CPI do Negacionismo: A Ciência no campo das disputas político-ideológicas

Em um processo de midiatização da CPI, vemos senadores fazendo perguntas para os interrogados que foram tiradas da web, produzidas por internautas via Twitter. Por sua vez, recorrem às agências de checagem de fato, que se colocam como nova autoridade epistêmica para garantir a ‘verdade’ e os ‘fatos’.

CPI do Negacionismo: A Ciência no campo das disputas político-ideológicas.

Estudo realizado por pesquisadores do CiteLab (UFF), Lamide (UFF) e LabCores (UFRJ), laboratórios que integram a Rede Conecta de Educação Científica e Midiática, como parte do projeto que acompanha as movimentações nas redes sociais sobre os debates relacionados à política e ciência durante a CPI da Pandemia.

Imagem 01: Nuvem de palavras tomadas a partir do corpus de 45.000 tuítes. O tamanho da palavra indica a quantidade de vezes que ela aparece, ou se itera.

Introdução:

A CPI da Pandemia tem tido um papel de grande relevância dentro de um cenário de crise sanitária e institucional sem precedentes na história do país, colocando a ciência no centro do debate político e ideológico que vem balançando as estruturas das instituições nacionais. Cloroquina, imunidade de rebanho e vacinas, tornaram-se temas centrais nos debates nas redes sociais, nos bares, na igreja e nos jantares de família. A ciência por sua vez, restrita aos muros da academia e com apreço à técnica e à metodologia, se encontra dentro de um debate político. Hoje, o que temos assistido é uma instrumentalização e apropriação desse conhecimento científico por certos atores que não necessariamente possuem qualificação para seu manejo. O que a CPI da Pandemia nos revela sobre a percepção/conversação do público em relação aos temas científicos?

Objetivo do estudo: 

O objetivo deste estudo é compreender como a CPI tem pautado o debate sobre o papel da ciência no combate à pandemia junto da opinião pública nas redes dentro do Twitter e de que forma as narrativas em torno do tema vêm sendo construídas entre atores que se colocam em posição de disputa em torno dos valores científicos.

Imagem 02: Conexões dos descritores utilizados na coleta. Imagem ilustrativa das múltiplas interações e intercâmbios linguísticos dentro dos conteúdos dos tuítes relacionados à CPI e à ciência. Nesta imagem temos demonstrada a riqueza das conversações na web.

Metodologia aplicada no estudo:

Como forma de coleta das informações necessárias para o estudo, utilizamos técnicas de pesquisa quantitativas e qualitativas. A princípio, empregamos ferramentas computacionais por meio da API do Twitter. Desse modo, captamos em torno de 5 milhões de tweets relacionados às conversações na plataforma sobre a CPI da Pandemia durante o período de 29/04/2021 a 31/05/2021. Então, aplicamos um recorte temático: somente os tuítes que contivessem a palavra ciência foram utilizados – dos quais restaram em torno de 45.000. Assim, utilizando o software Iramuteq para análise do conteúdo textual, foi possível identificar redes semânticas e as categorias discursivas envoltas no debate.

Para cada semana e cada depoimento na CPI, os assuntos mais comentados tendem a gerar reações diferentes. No entanto, os temas terminam, consistentemente, por girar em torno do debate científico, sob diversas vertentes: instrumentalização político-partidária, ataques políticos, conotações e apelos à moral, etc.

Imagem 03: Nuvem total do corpus.

Principais resultados:

Os movimentos e as conversações em rede formam clusters complexos que refletem as consequências dos atos políticos e suas correlações de forças são passíveis de aferição por métodos modernos, assim como outrora as pesquisas de opinião revelavam as percepções desses efeitos na vida cotidiana analógica[1]. Desta forma podemos afirmar que, dentro deste estudo específico balizado pelo descritor “ciência” e outros correlatos, tanto o campo progressista/liberal e o conservador seguem certas diretrizes de construção discursiva. Vamos aos dados.

