Cobras criadas
por Daniel Afonso da Silva
Às vésperas das presidenciais francesas de 2012, o experiente jornalista Denis Jeambar escreveu uma carta aberta ao presidente e candidato Nicolas Sarkozy solicitando que ele abdicasse da candidatura à reeleição. Os dezessete anos ininterruptos de conservadores no poder – Jacques Chirac de 1995 a 2007 e Nicolas Sarkozy de 2007 a 2012 – pareciam demasiado para uma sociedade entendida ideologicamente como majoritariamente revolucionária, progressista e esquerdista.
O choque da chegada do inequivocamente extremo-direitista Jean-Marie Le Pen ao segundo turno das eleições de 2002, dez anos depois, já figurava como coisa do passado. Os 82% de votos válidos reunidos em união nacional para a reeleição de Jacques Chirac naquele início de século indicavam graus de consciência e responsabilidade dos franceses de modo que os fantasmas do extremismo pareciam neutralizados. Entretanto, a sucessão do presidente Jacques Chirac por um elemento de seu mesmo espectro ideológico – no caso, Nicolas Sarkozy – começou a denotar a usura dos conservadores no poder. Aos franceses faltava, então, voltar a eleger alguém diferente, divergente e, especialmente, vindo de uma ala não conservadora.
À rigor, a experiência da presidência de François Mitterrand de 1981 a 1995 foi o único momento ideologicamente diferente na França sob a Quinta República. Entre 1958 e 2012, o general Charles De Gaulle fora sucedido pelos seus herdeiros Georges Pompidou (1969-1974), Valéry Giscard d’Estaing (1974-1981), Jacques Chirac (1995-2007) e Nicolas Sarkozy (2007-2012).
À exceção de 2002, de 1965 a 2012, as disputas majoritárias envolveram gaullistas e socialistas. Essas duas alas partidárias, portanto, dominaram a cena eleitoral e a paisagem política durante todo o período. François Miterrand foi vencido ante o general e o Giscard d’Estaing em 1965 e 1974. Depois venceu eleições de Giscard d’Estaing e Jacques Chirac em 1981 e 1988. Em 1995, não conseguiu emplacar um sucessor socialista, quando Lionel Jospin chegou ao segundo turno, mas foi batido por Jacques Chirac. E, em 2007, a candidata socialista Segolène Royal perdeu de Nicolas Sarkozy.
François Hollande desbancou Nicolas Sarkozy em 2012. O partido socialista, enfim, retornou ao poder. Denis Jeambar ficou feliz. Os anti-gaullistas também.
Mas no fervor do entusiasmo existia algo estranho no ar. Poucos viam. E os que viam faziam de conta não ver. Haviam ovos de serpentes sendo gestados e cobras peçonhentas sendo alimentadas.
Para quem olhava de longe, aquela vitória socialista parecia algo formidável. A sociedade francesa demonstrava salubridade. As instituições se mantinham funcionando. O sistema político se confirmava majoritariamente binário. Tudo parecia ir bem. Muito bem. Normal à perfeição. Mas, não.
Olhando-se mais de perto, tudo era muito mais delicado, sensível e sutil. O candidato socialista, em verdade, vencera por default. François Hollande não simplesmente não era François Mitterrand como a sociedade francesa já tinha deixado de ser essencialmente revolucionária, progressista e esquerdista e o partido socialista, ideologicamente, não existia mais.
Especialmente porque tudo que se viu e agiu depois de 1991 estraçalhou os partidos franceses, europeus e mundiais. Se, por um lado, o fim da União Soviética desconjuntou o socialismo real, de outro lado, ele forjou a aceleração da decomposição da coerência das ideologias em todas as partes. Os socialistas perderam a sua referência e os não socialistas, não raramente, viraram financistas, administradores, gestores. Não era nem é, assim, exagero enquadrar François Mitterrand e Jacques Chirac como personagens jurássicas no cenário político francês, europeu e mundial no período em que governaram o país. Cada um, ao seu modo, representou um tempo, um decoro e uma forma de fazer girar a política que, desde a crise financeira de 2008, não existe mais.
