Uma análise da economia brasileira em 1964

Sugerido por Eduardo R.

Do Valor

Os santos guerreiros e o dragão da maldade

César Felício

A energia elétrica estava racionada em São Paulo, efeito das chuvas fracas na estação das águas: nenhum reservatório contava com mais de 20% de sua capacidade. O ano de 1964 começou com 54% das crianças em idade escolar fora do sistema educacional e com um déficit orçamentário previsto pelo próprio governo em Cr$ 1 trilhão, o equivalente a toda receita prevista.
 
A inflação de 80% ao ano sem qualquer mecanismo de correção monetária levava a todos que tinham opção a fugirem do cruzeiro. No Rio de Janeiro, 5 mil imóveis estavam fechados, enquanto anúncios de aluguel eram publicados em dólar nos jornais. No mercado paralelo, a cotação do dólar saltou de Cr$ 360 em dezembro de 1961 para Cr$ 850 um ano mais tarde e Cr$ 1.270 nos idos daquele março do golpe.
 
O governo Goulart sabia que precisava pagar US$ 1,6 bilhão em compromissos externos no biênio 64/65, o equivalente a 60% das exportações previstas para o período. Estabeleceu um controle cambial pelo qual as exportações de commodities e importações de petróleo, trigo e bens de capital, responsáveis por 80% do fluxo, tinham que passar pelo Banco do Brasil.

 
Nos últimos oito anos, o Brasil havia terminado com déficit no balanço de pagamentos em sete. Apostando na desvalorização, os importadores correram para formar estoques e os exportadores retardavam ao máximo suas vendas. Na busca desesperada por divisas, Jango apertou as torneiras, restringindo remessas de lucros e dividendos. A resposta foi o corte de investimentos. Em 1961, haviam ingressado US$ 288 milhões em capitais. Em 1963, houve saída líquida de US$ 54 milhões. O crescimento econômico desceu de maneira vertiginosa: entre 1957 e 1962, havia sido superior a 6% todos os anos. Em 1963, foi de apenas 0,6%.
 
A crise econômica de 1964 esteve longe de ser inédita. Vinte anos depois, os militares entregaram um país com baixo crescimento econômico e pronto para a hiperinflação. Ela se destaca da que a sucedeu, entretanto, pela sua irrelevância no debate político. A falta de luz, de moradia e o desabastecimento eram pé de página em jornais e tema quase ausente das manifestações de rua contra ou a favor do golpe em preparação.
 
Goulart buscava se legitimar politicamente trazendo para a cena política novos atores, capazes de se empolgar com a reforma agrária em grande escala anunciada no comício de 13 de março daquele ano. Em seus 30 meses de governo, gastou 16 para recuperar os poderes tolhidos após a crise de 1961. Nem antes e nem depois um presidente chegou ao poder tão debilitado.
 
Jango manteve ministros da Fazenda amigáveis ao capital internacional durante toda sua administração. Traçaram uma agenda de reorganização do Estado, que passava pelo controle de gastos, criação de um Banco Central, corte de subsídios e aumento de impostos. A cada lance de radicalização, entretanto, o presidente buscava formas mais eficazes de legitimação do que a credibilidade da política econômica. “Jango ensaiou várias vezes o ajuste, mas recuava ao não sentir respaldo. Os dias primeiros de maio de 1962 e 1963 foram cruciais. Em ambos os anos, o presidente arbitrou a favor de grandes aumentos para o funcionalismo, contra as posições assumidas pela equipe econômica do governo”, comentou Pedro Cézar Dutra da Fonseca, economista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
 
Dutra assinala que boa parte da agenda ensaiada pelos ministros de Goulart foi implantada pelos governos do regime militar: a centralização de poderes no Executivo, o aumento da carga tributária, a criação de mecanismos de correção monetária que fomentasse um mercado de capitais. Até obras de infraestrutura de grande porte, como Itaipu e usinas nucleares, emblemáticas do período que o sucedeu, estavam nos planos do governo deposto em 1964. Esta pode ser uma hipótese para explicar porque os rosários da classe média se ergueram em março contra o comunismo e supostos planos continuístas de Jango: na economia, havia um relativo consenso sobre qual era a agenda de modernização do Estado: a guerra estava na política.
 
