Gilberto Maringoni: “A Venezuela realizou eleições sob o signo da crise e do cerco”
por Bruno Fabricio Alcebino da Silva
A eleição presidencial venezuelana realizada em 28 de julho de 2024 tem gerado debates intensos sobre a legitimidade do processo eleitoral. Diversos mandatários, analistas e organizações internacionais questionam a lisura do pleito, apontando para possíveis irregularidades, como o controle governamental sobre as instituições eleitorais e a repressão à oposição. Em meio a essa turbulência, oObservatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB) entrevista Gilberto Maringoni.
Maringoni é professor de Relações Internacionais e membro dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PCHS) e em Economia Política Mundial (EPM) da Universidade Federal do ABC (UFABC), além de jornalista e cartunista. Doutor em História Social pela USP (2006) e graduado em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP (1986), ele tem vasta experiência em temas como América Latina contemporânea, História da imprensa e História do Brasil Império. Maringoni é autor de 16 livros, incluindo A Venezuela que se inventa (2004) e A revolução venezuelana (2009), que exploram o papel do petróleo e da política nos tempos de Chávez.
Como o senhor avalia o processo eleitoral na Venezuela, considerando as acusações de fraude e o reconhecimento de parte da esquerda brasileira?
Maringoni: É difícil afirmar que a eleição presidencial de 28 de julho na Venezuela obedeceu a requisitos aceitáveis de lisura e transparência eleitoral. É difícil porque as evidências de fraudes são fortes, seja pelo fato do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) ter proclamado o presidente Nicolás Maduro vencedor com 80% dos votos apurados na manhã do dia seguinte – quando existia chance de uma virada oposicionista, pela proporção de votos -, seja por causa de um caricato vídeo gravado por comandantes militares fantasiados com roupa camuflada, afirmando apoio incondicional a Maduro, difundido horas depois. É algo implausível. O presidente Maduro está em fim de mandato, que se encerra em dezembro. Não sei se os militares estavam falando do mandato que começa em janeiro ou do atual. No primeiro caso, eles não poderiam jurar fidelidade pelo fato do mandato não existir. Se for fidelidade à gestão atual, trata-se de algo inócuo. Nos dois casos, trata-se da reiteração da tradição latinoamericana de ingerência das Armas na seara política.
É também difícil determinar quem venceu aquele pleito. O governo não apresentou evidências e a oposição tampouco consegue provar seu desempenho. É possível que o resultado tenha se dado por margem estreita, pois cada lado tem forte representatividade eleitoral.
Também é preciso, de outra parte, apontar o comportamento errático da diplomacia brasileira nesse episódio. De início, o presidente Lula pretendeu se colocar como mediador entre duas partes excludentes, governo e oposição. Tanto Lula quanto o assessor presidencial Celso Amorim, articulados com os governos de México e Colômbia, exigiram a apresentação de atas para reconhecer o resultado proclamado pelo CNE. Em seguida, sugeriram a realização de novas eleições ou a montagem de um improvável governo de coalizão. Vale perguntar: com que autoridade se pode exigir de outro país a realização de novas eleições ou a montagem de tal ou qual modalidade de gestão? Trata-se de algo sem amparo na Constituição brasileira. A Carta, em seu artigo 4º, que regula as relações internacionais, define que a ação do Brasil “rege-se pelos seguintes princípios”, entre outros: da autodeterminação dos povos e da não intervenção em assuntos de outros países. As sugestões de Lula e Amorim colidem com tais postulados.
A política externa brasileira não vive um bom momento. De uma diplomacia presidencial, vista em mandatos anteriores do presidente Lula, passamos a uma diplomacia declaratória, na qual muitas vezes as palavras não correspondem aos atos. Aqui vão alguns exemplos: o presidente critica acidamente a política genocida do Estado de Israel, mas não rompe relações, propaga o combate à desigualdade, mas o centro de sua política econômica é o arcabouço fiscal que aprofunda desigualdades, o presidente faz uma pregação democrática, mas apoiou em nota oficial o golpe de Estado no Peru, dado em 7 de janeiro de 2022.
