
Muitos Erros e Poucos Acertos da Literatura sobre “Financeirização”
por Fernando Nogueira da Costa*
A literatura de denúncia da “financeirização” é vasta. As opiniões sobre seus acertos e erros variam a depender do ponto de vista e do enfoque de diferentes estudiosos.
Na minha modesta opinião, um dos pontos apontados como de acertos é um tremendo erro do método de análise econômica ao destacar o papel do “setor financeiro” como contraposto ao sistema capitalista, quando este é, em sua definição marxista mais básica, plenamente financeiro. Sua relação de produção é a contratação da força de trabalho como assalariada pelo capital-dinheiro com dadas forças produtivas.
Os capitalistas obtêm lucro ao explorar a mão de obra dos trabalhadores, pagando salários menores diante do valor adicionado por eles com o uso de matérias-primas, máquinas e equipamentos de sua propriedade privada. Esse valor adicionado divide-se em salários, aluguéis ou arrendamentos, juros pelos empréstimos e o lucro sobrante.
O sistema financeiro está entranhado ou radicado no sistema capitalista. Logo, não é um “setor” como os demais setores de atividade de acordo com a especialização na divisão de trabalho por domínios de tecnologias diversas.
Ele é o próprio sistema emergente de interações entre todos os seus componentes. Para facilidade analítica convencionou-se dividir esses em “setores institucionais”, mas basta ver isso ser um reducionismo didático: as finanças pessoais, corporativas, públicas, bancárias e internacionais são interdependentes e/ou interconectadas, de maneira sistêmica, entre os ativos e os passivos das partidas dobradas, não?
As definições de instituição se referem a regras de comportamento coletivo e consuetudinário: se baseia nos costumes, na prática, nos hábitos de uma sociedade. Possui três dimensões como: (i) regras do jogo; (ii) modelos mentais; e (iii) organizações.
No caso de instituições financeiras, são organizações, cuja finalidade é otimizar a alocação de capitais próprios e/ou de terceiros, observando certa correlação de risco, custo e prazo, de modo a atender aos objetivos dos seus clientes – praticamente toda a população economicamente ativa. O sistema financeiro atende às Pessoas Físicas recebedoras de fluxos de rendas, principalmente a massa dos salários, e às Pessoas Jurídicas, públicas e privadas. Transforma sobras das rendas em estoques de riqueza.
Todos os agentes econômicos têm interesses em sua operação como acionistas, clientes, colaboradores, cooperados, prestadores de serviços, agências reguladoras do mercado onde a organização opera etc. Uma empresa “não-financeira” não existe!
O segredo do negócio capitalista é a alavancagem financeira. Em Finanças, alavancagem é um termo genérico para designar a técnica, ou melhor, a economia de escala propiciadora de aumento da produtividade, utilizada para multiplicar a rentabilidade patrimonial sobre os recursos próprios através de endividamento com recursos de terceiros. Resulta do aumento da participação desses recursos na estrutura do capital da empresa, para elevar o lucro operacional, mesmo depois de descontadas as despesas financeiras com os empréstimos.
As instituições financeiras operam no mercado de troca entre moedas, prazos e taxas, negociados entre os captadores devedores de passivos financeiros e os investidores, inclusive Pessoas Físicas assalariadas e rentistas, vistas como credores através da intermediação dos bancos. Visam aplicar suas sobras de renda, após o consumo, em ativos financeiros. Estes são formas de manutenção de riqueza, de maneira relativamente mais líquida diante da alternativa de imobilização em capital imobiliário.
Os trabalhadores, de maneira geral, necessitam dessa acumulação de reserva financeira para complementar eventual Previdência Social. Esta cada vez menos dá conta de atender à aposentadoria de todos, porque a longevidade humana aumentou muito, enquanto o trabalho formal diminuiu bastante, causando danos ao balanceamento do regime de repartição: a geração ativa pagar as pensões da geração inativa.
As instituições financeiras são obrigadas a respeitar os critérios e normas estabelecidos pelas agências reguladoras/supervisoras de cada mercado onde atuam. Todos os depósitos dos recursos de terceiros dependem da confiança no sistema financeiro. Caso isso não ocorra, por exemplo, há calamidade econômica como a da Argentina: “desfinanceirizada” e dolarizada.
A hiperinflação surge quando a cotação do dólar como reserva de valor, sob pressão da demanda social, fica disparatada. Os argentinos passam a usá-lo também como unidade-de-conta (fixação de preços em dólar) e quando os converte para os preços contra meios de pagamentos em moeda nacional, esses ficam também disparatados!
