Entre o querer e o desejar, por Rita Almeida

No excesso de querer o sujeito se perde, pois perde a capacidade de fazer escolhas, e com isso, seu potencial singular.

Entre o querer e o desejar, por Rita Almeida

Em geral supomos que querer e desejar sejam a mesma coisa, mas não são. O querer é uma enorme prateleira, já o desejo uma tesoura, como diria o poeta (Alceu Valença). A operação matemática do querer é a soma, e a do desejo, a divisão, nunca exata, sempre com resto. O querer é cumulativo, enquanto o desejo, envolve escolha e perda.

A operação que rege e sustenta o sistema capitalista e, portanto, domina a forma de estarmos no mundo hoje em dia é o querer. Ao capitalismo interessa o acumulo de coisas; prateleiras cheias para vender, prateleiras cheias para comprar. Queremos mais uma camisa, mais um perfume e mais um sapato, não importa quantos já temos. Queremos mais uma especialização, mais uma viagem e mais 100 canais de TV, não importa que sentido isso faça em nossa vida. Queremos mais um carro, mais um imóvel e mais bens, não importa o que isso representa para a coletividade humana e a sustentabilidade do nosso planeta.

Jacques Lacan ao construir sua teoria dos discursos faz menção ao que ele chama de Discurso Capitalista, que seria uma mutação pervertida do Discurso do Mestre. Enquanto o Discurso do Mestre se baseia na relação do senhor com o escravo (nesse caso, se trata do escravo da dialética hegeliana) o Discurso Capitalista se dá pelo eclipse da relação entre os sujeitos. Em tal discurso, o sujeito não se relaciona com nenhum outro, se relaciona apenas com os objetos–mercadoria. Tudo vira objeto a ser consumido, até mesmo os próprios sujeitos.

O agente do Discurso Capitalista é o consumidor, seu interesse é pelo consumo. Nessa dinâmica, somos apenas clientes necessários à sustentação do modelo capitalista, já que ele nem precisa tanto de nós para produzir bens. Consumir seria assim nosso último recurso e nossa última utilidade.

Mas o consumidor é aquele sujeito que está sempre aquém, sempre em déficit, pois sempre haverá uma bugiganga, uma tecnologia, um bem, um saber e um modelo mais novo que ele ainda não conseguiu adquirir, portanto, o verbo que ele conjuga é o querer. Entretanto, o engano do consumidor não é se considerar incompleto, já que a incompletude é uma realidade irremediável para todos nós, mas sim acreditar que irá alcançar a completude por meio da aquisição de coisas; das coisas que ainda não tem.

Nesse sentido, o querer é uma armadilha, pois por mais que o sujeito adquira coisas estará sempre se sentindo em falta, e ao invés de aceitá-la, seu movimento é continuar a buscar no consumo, coisas que criem uma falsa sensação de completude. O querer é sempre mais, sempre sem limites. O querer funciona como negação da castração. No excesso de querer o sujeito se perde, pois perde a capacidade de fazer escolhas, e com isso, seu potencial singular.

Mas, e o desejo?

A psicanálise se sustenta sobre a ética do desejo. Ao contrário do querer, em que o sujeito quer tudo a fim de completar sua prateleira, o desejo implica em escolhas, portanto, em perdas. O desejo é uma tesoura, sendo assim desejar implica em fazer opções. Ou isso Ou aquilo, diria Cecília Meireles.

Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

O desejo seria, portanto, um antídoto para intervir numa sociedade baseada no querer consumista. Desejar implica em o sujeito admitir sua própria divisão, aceitar sua incapacidade de ter tudo. Desejar não é produzir um acúmulo de coisas, mas sim, definir o que é mais fundamental e importante. Desejar é cortar o excesso, é aceitar a perda, é escapar da mera sobreposição de bugigangas a fim de produzir singularidade e estilo.

Num mundo onde o imperativo categórico é que abarrotemos nossas prateleiras e que queiramos tudo, todo o tempo, utilizar a tesoura do desejo pode ser revolucionário.

Rita Almeida

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