Jose Luis Fiori
José Luís Fiori - Professor emérito dos Programas de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), da UFRJ. Coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ,
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Javier Milei – espalhafato e mesmice, por José Luís Fiori & André Ferrari Haines

Milei representa algo menos disruptivo e inovador que à primeira vista, se se olha apenas para as esquisitices desse animador de televisão

Reprodução Redes Sociais de Javier Milei

no A Terra É Redonda

Javier Milei – espalhafato e mesmice

por José Luís Fiori & André Ferrari Haines

Expressiva vitória eleitoral do candidato de extrema direita, nas eleições presidenciais argentinas do dia 19 de novembro de 2023, deve interromper ou abortar – mais uma vez – o projeto de criação de um bloco de poder internacional no Cone Sul da América. Como foi concebido pela primeira vez, durante os governos de Vargas e Peron, na primeira metade da década de 1950.

E é muito provável que venha a suspender a entrada da Argentina no grupo do BRICS, deixando um ponto de interrogação com relação ao processo de expansão do Mercosul que está em pleno curso. E com certeza deve ensejar uma reorganização do sistema partidário argentino que funcionou nestes últimos quarenta anos, depois do fim da terrível ditadura militar daquele país que durou de 1976 a 1983.

Representa, no entanto, algo menos disruptivo e inovador do que pode parecer à primeira vista, quando se olha apenas para as esquisitices desse animador de televisão que chegou à presidência da República do seu país dois anos apenas depois de iniciar sua carreira política.

Reproduzindo um pouco, neste sentido, o caso do atual presidente do Chile, que também se elegeu presidente da República sem nunca ter participado de qualquer outra eleição ou cargo executivo, como aconteceu também com o presidente americano Donald Trump.

O próprio personagem caricato e o histrionismo do novo presidente reproduzem um fenômeno que vem se repetindo e multiplicando dentro da extrema direita ocidental, com a escolha de figuras cômicas e falsamente disruptivas como forma de galvanizar os jovens e o desencanto radical das pessoas.

O primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, talvez tenha sido, aliás, o primeiro desta série de comediantes, palhaços e animadores de programas televisivos que alcançaram o governo de seus países através de uma combinação de suas interpretações com o uso extremamente eficiente das redes sociais. Depois de Silvio Berlusconi, foi o caso também de outro italiano, Giuseppe Grillo, o comediante que criou o Movimento 5 Estrelas e se transformou do dia para a noite no terceiro maior partido da Itália.

Do próprio presidente Donald Trump, que também saltou diretamente da televisão, dos campos de golfe e da especulação imobiliária para a presidência da maior potência do mundo. E como não lembrar de Volodymyr Zelensky, de profissão palhaço, e que também saltou dos circos e da televisão diretamente para a presidência da Ucrânia.

O novo presidente da Argentina sempre foi um animador de programas de televisão, muito mais do que um professor de economia, coisa, aliás, que sabe muito pouco apesar das aparências.

E foi nestes programas de televisão, onde ele sempre foi um “quase comediante”, que ele desenvolveu sua retórica contra tudo e contra todos, ora saltando, ora cantando, ora se fantasiando e fazendo afirmações que escandalizavam a sociedade argentina, mas que foram conquistando o apoio de uma massa jovem, deslocada e desempregada da população cada vez mais desalentada com o estreitamento de suas “oportunidades” fora do mercado regulamentando de trabalho na Argentina.

A campanha do novo presidente argentino assumiu direta e explicitamente, como seu ideal, o projeto “utópico-retroativo” de voltar a 1860 e retomar o caminho da Argentina entre 1860 e 1930, sem a menor consideração pelo fato de que a humanidade, o capitalismo e seu próprio país mudaram radicalmente durante os últimos 150 anos.

Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo se a Inglaterra quisesse voltar à sua “Era Vitoriana”, e reconquistar seu império colonial do século XIX, utopia retroativa, aliás, que ocupou um lugar central no imaginário coletivo dos ingleses que aprovaram o Brexit que está na origem da crise profunda e da decadência atual da própria Inglaterra.

O certo, contudo, e o mais importante para pensar o futuro argentino, é que o novo presidente de extrema direita, com suas esquisitices e aberrações, só conseguiu se eleger no segundo turno, graças ao apoio integral da direita tradicional comandada por Mauricio Macri, e que votou em Patricia Bulrich, no primeiro turno.

