
E agora, Venezuela?, por Luis Felipe Miguel
Eleições servem para oferecer uma solução provisória às disputas políticas e promover uma reunificação momentânea em sociedades cindidas por interesses antagônicos – se bem que esse efeito tem diminuído conforme a direita radicaliza seu discurso (aquilo que a Ciência Política e o jornalismo chamam pudicamente de “polarização”).
Eleições contestadas, porém, levam ao resultado oposto. E é difícil acreditar que a vitória de Maduro corresponde mesmo ao resultado das urnas.
Embora o “Poder Eleitoral” conte como um poder independente na Venezuela, o fato é que a Comissão Nacional Eleitoral serve a Maduro. A falta de transparência e as incongruências do anúncio do resultado tornam a reeleição bem duvidosa.
Também não há dúvida, por outro lado, que a oposição gritaria “fraude” em qualquer circunstância.
Em grande parte da esquerda brasileira, a posição padrão é o apoio ao governo da Venezuela. É razoável ver a cobiça pelo petróleo como motor principal da antipatia pelo regime. Donald Trump, um homem sincero, enunciou esse fato francamente.
A retórica antiimperialista de Chávez despertava simpatia. O cruel embargo econômico, solidariedade. As múltiplas tentativas de desestabilização do regime por parte dos Estados Unidos, repúdio. A demonização da Venezuela pela direita, por vezes de forma absolutamente caricata, revolta.
(A Folha de S. Paulo, por exemplo, chama Maduro de “ditador”, epíteto que, porém, não aplica nem à família real da Arábia Saudita.)
O sucessor de Chávez deu mostras suficientes de que não tinha grande capacidade de liderança ou apelo popular – muitas vezes pareceu mesmo não fazer jus ao próprio sobrenome. Mas manteve a retórica antiimperialista, enfrentando embargo, tentativas de desestabilização e demonização ainda maiores. Logo, o apoio da esquerda prosseguiu.
De fato, a oposição venezuelana, salvo exceções irrelevantes, aceita alegremente o papel de fantoche dos Estados Unidos. María Corina Machado, seu nome mais importante, que seria a candidata caso não tivesse sido considerada inelegível, é uma ultraliberal que não esconde seus laços com a extrema-direita internacional.
O governo venezuelano, por sua vez, toma a forma de uma estrutura altamente militarizada, que reprime dissidentes e concentra poder e privilégios no círculo dirigente.
É fácil criticar Maduro pelas medidas que tem tomado, que violam as regras da ordem democrática liberal, mas é preciso ver também como a direita tem emparedado o governo com uso de formas bem pouco legítimas de sabotagem, financiadas amplamente pelo imperialismo estadunidense. Sua estratégia parece ser colocar o país à beira de uma guerra civil para forçar o governo a recuar, a fim de evitar o banho de sangue. Não seria a primeira vez, aliás, que a direita latino-americana e seus chefes da América do Norte seguiriam esse caminho.
O fato de que existe uma alternativa ruim (o projeto imperialista para a Venezuela) não torna necessariamente boa a outra opção.
Assim como não é a OTAN ser ruim que torna Putin bom. Não é os Estados Unidos serem ruins que torna boa a Coreia do Norte. Não é Trump ser o que é que limpa a cara de Kamala Harris.
E, sobretudo, não é porque o modelo liberal concorrencial que impera nos países ocidentais é uma pálida realização dos ideais democráticos de igualdade política e soberania popular que o tipo de regime repressivo que impera na Venezuela pode ser chamado de democracia.
Na Venezuela, como em Cuba ou na Nicarágua, os direitos políticos formais são ignorados com a justificativa da necessidade de impedir uma contrarrevolução. Mas essa narrativa não corresponde a uma realidade em que presos políticos se contam às centenas, manifestações pacíficas são reprimidas com severidade e qualquer dissidência é silenciada.
Os excessos repressivos legitimam a narrativa da oposição. As acusações infundadas de “agente do imperialismo” e “sabotador” a qualquer crítico do regime desmoralizam as denúncias reais.
Falta aquele elemento que, segundo o filósofo Claude Lefort, corresponde ao “gesto inaugural” da democracia: o reconhecimento da legitimidade do conflito.
As pessoas podem ter visões de mundo diversas. A democracia lida com essa diversidade. Se qualquer discordância do governo é tratada como traição, então não há democracia.
A eleição seria o momento em que a diversidade de visões de mundo – ou, mais especificamente, de projetos de sociedade – se manifesta formalmente.
Estamos habituados a um padrão muito baixo: a força do dinheiro, a manipulação da informação e as condições sociais e econômicas que condenam muitos à ignorância política, tudo isso faz com que os resultados eleitorais correspondam apenas ritualmente a uma “vontade do povo”.
Ainda assim, a fraude eleitoral – que é, à luz das evidências disponíveis, o que provavelmente aconteceu na Venezuela – representa uma ruptura séria.
