Tchau, querida!, por Walfrido Vianna

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Tchau, querida!, por Walfrido Vianna

Gestada durante um ano e oito meses com a ativa participação de milhares de representantes da sociedade civil, ela devolveu o País ao Estado de Direito, depois de vinte e um anos de ditadura civil-militar e três anos e meio de transição.

“Declaro promulgado o documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil!”, disse um de seus pais naquele chuvoso 5 de outubro de 1988. Foi ele quem a chamou de “cidadã”, epíteto que a marcaria desde sempre.

O seu nascimento foi considerado o início de uma nova ordem, com a consolidação de um efetivo Estado Democrático Social de Direito em que se operaria a afirmação dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana por meio de garantias relacionadas a direitos sociais – sobretudo aquelas com o propósito da erradicação da pobreza extrema no País –, de modo a conformar o que se convencionou chamar “desenvolvimento social”.

A partir dela, o processo de democratização começaria a promover uma importante reforma do sistema de proteção social no País. Entre os seus 250 artigos, encontravam-se expressos fundamentos e disposições relativas à superação da miséria, a fim de garantir direitos e de concretizar o princípio da igualdade e o da dignidade da pessoa humana.

Já em seu Preâmbulo, asseguravam-se os “direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”. No artigo 1º, afirmava-se que um dos cinco fundamentos em que se assenta o Estado Democrático de Direito era a dignidade da pessoa humana.

Menos generalista era o artigo 3º, sobre os objetivos da República, entre os quais estava a construção de uma sociedade justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos, sem quaisquer preconceitos ou discriminação.

Um dos seus pontos altos era o artigo 5º, com 78 incisos, alguns dos quais inesquecíveis: “X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação”; “XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção”; “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”; “LVII – ninguém será considerado culpado sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”…

Quanto à realização do princípio da igualdade material, é inegável: por causa dela o foco foi desviado do geral para o particular, no sentido em que, a par de prestações estatais de cunho universalista, passou-se gradualmente à focalização de segmentos cada vez mais restritos. Decorrentes disso são as ações afirmativas e as políticas de transferência condicionada de renda, entre elas o Programa Bolsa Família, instituído em 2003, como estratégia de combate à pobreza e à desigualdade; e o afunilamento dessa focalização a partir da instituição, em 2011, do Plano Brasil Sem Miséria. Não à toa, em pouco mais de uma década, dezenas de milhões de brasileiros foram retirados da pobreza e da pobreza extrema. E o Brasil saiu do Mapa da Fome: agora é um dos 35, entre os mais de 200 países, a estar fora dele.

É certo que, ainda na sua infância, durante o vagalhão neoliberal dos anos 90, ela sofreu ataques ferrenhos dos que pugnavam pelo “Estado Mínimo”, o que significava que ela também devia ser mínima, especialmente no que se referisse à garantia de direitos sociais.

Mas nada se compara à via crucis por que ela começou a passar antes mesmo do término do primeiro mandato da presidenta: no País e fora dele, já articulavam um golpe os barões da mídia, setores do Judiciário e do Ministério Público, parlamentares corruptos preocupados com os rumos das investigações, segmentos de uma classe média a cada dia mais midiotizada, o grande capital estrangeiro e governos de outros países ávidos pelo Pré-Sal e incomodados com o protagonismo do Brasil no cenário internacional.

Foi então que ela começou a ser vilipendiada em praça pública, no Congresso, na imprensa, nas varandas gourmet, nos tribunais. E tome-se “teoria do domínio do fato” e “cognição sumária”. E manifestações anticorrupção lideradas por notórios corruptos. E vira-latismo travestido de patriotismo. E clamor fascista pela intervenção das Forças Armadas. E seletividade de juízes e promotores a atuarem fora da lei. E as conduções coercitivas. E a grotesca farsa do impedimento sem crime de responsabilidade. E tudo sob o beneplácito de uma Corte ironicamente chamada de “suprema”, que, em sua inércia, deixou de ser a sua guardiã e se tornou cúmplice nada ínfima de um ataque que a feriu de morte.

Estuprada e morta aos 27 anos, ontem ela completaria 28.

Walfrido Vianna é professor, escritor, bacharel em Direito pela USP e revisor da editora do Senado Federal.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

7 Comentários

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  1. R.I.P. Constituição Cidadã
    Belo texto.

    A CF trazia em si um poderoso projeto de futuro para o país. Assassinada a Carta, morto o projeto.

    O Golpe destruiu vários de seus valores fundamentais, com a separação e o equilíbrio entre os poderes, o direito à defesa, a solidariedade e a redução das desigualdades como fundamentos da República, o direito à livre iniciativa, a liberdade de expressão, a presunção de inocência.

    1. DEFESA DA CONSTITUIÇÃO

      O golpe do impixe e os subsequentes têm destruído o respeito a direitos básicos da cidadania democrática e a crença enganosa segundo a qual estaria em plena vigência a Constituição Federal, quando, na realidade, o estado de exceção há muito já começara a evidenciar-se, em diversas situações pontuais.