Na imagem acima (03), temos a árvore completa do levantamento, mostrando os grupos por cores e classes que apresentam os campos que participaram dos tuitaços nos último mês da CPI da Pandemia. Todos os grupos presentes nas árvores se relacionam de alguma forma, o que diferencia um do outro é a forma como seus discursos são construídos e quais suas motivações dentro do debate. Lembremos que o levantamento foi feito com descritores relacionados à ciência e de que forma as redes reverberam o termo durante as movimentações da CPI da Pandemia, e por isso, destaca-se duas ramificações: CPI e Ciência. Apesar de colocado em polos distintos, percebemos uma instrumentalização política da ciência no grupamento vermelho, trazendo palavras como genocida, sujo, interesse, como parte do debate e uma instrumentalização científica no debate político, com palavras que pertencem a um conjunto de pautas científicas que percorrem a CPI. Nas duas ramificações, percebemos ataques políticos em torno de valores morais. Enquanto na ramificação voltada para a ciência, é recorrente um direcionamento de denúncias e acusações aos líderes políticos. Por outro lado, na ramificação da pauta política sobre a CPI, vemos que esses ataques não se restringem ao campo político apenas, mas também são direcionados aos cientistas.  Percebe-se também uma exaltação moral e profissional a atores específicos quando a pauta volta-se para campo político da CPI, como a coragem da Nise Yamagushi (sub-ramificação turquesa).

Imagem 04: Categorias discursivas

Em uma análise de categorias discursivas, cinco grupamentos se destacaram dentro do estudo, pela sua prevalência e recorrência. São eles:

Grupo Laranja Classe 02: perdemos a paciência!

O agrupamento laranja apresentou um comportamento com viés político e ideológico em forte ênfase, com foco nas repercussões políticas do debate. Esse é o grupo de maior destaque no levantamento, com uso de enunciados mais tecno-políticos e menos calcado na ciência. O uso de palavras como “cloroquina”, “presidente”, “genocida”, “criminoso”, “negacionista” e “atenção” indicam uma maior preocupação com as questões políticas. 

https://twitter.com/vnascin/status/1398425520589705216

Grupo Azul Classe 07: Esses vagabundos interesseiros…

O que nos chama a atenção dentro deste agrupamento é a utilização de palavras que indicam uma inclinação à tentativa de uma certa construção moral. Por essa razão, esses tuítes giram em torno de termos como “corrupção”, sentenças como “vagabundo”, “corrupto”, “dissimulado”, “interesses”, entre outras, que demonstram narrativas de ataques morais.

Grupo Roxo Classe 09: #mandettamentiu

Neste grupamento percebemos uma disputa de sentido sobre noções de verdade e mentira, na qual esses termos são instrumentalizados como atributos de valor e idem ataques políticos. percebe-se como recorrência neste grupamento discursivo acusações ao ex-ministro Mandetta, de ser “mentiroso” – tendo a CPI servido para “desmascará-lo”; enquanto Bolsonaro é alojado ao lado da ciência e da verdade.

Grupo Azul Classe 08: nossos heróis tomam cloroquina

Este agrupamento apresenta um padrão discursivo de exaltação de alguns personagens dentro do contexto da CPI, com certa relevância política em nível da saúde pública no Brasil. Entendemos que essa rede esteja mais ligada ideologicamente aos setores conservadores e pró-governo. É uma categoria na qual personagens tais quais Nise Yamaguchi, Mayra Pinheiro e Eduardo Pazuello são exaltados como figuras praticamente heróicas e honradas que representariam, segundo essa rede, a “verdadeira” e “pura” ciência.