A democracia não vai bem em várias partes do mundo, seja pelo golpe no Peru, seja pelo fato do presidente Nayib Bukele ter transformado El Salvador num país-prisão, seja pelo fato de no Equador as forças de segurança do presidente Noboa terem invadido a Embaixada do México há poucos meses para prender Jorge Glass, ex-vice-presidente de Rafael Correa. A isso se somam as investidas autoritárias de Javier Milei, na Argentina. O Brasil não protestou contra nenhum desses casos. E há mais situações controversas. O governo subscreveu uma crítica ao governo nicaraguense por desrespeitos à democracia, juntamente com Argentina, Canadá, Peru, Paraguai e Chile, entre outros. Nenhum problema em criticar. A Nicarágua tem um regime autoritário e Daniel Ortega perdeu qualquer orientação revolucionária ou democrática e tornou-se um caudilho. No entanto, as companhias escolhidas pelo Brasil, à exceção da Colômbia, nada têm a ver com luta pela democracia em parte alguma.
Quais são os principais argumentos daqueles que defendem que as eleições foram democráticas e justas?
Maringoni: Os principais argumentos de que as eleições foram democráticas e justas são quase declarações de fé. Isso não basta. Até hoje os resultados por urna não foram publicados pelo CNE. Deveria haver alguma evidência mais sólida da vitória de Maduro, caso contrário adentramos no terreno da guerra de torcidas.
Ao mesmo tempo, é preciso ver que o chavismo tem real enraizamento popular, talvez menos do que no período 1999-2013, quando Hugo Chávez estava vivo, mas tem. O período Maduro coincide com uma confluência de crises profundas no país, e poucas delas são de responsabilidade do governo. Há perda de legitimidade do governo por conta da crise e pelo fato do atual presidente não ser uma liderança como Chávez. A Venezuela vive uma acentuada turbulência econômica desde 2013, a partir de uma queda forte no preço internacional do petróleo, que derrubou o barril do patamar de US$ 100 para algo em torno de US$ 30. Para um país com 95% do valor de sua pauta de exportação composta pelo produto, foi um desastre. Agregue-se aqui o embargo econômico produzido pelos EUA, o sequestro de US$ 30 bilhões em reservas de ouro por bancos ingleses, o roubo da Citgo, subsidiária da PDVSA (Petróleos de Venezuela S. A.), no Texas, as tentativas de golpe em 2019, a tomada de sua embaixada em Washington, articulada por Juán Guaidó em aliança com forças de segurança dos EUA, e o desastre da pandemia. O resultado é uma hecatombe. O PIB entre 2012-2023 desabou em cerca de 70% e a moeda nacional virou pó, tangida por um quadro de hiperinflação. É um cenário de guerra!
Vamos lembrar. No desastroso governo Dilma II, a presidenta decidiu provocar uma recessão, a partir de um draconiano ajuste fiscal, que derrubou o PIB em quase 8%. Todos se lembram do desastre, que criou um ambiente político de desencanto popular e fortaleceu a direita e a extrema direita. Na Venezuela a queda foi nove vezes maior! Estive no país em 2019 e um amigo de lá, diabético, me pediu para levar insulina. O embargo econômico dos Estados Unidos impedia até a entrada de medicamentos!
A Venezuela realizou eleições sob o signo da crise e do cerco. Logo após o pleito, o avião presidencial foi sequestrado pelos Estados Unidos. Não sei se o presidente Lula e seu governo levam isso em conta para tomar decisões.
