçao sobre prisão sem provas é TOTAL.

    Mas quando o assunto envolve uma corporaçao notoriamente odiada por eles TODA ESSA PREOCUPAÇAO COM A LEI desaparece…rs

    Se fosse um texto honesto jamais citaria esse caso e se o fizesse teria mais cuidado.

    Há sim muita coisa a explicar sobre este episodio, como uma suposta demora excessiva entre a detençao do rapaz e sua apresentaçao na undiade policial.

    Mas não dá pelas evidencias do caso até agora (e ainda que o PM tenha 2 casos de mortes no estrito cumprimento do dever legal) usar esta ocorrencia quando o assunto seja tortura.

    IMPORTANTISSIMO 😉

    Mais ou tao importante do que falar ou citar exemplo de tortura nas maos de policiais é DENUNCIAR a TORTURA, MAUS TRATOS, DESNUTRIÇAO, VIOLENCIA SEXUAL a que são submetidos TODOS os detentos  neste pais que já vive em regime civil A TRINTA ANOS

    Essa situaçao CRIMINOSA nao é encarada pelos humanistas com a vontade com que eles fazem quando o assunto seja atacar a policia ou defender preso SOLTO, sempre SOLTO pq defender preso SOB CUSTODIA envolver ter que julgar governos e governos tambem sao feitos pelos partidos tao queridos deles né?

    entao a gritaria fica reservada para bater na policia e defender marginal que nao esteja sob custodia…rs

    1. Sei que não deveria…

      … alimentar os trolls, mas lá vai:

      Cara, que parte do artigo você não leu? A que cita o laudo pericial do IML ou a que diz que o juiz responsável ratificou a prisão do PM? Ou só leu o título e já veio falar bobagem? Quer dizer então que o delegado, o médico perito e o juiz estão errados e só você está certo?

      Na boa, quanto estão te pagando?

    2. Você é analfabeto funcional?

      Do 1º parágrafo:

      ‘O laudo pericial do IML (Instituto Médico Legal) do rapaz teria constatado lesões na região da costela e múltiplas lesões na parte esquerda da nádega e coxas. O laudo indica, ainda, que a vítima teria sido submetida a choques no pênis, bolsa escrotal, pescoço e perna. Todas as lesões teriam sido fotografadas.’

      Mas pode continuar com sua verborragia…

       

      1. Nao ha laudo que aponte as

        Nao ha laudo que aponte as lesões como algo que nao poderia ser fruto de ato intencional do meliante durante o transporte.

        Logo na ausencia de um laudo que afirme que as lesões não poderia ser frutos dessa situação, e com o FATO que NÃO HOUVE CHOQUE ELETRICO, com o agravante que isso depõe contra a honestidade das afirmações do meliante nao sobra NENHUMA JUSTIFICATIVA para que o PM seja mantido preso pelo crime de tortura.

        É a famosa lei onde só pode ser preso alguem cujo crime possa ser comprovado.

        Entendeu ninja? rs

        Então segura sua onda…rs

         

        Obs: A menção sobre haver choque eletrico E DA AUTORA , NO TEXTO DELA…rs

        Não é o que diz o laudo de corpo e delito a qual foi submetido o meliante, alias o desembargador que relaxou a prisão do sargente frissou isso para sustentar sua decisão.

  2. Casos como o desse jovem

    Casos como o desse jovem torturado pelo PM são aceitos pela sociedade. É espantoso. Se houver uma pesquisa, pelo menos 70% dirão que o torturador agiu corretamente.  Não importa o tipo de crime cometido, basta que tenha sido praticado por pessoas pobres da periferia para que o acusado seja tratado como um animal e seus direitos, especialmente os mais básicos, sejam abolidos. O linchamento, crime muito coomum atualmente, vitimam até pessoas acusadas por simples casos de furto. Mesmo que tenha furtado um simples vaso de flores de um quintal, se cair nas mãos dos linchadores, será impiedosamente trucidado. O preconceito social é enorme e foi incutido nas próprias mentes daqueles que o sofrem pelo espetáculo midiático intermitente do PIG, que visa escandalizar qualquer tipo de crime comtedio por pessoas da periferia, de modo a incutir o ódio na população.