Grupo Rosa Classe 10: Novos ministérios da verdade

O Grupo Rosa Classe 10 apresenta um padrão discursivo mais voltado para a busca da autoridade epistêmica. Pudemos observar tal ponto através do uso de palavras como “elucidar”, “depoimento”, “democracia”, “fact-checking”, “apontado” e “resultado”; tais palavras nos indicam uma maior preocupação com o debate científico. Nessa rede podemos observar que a noção de “verdade” sobre algo é embasada nas evidências que a própria CPI vem produzindo; ademais de como a comissão corrobora com o discurso da ciência em relação ao combate à pandemia.

https://twitter.com/no_cabare/status/1397952259519139843

Principais resultados:

  • Há uma instrumentalização moral e política sobre a ciência tanto no campo progressista quanto conservador. Nesta instrumentalização moral e política, um discurso em torno da corrupção fica evidenciada em diferentes campos políticos. Sob a agenda da corrupção a partir de argumentos sobre valores morais, ataques são feitos ao campo opositor. Enquanto o campo progressista endereça seus posicionamentos morais contra políticos, os chamando de genocida e denunciando interesses particulares no debate sobre ciência, o campo conservador direciona estes ataques também a cientistas (os chamando de cientificistas), além dos opositores políticos.
  • O campo conservador aciona um discurso de exaltação moral humanista,  de alguns atores científicos centrais ao debate dentro do campo político, reforçando o caráter profissional e de autoridade, como Nise Yamagushi e Mayra Pinheiro. Se apropriam da autoridade científica, se colocando como alinhados a valores de verdade.
  • Há uma disputa sobre a autoridade epistêmica. Enquanto o campo conservador aciona a autoridade científica de quem está de acordo com suas visões, o campo progressista ressalta questões técnicas para pautar o debate. Por sua vez, sob um discurso em prol da democracia, agências de checagem de fato se apresentam como uma nova autoridade epistêmica para decidir o que é verdade.
  • Há uma disputa sobre a verdade e mentira que tem sido acionada a partir de percepções próprias em diferentes campos, sendo instrumentalizada para estar de acordo com suas visões de mundo e enquadrada em seus argumentos, independente do campo político.

Considerações finais

As redes sociais têm sido o palco das grandes disputas nacionais, principalmente após o início da pandemia, dado que as manifestações de rua diminuíram por parte da população preocupada com o contágio em aglomerações. Deste modo, o termômetro das redes vem servindo a políticos, empresas e instituições diversas como meio de compreensão das novas correlações de forças. Atacada nos últimos anos por uma campanha massiva de desqualificação e negação dos seus valores, a ciência se torna o mote central de uma CPI que busca lidar com problemas relacionados à políticas públicas de saúde e a instituição que pode oferecer respostas e caminhos para a crise. Contudo, esse caminho para a sua valorização continua a ser percorrido com muitos percalços. O que se vê é uma disputa em torno do ethos científico: grupos políticos que se apropriam de uma suposta base científica como forma de afirmar os valores não da ciência, mas sim de suas suas ideologias. Se apropriam da pauta científica, dos signos da ciência, de valores democráticos, para impor sua visão de mundo. Em nome de um projeto político, derrubam a ciência para se colocar como uma autoridade para debater conhecimento e produzir a (sua) verdade.

Em meio à essa disputa estão senadores que, dentro desta CPI, estão contrapondo argumentos negacionistas, e acabam por lidar com os mesmos sem que tenham conhecimentos técnicos a fim de contrapor as múltiplas falácias do negacionismo de forma efetiva. Mas não estão sozinhos. Em um processo de midiatização da CPI, vemos senadores fazendo perguntas para os interrogados que foram tiradas da web, produzidas por internautas via Twitter. Por sua vez, recorrem às agências de checagem de fato, que se colocam como nova autoridade epistêmica para garantir a ‘verdade’ e os ‘fatos’. No entanto, precisamos estar atentos para um sistema que se forma em torno das agências de checagem de fato. Compostas por fundações internacionais e mídia tradicional, estas agências de checagem de fato se legitimam como uma nova autoridade, como novos árbitros da verdade, definindo o debate público do que eles consideram o que é fato ou não. Nesse arranjo de ecossistemas da verdade, a mídia tradicional se reinventa com um novo segmento para checar os fatos. Mas vale lembrar da sua já sabida atuação na nossa vida pública e política não é de hoje – e continua sendo vista nos dias atuais com enquadramentos obtusos e silenciamentos descarados, como foi repercutida a ausência de capas sobre as manifestações de 29 de maio nos principais jornais. Recomendamos a leitura do texto “As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa”, publicado na Revista Eptic do professor Afonso de Albuquerque (PPGCOM-UFF) para conhecer mais as discussões em torno das fake news e o sistema jurídico-midiático envolvendo as agências de checagem de fato. 