Um complicador para a governança do sistema financeiro é a taxa de alavancagem entre os passivos e ativos da instituição financeira. Exige um contínuo monitoramento desse risco prudencial, inclusive leva a eventuais intervenções pelas agências reguladoras ou supervisoras, visando evitar o risco sistêmico.
A literatura sobre financeirização erra, portanto, ao só destacar “o papel crescente do setor financeiro na economia global”, incluindo o aumento da influência das instituições financeiras e sua capacidade de moldar políticas econômicas. Na realidade, é uma evolução sistêmica do capitalismo – e não uma evolução setorial competitiva com o resto da economia como estivesse à parte!
Muitos estudos denunciaram a “financeirização” por elevar a desigualdade econômica. Ora, a maior fonte de renda no agregado é a do trabalho: a massa de salários é muito superior à massa de juros, lucros e aluguéis recebidos por Pessoas Físicas, veja as DIRPF.
A desigualdade cresce com a má remuneração da mão-de-obra sem qualificação, diante da evolução para uma Economia Digital. Daí a importância de políticas promotoras de proteção com uma Renda Básica Universal, educação massiva e inclusão financeira.
A literatura dos “denunciantes do capitalismo” aborda os riscos associados à “financeirização”, incluindo a volatilidade dos mercados financeiros e seu impacto nas economias e sociedades. A vida financeira é difícil, todos necessitamos ser prudentes e precavidos ao lidar com ela, porque os ciclos se desdobram em booms e crashes.
Muitos se incomodam com o crescente domínio da sistemas financeiros de mercado de capitais a la Estados Unidos sobre sistemas financeiros baseados em bancos a la Brasil. Na realidade, aqui, a economia de mercado de capitais mistura com a economia de endividamento bancário. Lá, existe uma longa tradição de fracionamento do sistema bancário, por isso, defendeu-se a desregulamentação, incluindo a revogação da Glass-Steagall, uma lei do New Deal. Ela, entre outras coisas, proibia um banco de aceitar depósitos e funcionar como banco de investimento, pois implicaria em maiores riscos.
Na economia de endividamento, alavanca-se a escala dos empreendimentos com empréstimos ao setor privado ou lançamento de títulos de dívida pública. Na economia de mercado de capitais, as sociedades abertas aceitam como sócias as Pessoas Físicas dispostas a correr risco em renda variável para obter dividendos ou ganho de capital: comprar ações baratas e vender quando estiverem caras. Fazem IPO (Oferta Pública Inicial) e follow on (Oferta Subsequente) de ações – e aumentam a escala dos negócios.
Algumas críticas à literatura sobre “financeirização” apontam suas generalizações excessivas, tratando-a como a única causa de todos os problemas econômicos e sociais. Em contraponto, qualquer crise financeira é um fenômeno complexo e multifacetado.
As análises dos denunciantes da “financeirização” se concentram demais nos problemas associados somente a ela, sem oferecer soluções práticas para abordar “problema” como o aumento da desigualdade social, devido à acumulação de capital financeiro, ter como contrapartida o aumento do funding (fontes de financiamento) para gerar empregos e renda. Negligenciam também outros fatores muito influentes na economia, como mudanças tecnológicas, demográficas, educacionais e políticas.
A profunda fonte de desigualdade no Brasil está na proporção da população com Educação Superior por faixa etária. Em 2018, na faixa de 55-64 anos, na Coréia do Sul era 20%, nos Estados Unidos 40%, na Argentina 30% e no Brasil 15%. Na faixa de 25-34 anos, essas proporções eram, respectivamente, 70%; 50%; 40%; 17,5%.
A distribuição das matrículas na Educação Superior entre Instituições Públicas e Privadas, no ano 2000, mostrava o Ensino Público ser no Canadá 100%, no Uruguai 88,4%, na Argentina 85,2%, no México 69%, nos Estados Unidos 68,7%, no Peru 62,3%, no Brasil 36,9%. Nosso país tem a maior privatização do Ensino Superior das Américas!
Explica-se assim por qual razão os 10% mais ricos retêm massa de renda superior à dos 80% mais pobres. Com curso superior, o graduado situa-se entre eles (acima de 5 salários-mínimos), com pós-graduação entre os 5% mais ricos (acima de 10 salários-mínimos) e no teto da carreira profissional assalariado chega ao 1% mais rico acima de 30 salários-mínimos. “Financeirização”, na verdade, é um epifenômeno, ou seja, refere-se a um subproduto de outro fenômeno principal – a desigualdade educacional em termos de renda –, mas sem ter a influência maior sobre este.
Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/).
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