Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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O nove de novembro, por Daniel Afonso da Silva

Dali em diante o caminho estava aberto. Não havia data nem previsão. Mês, dia nem hora. Mas deu no 9 de novembro. O muro se abriu.

O nove de novembro

por Daniel Afonso da Silva

O 9 de novembro de 1989 marcou espíritos. Foi um dos momentos mais esperados do século. Depois, claro, do 11 de novembro de 1918 e do 2 de setembro de 1945. Uma data marcante. Profunda, perfurante. Uma data símbolo. Um turning point entre mundos. Da Guerra Fria ao depois.

A Guerra Fria foi uma verdade. A verdade de um muro. Um muro de lembranças. Onde nada se permitia nada esquecer. Apenas lembrar. Lembrar do trágico, do memento mori. Lembrar que a história e vida envolvem esse trágico. O trágico dos dias e o trágico de um século que produziu o que produziu. Extremismos, totalitarismos, a Shoah. Tudo indicado num muro. Um muro estendido em Berlim.

Antes que se repita o indecente, reconheça-se desde a saída que sim: o muro não caiu, foi aberto. O muro foi aberto depois de uma longa e ruidosa meditação consolidada numa complicada negociação entre todas as partes para se fazer uma aterrissagem tranquila e segura para um final sem mágoas e um desfecho feliz.

Tranquilo e seguro foi. Sem mágoas, nem tanto. Feliz, jamais.

A guerra patriótica anterior dos eslavos foi das mais impressionantes de todas as guerras de todos os tempos de eslavos e de quaisquer povos. O exército vermelho de Stálin foi de Moscou a Berlim imantado na sanha de eliminar até o último homem dos totalitarismos italianos e alemães ambientes. A resistência dos europeus e norte-americanos, em todas as partes em todos os continentes, foi algo também jamais visto na história da humanidade. Dois mundos se reuniram para destroçar a projeção de um. Aquele de Hitler, do Reich, do desespero sem fim.

Vencedores do pleito, esses dois mundos se encontraram Berlim. Uma Berlim massacrada, destronada, destruída, humilhada. Mas uma Berlim eterna. Uma verdadeira fênix, diuturnamente duelando com seu Prometeu.

Aos dois mundos em Berlim dividir Berlim virou uma necessidade. A partilha de Berlim se transformou na partilha de mundos. Mundos não só eslavos e ocidentais. Mundos, em verdade, cindidos pela diferença que 1917 promoveu.

Trinta anos depois de 1917, em 1947, uma nova guerra começava sem declaração. Era a Guerra Fria. Uma guerra tão intensa como as demais. Mas, agora, com os receios da exterminação.

A cortina de ferro de que muito falou Churchill era uma verdade inconteste daqueles tempos interessantes. A obsessão de expansão soviética que lembrou George Kennan também. De Berlim a Paris a Bruxelas a Genebra a Roma a Lisboa a Madri as distâncias eram mínimas. A preocupação geral era como deixar antiliberais convictos tão próximos de suas presas liberais integralmente claudicantes.

Fez-se o plano Marshall para dar-lhes força. Construiu-se a OTAN para protegê-las. Mas tudo era pouco. A essa altura, os soviéticos já haviam interditado as passagens de europeus orientais ao resto da Europa. A Berlim integral já não existia mais. Para tudo facilitar à sua gestão, realizou-se o muro.

Várias détentes [momentos de distensão] ocorreriam antes de 1947, depois de 1949, durante 1950-1962, após 1975 e especialmente entre 1979 e 1985. Algumas voluntárias. Outras por pressão. Mas somente a chegada de Gorbatchev ao poder em 1985 faria da distensão uma determinação. Feito uma via verdadeira e incontornável para a solução.

A morte de Stálin, as crises no partido e as crises econômicas forjavam a convicção de que era a hora de parar. Os choques de petróleo, os embargos alimentares, a crises climáticas e a percepção de corrupção levaram a população soviética a níveis de penúria jamais imaginados. O comunismo e o socialismo eram um valor. Mas nem só de valores viviam aqueles homens. Muito embora valores sejam paixões e as paixões sejam mais vitais que os interesses nacionais.

As repúblicas submetidas a Moscou começaram a se rebelar. Fora da União, no Afeganistão, na Polônia, na África do Sul, na Namíbia, em Angola o domínio de Moscou começava a refluir. A confrontação Leste-Oeste tinha perdido o sentido, a expansão do socialismo tinha virado démodé, a correria armamentista só reforçava a indústria de defesa norte-americana. Restou a Gorbatchev reconhecer que a desideologização era o único caminho se percorrer.

Imbuído nessa convicção, em outubro de 1985, o mandatário soviético foi a Paris apresentar a sua proposição de maison commune [casa comum]. Um retorno aos princípios antes de tudo. Os princípios que sempre unificaram la Russie éternelle à l’Europe de toujours [a Rússia eterna à Europa de sempre]. Princípios que justificavam que a Europa abarcava do Atlântico ao Ural.

Soviéticos resistiam. Norte-americanos desconfiavam. Europeus hesitavam.

Para superar todas as dúvidas e hesitações, em novembro de 1988, Gorbatchev foi às Nações Unidas em Nova Iorque informar que estava disposto a desengajar 500 mil soldados soviéticos do espaço europeu. Em julho de 1989 ele voltou à carga. Foi ao Conselho Europeu em Strasbourg propor a desnuclearização da Europa, o desarmamento convencional e a retirada de todas as tropas soviéticas da Alemanha com a condição de que os europeus e norte-americanos afiançados na OTAN fizessem o mesmo.

Dali em diante o caminho estava aberto. Não havia data nem previsão. Mês, dia nem hora. Mas deu no 9 de novembro. O muro se abriu. Uma abertura marcante, intrigante, penetrante. Uma data importante. 9 de novembro. Uma data que convém lembrar.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

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