E o que representa essa midiatização da CPI e essas novas autoridades epistêmicas em torno da verdade? Quais são os desafios que se colocam nessa espécie de ação política digital em que o debate se desdobra em sites de redes sociais mediadas algoritmicamente? Quais são os desdobramentos de colocarmos lado a lado negacionistas que disputam a autoridade sobre a verdade  com cientistas que têm perdido espaço para vozes dissonantes, como se fossem dois lados de uma mesma moeda? São questões que se apresentam enquanto o debate se desdobra, sem sabermos ao certo as consequências destas ações políticas para a desestabilização dos próprios princípios que regem a razão científica que se consolidou por princípios democráticos, respeitando a dúvida e o debate como parte inerente da produção de conhecimento. Como instituição da sociedade que tem em seu ethos a força para oferecer caminhos para o progresso da sociedade, encontra-se no centro de uma disputa política na qual noções sobre a verdade, autoridade e moralidade, que se fundem discursivamente para legitimar atores epistêmicos e políticos que têm pautado o debate em relação à ciência. Vivemos hoje uma crise institucional e epistêmica. De um lado, corta-se o orçamento em nome de um fantasioso crescimento econômico, ignorando que sem a ciência o país não cresce. Ao mesmo tempo, são direcionados ataques a cientistas e gestores institucionais em um modelo de ame ou deixe-o, no qual a fuga de cérebros tem sido novamente uma realidade crescente. Ou seja, passamos por um momento no qual o conhecimento tem sido contestado, deslegitimado e substituído para se colocar no lugar da ciência mitos para explicar o mundo da maneira como os convém.

O que não podemos mais continuar aceitando é a relativização dos preceitos científicos já embasados. A imunidade de rebanho, por exemplo, não poderia ter sido usada como “desculpa” por um governo que nem sequer consultou os especialistas dessa área para saber o resultado dessa opção. Enquanto a população acompanha estarrecida os números de mortos que crescem dia após dia, é preciso que a sociedade esteja atenta que a ciência não existe propriamente para acalentar nossas aflições e convicções e sim para nos oferecer caminhos para o conhecimento. Em verdade, como bem diria Carl Sagan:

“E se o mundo não corresponde em todos os aspectos a nossos desejos é culpa da ciência ou dos que querem impor seus desejos ao mundo? “

Dados gerais sobre a pesquisa:

Coleta de 29/04/2021 a 31/05/2021

Os estudos de rede sobre a CPI da Pandemia serão publicados de forma periódica pelo site do Cite-Lab neste endereço: http://citelab.sites.uff.br/citelab/ e mídias parceiras da Rede Conecta.

Reynaldo Aragon Gonçalves (@ReyGoncalves) – Doutorando em Comunicação do PPGCOM-UFF

Thaiane Oliveira (@ThaianeOliveira) – Professora em Comunicação do PPGCOM-UFF

Janderson Pereira Toth (@trifenol) – Mestrando em Informática PPGI – UFRJ

Wanderley Anchieta (@wanchiet ) – Doutor em Comunicação do PPGCOM-UFF

Pesquisadores do CiteLab, LabCores e Lamide, laboratórios integrantes da Rede Conecta, plataforma multidisciplinar de Inteligência Artificial e Educação Científica que está sendo desenvolvida com o apoio de parcerias entre a academia e a sociedade civil.


[1] Estudos anteriores realizados pela Rede Conecta durante a CPI da Pandemia, indicam que as redes estão dentro de um padrão semelhante de comportamento político-ideológico aqueles das pesquisas de opinião mais recentes. Levantamentos estes onde se verificou um crescimento da oposição ao Governo Bolsonaro motivada pela CPI. Outras informações aqui: encurtador.com.br/wLQ89 

Redação

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