“A crise econômica veio de antes, herdada da construção de Brasília. E no governo de Castello Branco, o ministro do Planejamento Roberto Campos não inventou suas políticas do nada, recolheu os documentos elaborados pela burocracia administrativa que assessorava Jango. O problema de Goulart não era ‘mala praxis’ de seus auxiliares. Nada nasceu do zero”, comentou o ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira. Há 50 anos, o ex-ministro começava a sua carreira de executivo do grupo de varejo Pão de Açúcar, e debita a conta do golpe em Fidel Castro. “A revolução cubana radicalizou a esquerda no Brasil, fechou as portas da Casa Branca para os governos reformistas e apavorou as classes conservadoras. Não havia debate econômico, havia pânico com o comunismo”, disse.
 
Prestes a completar 80 anos, Bresser-Pereira classifica como “alucinação” o evento convocado para o dia 22 de março nas redes sociais sob o título “Marcha da Família com Deus II – o retorno”. “Não há dúvidas de que 11 anos de governos de esquerda aborrecem certos setores, mas o Brasil em 1964 estava fazendo a sua revolução capitalista. Hoje há um capitalismo consolidado. Difícil imaginar duas situações tão diferentes”, disse.
 
A principal convocação para a marcha, na rede Facebook, conta com pouco mais de 3 mil presenças confirmadas no evento que promete pedir na porta de quartéis em todo o Brasil a “expulsão dos vermelhos” por uma “intervenção militar constitucional”. É cerca de metade dos que aderiram ao primeiro dos “rolezinhos” convocado pelos internautas. Promete ser uma fração dos 500 mil que lotaram São Paulo em 19 de março de 1964. Mas talvez seja precipitado achar que chegarão aos pontos de encontro em vemaguetes e gordinis. O rótulo de comunista hoje é colocado pelos santos guerreiros da internet em qualquer política que envolva mexer em um universo de valores morais. E a derrota do projeto governamental para o marco civil na internet é a bandeira mais imediata. A encenação será na rua, mas o campo de batalha é virtual.
 
César Felício é repórter de Política em Brasília. Escreve mensalmente às quintas-feiras

 

Redação

5 Comentários

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  1. Arguto…

    “O rótulo de comunista hoje é colocado pelos santos guerreiros da internet em qualquer política que envolva mexer em um universo de valores morais. E a derrota do projeto governamental para o marco civil na internet é a bandeira mais imediata. A encenação será na rua, mas o campo de batalha é virtual.”

  2. Muito chique!

    E são essses setores que se acham muito cultos, chiques e bem informados. Em 64 comparar o Brasil com Cuba já era uma fantasia estúpida e ainda assim depuseram um presidente constitucional para “salvar a demoicracia” da “cubanização”. Hoje essa mesma gente que se diz bem informada compara o Brasil à Venezuela e acha que tem gente querendo implantar o chavismo por aqui quando falam em reduzir desigualdades e ampliar direitos. Tenho um profundo e robusto desprezo por esses ignorantes metidos à sabichões.

    Mas o pior mesmo é ver a maioria da população (como em 64) que não está nem aí pra esse papo de CIA e de Fidel tendo que aturar o blá blá blá desse pessoal que, quanto mais minoritário, mais dá ataque histérico.

    Muito chique!

  3. Conturbações de ontem nada tem a ver com a estabilidade atual

     

    O governo de João Goulart foi muito conturbado não apenas na questão política, mas também no campo econômico. Para se ter apenas uma ideia desta confusão no campo econômico, basta lembrar que no período legal do governo Jango (07 de setembro de 1961 a 02 de abril de 1964) tivemos nada mais nada menos do que 11 Ministros da Fazenda, sendo 06 deles interinos. A inflação fugia do controle e o jogo político amarrava o Presidente Jango, impedindo-o de dar consequência ao programa trabalhista. Não é possível estabelecer analogias no campo econômico daquela época com o campo econômico atual. Ao contrário!

    O Brasil atual mantém a inflação plenamente controlada há dez anos consecutivos, ostenta um índice de pleno emprego, distribui renda e diminui as desigualdades sociais e regionais. A estabilidade econômica dos períodos Lula e Dilma é diametralmente oposta à instabilidade econômica permanente tida e havida nos tempos de João Goulart. Dentre vários exemplos, vamos citar apenas um: o atual Ministro da Fazenda, Guido Mantega, tornar-se-á o mais longevo Ministro da Fazenda da história do Brasil (em períodos alternados e contínuos) dentro de 24 dias, a partir do dia 28 de março de 2014. Isto em quase 200 anos de história do Ministério da Fazenda do Brasil!

    O atual Secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, já é o mais longevo Secretário do Tesouro Nacional da história do Brasil e o atual Presidente do BNDES, Luciano Coutinho, tornar-se-á também o mais longevo presidente deste banco a partir de outubro de 2015. Isto demonstra a estabilidade econômica dos governos petistas, o contrário do contexto existente no início da década de 60. 

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