Governo Boric: sem reforma tributária e em desaceleração econômica, por André Moreira Cunha

Em 2019 e 2020, os chilenos foram maciçamente às ruas protestar contra os efeitos colaterais de cinquenta anos de neoliberalismo

(Photo by Chilean President-elect Gabriel Boric press team / AFP)

O Governo Boric: sem reforma tributária e em desaceleração econômica[1]

por André Moreira Cunha

“El neoliberalismo nace y muere en Chile” (Anônimo, 2019)

“Fue un golpe brutal” (Marcos Barraza, do comité central do Partido Comunista do Chile – declaração após derrota da proposta de nova Constituição em plebiscito de 2022)

“La votación de hoy ha sido un golpe a la esperanza, pero Chile sabe recuperarse de estas pequeñeces” (Gabriel Boric ao comentar a derrota de sua reforma tributária)

A Desaceleração Econômica no Chile

Em 2022, primeiro ano da gestão Boric, a economia chilena experimentou uma desaceleração mais intensa do que a observada em seu entorno regional e no mundo. As projeções atuais de instituições como OCDE, Cepal, IMF, Banco Mundial, para citar algumas, convergem com um cenário de queda do produto interno bruto em 2023 e manutenção de um ritmo de expansão ao redor de 1,1% a.a. para a média do período 2023-2025. Vale dizer, um quadro de estagnação quando se considera a evolução da renda per capita.

Para a OCDE tal desempenho negativo se deve a uma combinação de fatores, com destaque para o efeito da aceleração inflacionária no consumo das famílias, o ambiente financeiro mais restritivo, com juros em alta e confiança empresarial em baixa, e o término de estímulos fiscais criados no contexto da pandemia da Covid-19. Para fazer com que a inflação volte a convergir com a meta oficial de 3% a.a. até 2024, o Banco Central do Chile possivelmente seguirá com o aperto monetário. No plano fiscal, a proposta de reforma tributária do governo Boric, que estimava gerar 3,6% do PIB em receitas adicionais, não foi aprovada pelo Congresso. A medida dependia de 74 votos, mas obteve apenas 73. Em discurso forte, Boric acusa a oposição de bloquear as transformações demandadas nas ruas em 2019 e 2020.

A economia internacional não está colaborando com o Chile. O Fundo Monetário Internacional, em seu Panorama da Economia Global de janeiro 2023, estimou a variação do produto mundial em +3,4% (2022), +2,9% (2023) e +3,1% (2024), valores que se situam abaixo da média do período 2000-2019: +3,8%. A América Latina é a região periférica com o pior desempenho relativo para o próximo biênio: +1,9% (2023) e +2,1% (2024), valores que seguem abaixo da média global e equivalem a menos da metade do ritmo geral dos países emergentes e em desenvolvimento (+4,0% e +4,1%).

Nos marcos do declínio relativo da América Latina, a economia chilena era apontada uma das exceções de maior projeção na literatura. Sua renda per capita cresceu +4,2% a.a. entre 1981 e 2021, +1,1 p.p. acima da média internacional (+3,0% a.a.). Argentina (+1,8% a.a.), Brasil (+2,1% a.a.), México (+2,1% a.a.) e Venezuela (2,1% a.a.) mantiveram um ritmo bem inferior, muito aquém do avanço observado no resto do mundo. A despeito deste resultado, o Chile continuou a compartilhar dos demais males típicos da região, especialmente no que tange à oferta de serviços públicos, forte concentração da renda, da riqueza e do poder político. O modelo neoliberal consagrado pela Constituição de 1980 e herdado do período Pinochet (1973-1990) foi arquitetado de forma estratégica e implementado com violência e radicalidade.