O novo presidente se elegeu com o apoio de Mauricio Macri e Patricia Bullrich, e este apoio só aconteceu depois de um acordo envolvendo a divisão de funções e cargos dentro do novo governo.

E o mais provável é que quem afinal governe a Argentina seja de novo Mauricio Macri junto com seu grupo de economistas e profissionais indispensáveis para um neófito isolado, sem partido, e sem contar com apoio – neste momento – de nenhum dos 23 governadores provinciais da Argentina, e contando apenas com 35 deputados e 8 senadores, num Congresso Nacional de 257 deputados e 72 senadores.

Deste ponto de vista, descontados os arroubos de campanha (tipo fechamento do Banco Central e dolarização), é de esperar que a política do novo presidente repita a mesma política econômica e social do governo de Mauricio Macri entre 2015-19, com um corte violento dos gastos públicos em educação, saúde e infraestruturas, aumento da tributação sobre os mais pobres e classes médias, e uma nova abertura e privatização da economia – com olho posto na mina dourada dos recursos naturais a serem explorados nas reservas de Vaca Muerta.

Uma política que em última instância, se propõe imitar a política econômica da Argentina entre 1860 e 1930, quando o país contava apenas com quatro ou cinco milhões de habitantes, e não tinha Banco Central, que só foi criado em 1935. Aliás, nem os Estados Unidos tinham um Banco Central, que só foi criado em 1913.

O que o novo governo propõe é – em última instância – a entrega do controle das divisas do país direta e “anarquicamente”, nas mãos da classe agroexportadora, descendente direta da velha oligarquia pampeana que governou o país até a década de 1930. Antes, portanto, do surgimento do “Estado de bem-estar social” argentino – que é exatamente o que o novo presidente se propõe a desmontar de forma integral.

O que muito provavelmente deverá provocar, como em outros lugares e ocasiões, a falência de dezenas de pequenas e médias empresas, fortalecendo o predomínio do enriquecimento financeiro através da tutelagem dos programas de austeridade e o endividamento contínuo e crescente no FMI.

Com o inevitável aumento da miséria da maioria da população que terá que sobreviver sem os atuais subsídios governamentais para transporte público, saúde e educação.

Em síntese, liberalismo antiestatal, anarco-mercantilização de tudo, inclusive dos órgãos humanos, individualismo radical inclusive na questão do seguro para a saúde e a velhice, e privatização definitiva do que foi reestatizado pelo governo de Alberto Fernandez.

Quase exatamente a mesma política do ministro Martinez de Hoz, durante a ditadura militar entre 1976 e 1983; de Domingo Cavallo, durante o governo peronista de Carlos Menem, entre 1989 e 1999; e do empresário direitista Maurício Macri, entre 2015 e 2019. Neste sentido, nada de novo debaixo do sol.

Uma mesmice que já custou caro aos próprios argentinos e que sempre teve um altíssimo custo social, em todos os países em que foi aplicada, sem trazer crescimento econômico sustentado, mesmo nos países anglo-saxões e nas grandes potências econômicas europeias que jamais aderiram, aliás, elas próprias, ao ultraliberalismo radical.

Aliás, se o novo presidente aplicar integralmente o seu programa econômico, o mais provável é que não termine seu mandato, como já aconteceu com outros presidentes que foram obrigados a renunciar antes do fim dos seus mandatos, atropelados pela hiperinflação.

Do ponto de vista geopolítico e da política externa, o que se deve esperar do novo presidente argentino, é uma imediata demonstração de admiração e fé nos Estados Unidos e por Israel, junto com uma peregrinação convencional a Kiev, com críticas à China e à Rússia, gestos de provocação com relação ao governo brasileiro e também suas invariáveis macaquices nazistas feitas especialmente para provocar as pessoas de esquerda.

Mas com certeza o empresariado e a direita tradicional argentina não permitirão que o novo presidente vá muito além das suas fanfarras de campanha, rompendo relações com China ou com o Brasil, nem é provável que os argentinos se retirem do Mercosul.

Neste sentido, a questão verdadeiramente importante, para calcular o futuro de mais longo prazo da Argentina, é saber o que passará com a sua população depois dessa nova intentona do capitalismo ultraliberal à qual a Argentina está se entregando.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo). [https://amzn.to/3RgUPN3]

*André Ferrari Haines é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.

Publicado originalmente no Boletim do observatório internacional do século XXI.

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