    Como exemplo, o caso da Escola Base. Apenas um aperitivo daquilo que é praticado pela mídia golpista:

     

          [video:https://www.youtube.com/watch?v=ba7WOYfPbm0%5D

    1. Aqui o colega Cafezá nos da

      Aqui o colega Cafezá nos da um exemplo de como usar um meio de informação ao melhor estilo da dita Midia Golpista

      Observe que não houve prova do rapza ter sido torturado e que as escoriaçoes podem ser resultados tanto do transporte algemado em atrito com a bike como dele mesmo para realçar uma denuncia que ele ja tinha decidido fazer.

      Ou seja o colega Cafeza ignora DELIBERADAMENTE que não ha meios que comprovem tortura ja que o exame levado a cabo pelo IML NAO CONSTATOU VESTIGIO ALGUM DE CHOQUE ELETRICO , e ainda assim considera  esse um caso de tortura.

      Certamente baseado no já famoso critério ” Dominio dos Fatos “

      Vai ser falasioso assim na china…rs

       

      Obs: A citação sobre o caso da Escola de Base é no minimo pertubadora…rs

      Pois foi cria de gente que usou o mesmo  “metodo” utilizado por ele para concluir (a revelia dos fatos ) que houve tortura neste caso especifico envolvendo este rapaz.

  3. RIOCENTRO

    O que desanima é saber que a ditadura militar acabou há 30 anos , mas as coisas continuam sendo conduzidas tendo o inquérito do RIOCENTRO como modelo.

    Se antes existia a mão pesada da repressão que impunha a vontade de certos grupos , hoje existe a fraqueza do estado – o que possibilita a imposição da vontade dos mesmos grupos .

    De que adiantou tudo isso até aqui ?

     

  4. pindorâmicas

    A lei contra crime de tortura (lei 9.455/1997) é mais uma que não pegou.

    Alguém aí acha mesmo que o sequestrador do Ônibus 174 foi morto dentro camburão pelos PMs em legítima defesa?

    Informa a Wikipédia:

    “de acordo com a polícia do Rio, Sandro [o sequestrador] tinha um comportamento nervoso e agressivo e chegou a quebrar o braço de um policial e morder outros ao tentar, supostamente, tirar uma arma deles. Após alegações de que a morte de Sandro foi ocasional, os policiais responsáveis pela morte de Sandro foram levados a julgamento por assassinato e foram declarados inocentes.”

    O 174 (Central-Gávea) agora é 158, e vida que segue.

  5. E impressionante como pessoas

    E impressionante como pessoas que em tese frequentem um blog como este por  entre outras coisas questionar o modo como a midia  noticia algo, são capazes de falar abobrinha.

    Oras o texto da autora cita de modo irresponsavel que houve choque eletrico nas partes intimas e demais partes do corpo do rapaz.

    Quando o Desembargador que relaxou a prisão do PM cita exatamente a ausencia dessa constatação no laudo do IML para justificar sua ação.

    Então o sujeito lê algoe nao se dá ao trabalho de procurar maiores informações e sai por ai repetindo um erro deploravel por parte da autora.

    E ainda se acha em condiçoes de julgar a midia , tenha dó…rs

     

    Obs: se alguem puder provar ai que consta no laudo do IML sinais de choque eletrico reconsidero minhas afirmações.

    Do contrario as postagens pretensamente humanistas são PATÉTICAS…

  6. Falácia

    Se palavra de bandido tivesse valor, eles confessavam os crimes e não enganavam até as próprias famílias! A grande maioria do que é definido como “tortura”, sequer passa de lesão corporal provocada pela ação do próprio bandido contra Agentes públicos.

  7. Violência Policial¨

    O Brasil que eu quero é que não mais existiam policiais militares para que as pessoas dentro de sua ideologia política e afins resolvessem o problema da violência pública sem dar nenhum tiro e e desarmassem todos os infratores de arma de fogo contra policiais, mulheres, crianças, inocentes e toda pessoa de bem que não se escora na vantagem e anuencia com os verdadeiros criminosos que iludem os ignorantes da notória cara de pau dos que são os verdadeiros covardes sem mérito!

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