No livro “The Chile Project”, Sebastian Edwards detalha como o Departamento de Estado do governo estadunidense estimulou o treinamento de economistas chilenos na Escola de Chicago, então liderada por Milton Friedman, economista de projeção internacional e ideólogo libertário. Edwards, que foi um dos jovens chilenos formados em Chicago, mostra que com a derrubada do governo de Salvador Allende, em 1973, os assim-chamados “Chicago Boys” estiveram na linha de frente na implantação das políticas de desregulamentação e de privatização. Com elas o país foi consagrado como um modelo a ser seguido no âmbito do Consenso de Washington. Ainda assim, a era Pinochet não apresentou nenhum resultado importante em termos de dinamismo econômico. Pelo contrário, a economia cresceu menos do que média global e sua estrutura produtiva e pauta exportadora se tornaram ainda mais dependente dos recursos naturais.

Os Desafios de Boric

A despeito de um desempenho superior com respeito aos vizinhos, o caso chileno está longe de configurar um sucesso. Gabriel Palma, professor emérito da Universidade de Cambridge, e Cherif e Hasanov, do FMI, analisaram os determinantes do crescimento do Chile em comparação com as economias mais dinâmicas da Ásia e constataram que o modelo chileno se caracterizou variações pífias na produtividade – do trabalho e total dos fatores –, níveis menos robustos de investimentos, além da elevada concentração da renda e da riqueza, e baixos investimentos públicos em saúde, educação e seguridade social. Como resultado, os períodos de maior prosperidade dependem muito mais de abundância de liquidez externa e de preços elevados de seus principais recursos naturais, do que de uma dinâmica virtuosa assentada em ganhos de eficiência.

Com uma estrutura produtiva e de comércio internacional baseada em recursos naturais, o Chile é um dos países que menos investe em pesquisa e desenvolvimento tecnológico (P&D). Como proporção do PIB tal dispêndio atinge a média de 0,3% na década de 2010, contra uma média de 2,4% na OCDE. Os investimentos públicos em formação bruta de capital foram, em média, de 3% do PIB na década de 2010, bem abaixo dos 9% verificados nas economias emergentes e em desenvolvimento. Os investimentos totais chegam a 28% do PIB no Chile ante os 31% dos emergentes.

Na área social, os gastos públicos em previdência no Chile (3,1% do PIB) equivalem a menos da metade da média da OCDE (7,7% do PIB). O apoio aos desempregados (0,06% do PIB) também é muito inferior ao conjunto destes países (0,58% do PIB). Já os benefícios sociais às famílias são de pouco mais de 5% do PIB no Chile, contra a média da 18% na União Europeia. Os investimentos obrigatórios em saúde por parte do Estado chileno atingem USS 1,6 mil por habitante/ano, e correspondem a 1/3 dos dispêndios dos países de alta renda. Os investimentos públicos em educação estão na média da OCDE, 3,1% do PIB; já os privados (1,6% do PIB) são três vezes maiores com respeito àquele conjunto de países (0,5% do PIB). O gasto total por estudante que atinge o nível superior no Chile é de US$ 10,5 mil/ano contra os US$ 17 mil na média da OCDE.           

Se as projeções atuais se confirmarem, o governo Boric será marcado pelo retorno ao padrão de crescimento que caracterizou tanto o período Pinochet (1973-1990), quanto as décadas que o antecederam. Entre 1951 e 1990, a renda per capita do Chile cresceu sistematicamente abaixo da média global (-1,1 p.p. a.a.). Foi na redemocratização, principalmente durante os sucessivos governos da “Concertación de Partidos por la Democracia” ou, somente, “Concertación”, que o país passou a apresentar um desempenho um pouco melhor (+ 1,3 p.p. acima do ritmo mundial, em média anual). Com os dados do FMI, pode-se projetar uma taxa média de crescimento de 0,4% a.a. na renda per capita durante o mandato de Boric, bem abaixo da estimativa global de +2,2% no mesmo período.

Com os protestos contra o governo Piñera (2019-2020) e a formação de uma nova Assembleia Constituinte (2021) observou-se a perda de força dos partidos e coalizações tradicionais, da esquerda e da direta. Candidaturas independentes e da “nova esquerda” foram majoritárias. A direta de Piñera – movimento “Vamos pelo Chile” – obteve apenas 19% dos votos, com o seu pior resultado na história. Os conservadores entraram no processo constituinte sem ter sequer o poder de veto, que demandaria mais de 1/3 dos votos. A centro-esquerda foi ainda pior: 14% dos votos. Já a nova esquerda representada pelos comunistas e pela Frente Ampla (18%) e os movimentos sociais agrupados em torno da Lista do Povo (16%) foram os destaques.