A degradação socioeconômica da crise financeira de 2008 deixou apenas os escombros no cenário político europeu onde apenas a chanceler Ângela Merkel conseguiu se manter no poder. Nenhum chefe de estado dos demais países teve a mesma fortuna. Muitos foram destituídos antes do prazo. Outros foram eliminados da reeleição. Nicolas Sarkozy foi um desses eliminado pelos novos tempos.
Analisando em retrospectiva, portanto, o problema não foi a derrota de Nicolas Sarkozy, mas a ilusão de François Hollande em acreditar que tinha vencido Nicolas Sarkozy. Todos perderam. Quem venceu foi o desespero.
É curioso que o lema do candidato Hollande tenha sido o combate às finanças. Ele fugia do embate direto com Nicolas Sarkozy elegendo o mundo das finanças como o seu mais sério oponente. Não restam dúvidas que naquele contexto, essa foi uma estratégia de marketing eleitoral muito eficaz. Tanto que rendeu resultados. Entretanto, o candidato socialista tornado presidente não foi capaz de perceber que para muito além das finanças existia o desespero. Um desespero que exigia mudanças rápidas e imediatas. Mudanças subversivas. Contra todo o establishment. O presidente Sarkozy caiu assim. Mas qualquer outro cairia também. O desespero era implacável, virou constante e se instalou no tempo. 2008-2012 modificou, portanto, tectonicamente a verdade política. Mas a mutação não parou por aí. O desespero também foi o grande protagonista dos pleitos de 2017 e 2022. Mas, nessas ocasiões, foi freado pelo receio.
Emmanuel Macron e Marine Le Pen disputaram a fase final dessas duas eleições. François Hollande nem chegou a disputar. Nicolas Sarkozy foi triturado pela realidade partidária.
Emmanuel Macron surgiu eleitoralmente nas vésperas do pleito de 2017 e criou um partido apolítico. Marine Le Pen, herdeira de Jean-Marie Le Pen que aterrorizou a paisagem política francesa em 2002, tornou seu partido extremo-direitista em um ambiente frequentável. Dois, portanto, não-partidos – ou partidos irreconhecíveis ideologicamente – passaram a monopolizar o sistema político e partidário francês.
Um nem outro chegaram onde chegaram em condições normais. O novo normal imposto pelo após-2008 permitiu-lhes o sucesso que tiveram. Os embates de 2017 e 2022 foram germinados pelo desespero. Mas o desespero foi freado pelo receio. Os desesperados levaram Macron e Le Pen para o segundo turno das eleições. Mas não foi destemperado o suficiente para permitir a vitória de Le Pen. Mesmo que o verdadeiro vencedor do tempo dos desesperados tenha sido a indiferença.
A vitória de Geert Wilders na Holanda na semana passada alterou de súbito essa percepção e conformação. E não apenas na França. Mas em toda a Europa. A fase do receio – e do pudor – parece ter sido superada. Passou-se a viver o momento da audácia. Desespero, receio e audácia. Virou evidente que a audácia pode vencer o receio e qualquer impedimento aos extremos em todas as partes.
Mirando-se na Holanda – e, claro, na Argentina e na possibilidade de retorno do presidente Donald J. Trump nos Estados Unidos – voltou-se, na Europa, a analisar com mais calma a situação geral.
Responder às razões da eleição de mais um extremista na região demanda, claramente, uma análise interna do país, mas também externa de todo o continente europeu. E, quando se aventura por essas escalas, nacional e internacional, o peso da realidade constrange e choca. Basta ver o mapa.
Não precisa de maiores explicações. A projeção diz quase tudo.
Seguindo a sequência de cores indicadas na legenda, os partidos de extrema-direita já tomaram conta da Europa
- Partido extremista no governo.
- Partidos extremistas que apoiam o governo.
- Partido extremista à frente nas intenções de voto.
- O resto da União Europeia sem maiores definições.
O desespero outrora ignorado hoje impera sobre o continente. O receio que, até agora, tem impedido a vitória do extremismo na França acelerou em refluir. As desventuras europeias na Ucrânia e no Oriente Médio alimentam os ímpetos da audácia – evidentemente que a situação russo-ucraniana e médio-oriental pesou no voto dos holandeses. Os ovos de serpente de outrora, alimentados pela crise de 2008, dão mostra de não existirem mais. Agora já são bichanos bem crescidos e bem formados. Já são cobras criadas.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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