Se o regime quer se legitimar por meio do voto, então que respeite as regras do jogo.
Não há nem mesmo um “socialismo” como outra face da moeda. Os dados mostram que, ao fim da primeira década do século XXI, isto é, após também dez anos de governo bolivariano, o setor privado ampliara sua participação na economia venezuelana, o capital se apropriava de uma parcela maior da riqueza nacional e a taxa de exploração do trabalho crescera. O socialismo da Venezuela de Chávez estabeleceu muito mais uma peça de retórica do que um projeto de sociedade em ação.
Embora a palavra esteja em todas as bocas, não vejo um lado a favor da “democracia” neste conflito. A oposição de direita quer simplesmente estabelecer um ambiente institucional mais vulnerável à pressão das elites econômicas. O governo venezuelano responde a isso rompendo com parte do modelo político liberal, sem apresentar uma alternativa de democracia popular mais avançada. E quem pretende criticar o chavismo sem jogar água no monjolo da reação fica numa posição quase impossível.
Cabe à esquerda propor um modelo de democracia que vá além do liberal. Mas deve ir além, não se acomodar com regimes autoritários por simples maniqueísmo, por estarem em oposição aos Estados Unidos.
E democracia e direitos não podem ser considerados detalhes descartáveis – não para a esquerda da qual quero fazer parte.
Não vejo solução fácil para a situação da Venezuela. Maduro não tem liderança, nem jogo de cintura, para reformar o regime por dentro, tornando-o novamente capaz de mobilizar a população em seu favor. E a oposição está completamente hegemonizada por uma direita ultraliberal, curvada aos Estados Unidos e mesmo simpática ao fascismo.
Os desfechos mais prováveis são, infelizmente, uma degeneração ainda mais acelerada do chavismo, levando a uma ditadura pessoal caricata, ou o sucesso de um golpe pró-imperialista.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
O texto razoável, traz na sua introdução uma ideia central que o invalida:
“Eleições servem para oferecer uma solução provisória às disputas políticas e promover uma reunificação momentânea em sociedades cindidas por interesses antagônicos – se bem que esse efeito tem diminuído conforme a direita radicaliza seu discurso (aquilo que a Ciência Política e o jornalismo chamam pudicamente de “polarização”).”
Não, caro cientista político, eleições não servem para isso.
Eleições são uma construção ideológica capitalista, dedicada a incutir a ideia de que há um controle externo (e há, de verdade) às relações capitalistas estruturais de expropriação de uma classe (donos do capital) por outra (os trabalhadores).
E que esse controle político externo e alheio às tais relações econômicas possa se dar na disputa pelo controle do Estado (esse ente que estaria acima das classes), onde os conflitos seriam temporariamente solucionados, até que novos conflitos surjam.
A chamada “democracia”.
Nem uma coisa, nem outra: nem há democracia, porque nunca há chance alguma de alternância de poder (mas apenas, de governos), e nem há mais como conter o desmonte da legitimidade dessas formas de representação, quando o próprio capital já se reproduz sem necessidade das antigas relações econômicas de antes, e que necessitavam desse esquema (superestrutura) de controle de classes.
O restante do texto diz justamente isso, mas o autor, talvez por comedimento (medo), talvez não enxergar mesmo, nada diz.
É inteligível, já que assumir a premissa acima é colocar em xeque a própria ciência que lhe dá autoridade, ou seja, a ciência social e política no mundo capitalista, em sua maioria, está construída na crença que há uma normalidade democrática possível dentro do capitalismo.
(risos).
Ou seja, o impasse do texto todo é uma contradição clara à sua introdução.
Ora, se houvesse chance de existir uma “democracia” possível, seja na Venezuela, seja nos EUA, na França ou no Brasil, tais impasses deveriam ser resolvidos democraticamente, sempre.
Não nos parece que seja possível. Não mais.
Olhem o caso do Brasil.
Um governo obediente, fraco, covarde mesmo, totalmente alinhado com as forças econômicas que massacram a maioria pobre dos brasileiros, e mesmo assim, ainda que totalmente prostrado, nunca é suficiente, e cada vez mais, a tese da urgência, do golpe, das ameaças faz sombra sobre os encolhidos eleitos.
Pergunta:
E se Lula ousasse mais? Se fosse na direção da Venezuela, afinal, ainda que na pior m*rda do mundo, os venezuelanos ainda são donos do seu petróleo (ainda).
Seria o fim do mundo? Ou a América Latina seria mais respeitada?
O problema é que por aqui, o medo é anterior, e serão queimados na fogueira os que sequer propuserem tal problema.
Seja lá quem saia vivo, Maduro ou a oposição, uma coisa é certa: os militares continuam tendo o poder econômico da Venezuela ( leia-se PDVSA ) e por isso são os que darão as cartas no país, não importa o presidente.