Para culminar esta reorganização política, Gabriel Boric, do partido Convergencia Social, cofundador do Frente Amplio, em 2017, foi eleito presidente com base na expansão das críticas aos limites do modelo neoliberal no Chile e no fortalecimento daquilo que a literatura especializada denomina de política identitária. Para a decepção de quem não havia atentado para os alertas de intelectuais como Eric Hobsbawm sobre os riscos da pulverização de pautas no âmbito do identitarismo, a nova esquerda chilena não foi capaz de traduzir o imenso apoio popular que antecedeu às eleições da Assembleia Constituinte e realizar as reformas demandas nas ruas. A nova carta foi rejeitada pelo plebiscito de 2022 com 62% dos votos. É importante lembrar que, em 2020, 81% dos eleitores disseram não para a direita e, assim, para a constituição de Pinochet e seus resquícios neoliberais.                 

A revolução neoliberal dos Chicago Boys perdeu muito (ou todo) do seu suposto brilho. Em 2019 e 2020, os chilenos foram maciçamente às ruas protestar contra os efeitos colaterais de cinquenta anos de neoliberalismo. A expectativa era de que uma nova geração de lideranças, agora mais alinhadas à vontade da população e dispostas a remover os entulhos do neoliberalismo, promoveria um novo ciclo de prosperidade. Esta, por sua vez, seria alicerçada em mais investimentos sociais e melhor distribuição de oportunidades no conjunto da sociedade, aos moldes do que apregoa Joseph Stiglitz, outro ganhador do prêmio Nobel em Economia, mas como posições opostas às da escola de Chicago.

Em entrevista recente, Stiglitz afirmou que os governos de centro-esquerda se relevaram mais eficientes para gerir os desafios econômicos do século XXI. Para ele, tais governos “… foram eleitos para criar um senso melhor de prosperidade compartilhada [uma outra forma de dizer crescimento inclusivo, que abrange a melhora de vida da parcela mais pobre da população] … em muitos sentidos, eles se tornaram melhores gestores da economia. Digo isso porque a economia do século 21 é baseada em inovação, competição, alto nível de capital humano e boa infraestrutura pública.”

Para atingir o padrão sugerido por Stiglitz, o Chile precisaria efetivamente mudar sua organização econômica e social. No informe da OCDE “Society at a Glance 2019”, constata-se que antes da onda de protestos, ¾ da população chilena considerava não receber do Estado a contrapartida justa pelos impostos pagos (p.69). Ademais, 80% entendia que os governos deveriam fazer mais para garantir sua segurança econômica e social (p.70). Tal insatisfação ganha amparo nas estatísticas: enquanto os gastos sociais totais atingiram 20% do PIB na OCDE durante a década de 2010, no Chile tal cifra foi de somente 13% (p. 104).

Após um primeiro ano marcado pela rejeição da proposta de Constituição e uma importante perda de dinamismo econômico, com perspectivas de um resultado negativo em 2023 e de baixo crescimento até 2025, Gabriel Boric terá pouco tempo para realizar sua agenda de transformações e convencer a sociedade de que a nova esquerda chilena terá condições de liderar o país. Sem conseguir aprovar sua reforma tributária e, com isso, obter os recursos potenciais para suas políticas sociais, amplia-se a chance de um mandato com muitos discursos fortes e poucos resultados concretos. Se isso vier a ocorrer não será uma surpresa que emerja uma “nova direita”, que explore outras dimensões da política identitária para preservar a estrutura distributiva que favorece somente as elites.


[1] Esta é a versão resumida do artigo disponível no Portal da FCE-UFRGS.

André Moreira Cunha – Docente do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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