A oposição venezuelana, a começar por Maria Corina Machado, integra uma coalizão internacional de extrema-direita, que apoia a ofensiva do Departamento de Estado. Ela é uma das signatárias da Carta de Madri, lançada em 2020 por várias personalidades e agremiações ligadas ao extremismo reacionário global. Um dos objetivos do documento era alertar o mundo para “O avanço do comunismo [que] representa uma séria ameaça à prosperidade e ao desenvolvimento das nossas nações”. Além da dirigente venezuelana, perfilaram-se entre os signatários Javier Milei (Argentina), Giorgia Meloni (Itália), Bia Kicis, Eduardo Bolsonaro (Brasil), José Antonio Kast (Chile) e Guillermo Lasso (Equador). Suas ligações com a direita do Partido Republicano são fartamente documentadas. O principal ponto programático da campanha de Edmundo González, o candidato de sua aliança eleitoral, era privatizar a PDVSA e as maiores reservas de petróleo do mundo. Há estudiosos que argumentam sobre a perda da centralidade do petróleo nas políticas de energia. Estaria em curso uma mudança da matriz energética no plano internacional. Mas é impossível prever quando o óleo se tornará secundário. Hoje, se você retira o petróleo do leque de matrizes energéticas, os transportes aéreos, grande parte dos transportes terrestres e marítimos param de funcionar, parte do fornecimento de eletricidade é suspenso etc. O petróleo continua tendo um peso decisivo na economia global e a disputa sobre ele segue encarniçada.
O que sustenta a alegação de fraude nas eleições, considerando que o resultado foi divulgado com 80% das urnas apuradas?
Maringoni: De certa forma, respondi isso no início. O presidente foi proclamado sem que as contagens das urnas estivessem totalizadas. Em seguida, alegou-se um ataque hacker, apesar de o sistema eleitoral não integrar a internet. Os mapas eleitorais não foram apresentados. A repressão desatada logo após o pleito não é ato de quem venceu eleições, é ato de quem quer silenciar quem contesta resultados. Atos violentos têm de ser impedidos, mas a reação governamental foi muito além disso. Há um conjunto de indicativos que não atesta a lisura eleitoral.
Como a divisão dentro da esquerda brasileira em relação ao pleito venezuelano pode impactar a política externa brasileira e suas relações com a Venezuela?
Maringoni: Não é a divisão entre a esquerda que pode impactar, mas a conduta errática do governo brasileiro que compromete sua respeitabilidade no continente.
Há exemplos históricos recentes em que eleições em outros países geraram divisões ideológicas semelhantes dentro de partidos de esquerda no Brasil?
Maringoni: Em alguns casos sim. O caso chileno é ilustrativo. Gabriel Boric faz um governo neoliberal com algumas doses de progressismo e uma política externa pautada pelo Departamento de Estado. Isso gera controvérsias na esquerda chilena e brasileira. O Partido Comunista do Chile está dividido. Uma parte participa do governo, e outra quer sair dele. A esquerda liberal brasileira apoia Boric em oposição a outros setores.
Como a situação econômica e política da Venezuela afeta a percepção das eleições por parte dos países latino-americanos, incluindo o Brasil?
Maringoni: Essa percepção é pautada, em parte, pelos grandes veículos de mídia. Se nos ativermos pela cobertura da Globo News e da grande imprensa internacional, a Venezuela é o fim do mundo. Essa mídia não se escandaliza com as manobras de Emmanuel Macron para inverter o resultado das eleições francesas, nomeando um primeiro-ministro de direita, algo classificado como “golpe” pela Nova Frente Popular, de esquerda. Também não se espanta com o fato de Volodymyr Zelensky ter cancelado as eleições na Ucrânia e estar, unilateralmente, prolongando seu mandato, numa senda claramente golpista. Há muita hipocrisia nessas coberturas.
Quais são os desafios para a esquerda brasileira ao tentar manter uma posição unificada sobre a Venezuela, especialmente quando há divergências sobre a legitimidade das eleições?
Maringoni: A esquerda brasileira é plural e não tem posição única sobre vasta gama de assuntos. Falo de partidos. Não me parece que tenhamos um governo de esquerda. Fico com a apreciação do ex-ministro José Dirceu, de que Lula comanda uma administração de centro-direita. O Itamaraty não vocaliza uma posição de esquerda.
Nos partidos, há uma divisão séria sobre a lisura ou não das eleições venezuelanas. Eu acho que esse debate precisa levar em conta o cerco sofrido pelo país e o contexto internacional, no qual a democracia apresenta problemas em várias partes do mundo.
Como a mídia internacional e as organizações de monitoramento eleitoral têm influenciado a opinião pública no Brasil sobre o pleito na Venezuela?