      Todavia, fato é que os golpes não podem destruir os valores fundamentais, visto que tais valores existem na consciência e nas práticas cotidianas das pessoas que nutrem e preservam os princípios essenciais da dignidade humana.

      Concordo com o autor do comentário quanto às patentes evidências de que, tão logo promulgada a Constituição de 1988, começou, por parte de diversos segmentos políticos, o abandono do projeto de um futuro inclusivo e justo.

      Contudo, considero equivocada a conclusão segundo a qual o referido projeto estaria morto e os valores fundamentais teriam sido destruídos, pois creio que a Constituição Cidadã pode e deve ser defendida e aprimorada, ao invés de ser declarada morta. Inclusive em face das evidências gritantes de que a convocação de uma nova Constituinte é tudo que os construtores do caos, a serviço do imperialismo predatório, desejam, para sepultar em definitivo direitos sociais e garantias democráticas, através da alteração de cláusulas pétreas e de outros absurdos.

      Portanto, no atual momento deplorável da História brasileira, urge defender a Constituição, através do aprimoramento jurídico por meio de emendas constitucionais e de legislação infraconstitucional, de modo a promover o resgate pleno da legalidade e a consequente restauração da efetiva vigência do Estado Democrático de Direito.

      O momento político é adverso, razão pela qual é ainda mais recomendável ter prudência e lucidez, para preservar as reais possibilidades de reversão dos retrocessos havidos, de evitar os riscos de retrocessos maiores, e de virar o jogo.

  2. Tchau….

    Caro sr., esta Constituição produziu esta democracia pífia, numa fantasia de Estado? Quase 82% dos presidiarios brasileiros estão encarcerados sem ao menos UM único julgamento. Presunção de Inocência? Aonde? Quando? Quando os amigos dos amigos do Poder, que vivem embaixo de holofotes, podem ser alcançados pelo cárcere? E as mulheres destes presidiários, a maioria homens, quando vão aos presídios os visiterem? A Constituição protegeu estas pessoas de práticas tão descriminatórias, humilhantes e medievais? E a CENSURA? Prática usual em qualquer área que expressa um mínimo do poder nacional? Executivo, Legislaivo, Judiciário, Imprensa, empresas, espaços públicos….Liberdade de expressão? A atual Constituição Brasileira produziu 2 Presidentes da República, entre 4, de forma imposta sem a autorização soberana da nação brasileira. Produziu a ditadura do voto obrigatório. O resultado esta aí mesmo para quem insiste em não enxergar. 

  3. Perfeito

    Ironia da história: uma CF é rasgada em pleno estado de direito e é rasgada sob a manto anganoso de estarmos aprofundando o estado … de direito, e agora vivemos o estado de exceção apoiado pelo voto. Sim, nossa democracia é fragil, ainda nutrida pelo leite materno da ética e da verdade.

  4. LUCIDEZ E PERSEVERANÇA

    O artigo é consistente e contém muitas reflexões relevantes, bastante didáticas e de brilhante lucidez. Especialmente no que tange ao destaque de aspectos essenciais de disposições constitucionais cuja compreensão é indispensável para o entendimento da importância social e humanística da Constituição Federal de 1988.

    Todavia, em minha humilde opinião, o texto em apreço merece respeitoso, vigoroso e urgente reparo em face do equívoco contido na conclusão apresentada, visto que, apesar de agredida, caluniada e vilipendiada, a Constituição Cidadã não está morta, pois permanece vigente e não foi lobotomizada pela sanha reacionária imperialista.

    Ainda que os flagrantes, crescentes e deploráveis atos de desrespeito a expressas disposições constitucionais impliquem na evidência indelével de que, na prática, a Constituição tem tido sua vigência amplamente negada, fato é que, do ponto de vista legal, teórico e institucional, a Carta Magna permanece em vigor.

    Portanto, a Constituição só será morta se a sociedade brasileira aceitar que assim seja.

    E, sem dúvida, é dever da cidadania consciente e da militância progressista atuar de modo criativo, coerente e articulado, no sentido de denunciar a gravidade da escalada do arbítrio pretensamente justiceiro, em marcha desvairada desde o advento da incompleta  redemocratização e dos subseqüentes surtos neoliberais e fascistóides.

    É preciso mobilizar a sociedade de forma ampla, lúcida e perseverante, através da atuação ágil, sinergética e rigorosa das instituições representativas, com o objetivo de conscientizar a comunidade nacional e internacional acerca da necessidade de que todos busquem contribuir, nos limites de suas possibilidades, para a construção coletiva de alternativas políticas capazes de viabilizar o resgate pleno da legalidade e a preservação efetiva de todo o valiosíssimo e indispensável acervo de garantias aos direitos sociais e individuais consagrados na Constituição Cidadã.

  5. Quando não interessa, uma banana para a Constituição

    O professor Vianna explicitou perfeitamente o “tchau, querida!” Quando foi proferido na Câmara, estavam mandando a presidenta Dilma embora e ao mesmo tempo dando uma banana para a Constituição. Agora querem comemorar seus 28 anos, os hipocritas.

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