Maringoni: Penso ter respondido parcialmente essa questão na penúltima pergunta. Quero agregar algo sobre o governo venezuelano. Nicolás Maduro é um aliado muito difícil para a esquerda brasileira. O presidente Chávez era um intelectual da ação, um homem que lia Gramsci e discutia com desembaraço os grandes clássicos da Ciência Política. Maduro tem pregações quase caricatas, como a de dizer que o fascismo deve ser combatido por ser ligado ao satanismo, por conversar com passarinhos e por notórios exageros verbais, sem contar iniciativas de caráter duvidoso, como expulsar sete embaixadores do país logo após as eleições. Apesar dessa conduta oscilante, o que importa na Venezuela é a soberania nacional. Uma vitória oposicionista significa a entrega do petróleo aos Estados Unidos. Assim, a conduta dos órgãos de Estado e de governo em relação aos resultados eleitorais abre flancos para uma série de ataques sobre a Venezuela e tira de cena o que realmente importa: o cerco midiático, o embargo econômico e a manutenção de sua soberania.
O reconhecimento das eleições por parte de alguns governos e não de outros pode gerar consequências diplomáticas ou comerciais para a Venezuela? Tivemos a expulsão do corpo diplomático de 7 países, como isso pode ser encarado? Como defesa da soberania venezuelana ou como indício de fraude eleitoral?
Maringoni: A expulsão dos diplomatas se constitui numa das medidas mais atabalhoadas do governo venezuelano. Sua consequência imediata é o isolamento internacional e a perda de diálogo na América Latina. Maduro obteve reconhecimento por parte da China, da Rússia e de vários países do Sul Global. Essa perda de apoios no seu entorno é algo que embute forte risco para a estabilidade interna.
Qual o papel de líderes políticos regionais, como Lula, em mediar ou influenciar essa divisão sobre o reconhecimento do resultado eleitoral venezuelano?
Maringoni: Eu acho que hoje o Lula faria bem se saísse da conduta errática, e tomasse posição semelhante à de Manuel López Obrador. Este reconheceu o resultado das urnas e se abstém de opinar sobre o país. Para o líder mexicano, questões internas da venezuela são de responsabilidade dos próprios venezuelanos. Nós vivemos um processo de perda de legitimidade regional em nossa política externa e isso precisa ser revertido. Já afirmei que temos hoje uma diplomacia declaratória. Nossa política externa caminha apartada da política de defesa. Se Lula critica Israel e os militares compram armas daquele país, qual a coerência possível? Como é possível um país soberano permitir que aqui dentro se façam manobras com as forças armadas dos Estados Unidos? Como é possível um país soberano ter as suas forças armadas subordinadas ao Comando Militar Sul dos EUA? Nesse caminho, a política externa se torna quase ornamental na ação concreta do Estado brasileiro.
Afinal, qual o papel dos EUA no meio de tudo isso?
Maringoni: O papel dos Estados Unidos segue como Magalhães Pinto falava sobre Minas Gerais: os Estados Unidos estão onde sempre estiveram. São uma potência imperial, agora confrontada por uma potência rival, a China. Magalhães Pinto foi governador de Minas de 1961 a 1966 e foi um decidido apoiador do golpe de 1964.
Os Estados Unidos querem isolar a Venezuela, tentaram derrubar Nicolás Maduro, Hugo Chávez e, por centenas de vezes, buscaram destituir Fidel Castro. Estiveram envolvidos na conspiração que resultou no suicídio de Vargas (1954), no golpe contra Perón (1955) e articularam o golpe de 1964. Não toleram qualquer tentativa de se criar um pólo alternativo no continente. Gostaria que o Brasil se contrapusesse de forma mais clara a esse tipo de política, numa situação de avanço da extrema-direita no continente. Caso contrário, nossa diplomacia seguirá o rumo da decadência.
Bruno Fabricio Alcebino da Silva – Bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Ciências Econômicas e Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC. Pesquisador e monitor do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB). Em mobilidade-acadêmica na Universidad de la República (UdelaR) em Montevidéu, Uruguai.
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