A Constituição do futuro, por Eliseu Venturi

A Constituição do futuro será estéril. Será o fruto tardio da esterilização contínua do pensamento: será a cristalização do espírito do tempo e do espírito do povo, mas não será uma Constituição popular, porque será contra o povo.

Pieter Bruegel, Big Fish Eat Little Fish, 1566. 

A Constituição do futuro

por Eliseu Raphael Venturi

Aguardamos os novos constituintes biônicos, os burocratas desburocratizados desestatizados privatizados representantes do povo do futuro nos quadrantes e nas funções do Estado, maior refúgio do econômico compulsório de todos os tempos, detentor soberano do exercício da violência legítima que algum ser humano, impecável, dirigirá. Aguardamos o seu maior produto e o Direito Administrativo dos administradores, porque o Direito e os juristas são construções e tecnologias do passado. Somos todos devotos do mesmo credo.

A Constituição do futuro terá poucas inconstitucionalidades; talvez inconstitucionalidade alguma, porque será otimista e preclara, e com suas poucas palavras, creem os fieis, pouca será a sua interpretação. Pouca complicação. Queremos legalidade; é mais simples.

A Constituição do futuro será estéril.

Será o fruto tardio da esterilização contínua do pensamento: será a cristalização do espírito do tempo e do espírito do povo, mas não será uma Constituição popular, porque será contra o povo, mas, mais do que isso: será a despeito do povo, de qualquer noção do povo, ela será o retrato do antigo oligopólio que venceu o povo, que se condenou quando deixou de se ver e se tornou cúmplice da sua costumeira alocação. Povo que rechaçou a distribuição e sonhou com a concentração.

A Constituição do futuro será a contramemória do que um dia poderia ter sido uma Constituição enquanto potencial, mas que, no fim das contas, se converteu no título de propriedade dos direitos que sempre foram domínio dos proprietários dos direitos. Será, ainda, a confirmação de algum caráter cíclico, mas isto pouco importa porque não se prescreve interpretar o futuro à escuridão do passado ou qualquer outro movimento entre cortes (e Cortes) ficcionais. Será a prova derradeira de que evolução e progresso não são movimentos retilíneos ascendentes – constatação já exaurida no Século XX, e muito antes. Será a prova de que tecnologias não nos tornam mais inteligentes. Será a prova, ao fim, de que retrocessos são possíveis e de que o poder é incontível.

A Constituição do futuro será estéril e natimorta e os homens não se verão nela, e será uma Constituição sem pai, sem mãe, sem filiação, sem parentesco, sem código genético e sem explicação biológica; inorgânica. Sequer antropocêntrica será, não porque terá ultrapassado o limiar do humano, não porque terá cedido ao devir animal, mas porque terá ingressado na liberalidade do ideal desumano. Ela será uma consagração.

A Constituição do futuro será um documento natural. As pessoas dirão: simples como a natureza é, posta e dada como a natureza é, evidente como a natureza é. A linguagem natural é a linguagem simples. Natural como jamais qualquer coisa que nos cerca foi. E nesta simplicidade os homens poderão ignorar mais e mais o que já não desejavam conhecer, porque conhecimento deve ser interditado: os homens eventualmente gostam de cultivar a brutalidade, a insipiência, a rudez como objeto de desejo, de reconhecimento e de valoração.

A Constituição do futuro não será distópica; será a Constituição e o real a que deve contas será a distopia ele mesmo, explícito.

A Constituição do futuro será classificada como sintética, porque há um erro em achar que poucas palavras são sínteses, assim como muitas palavras detalhamento. Livros eletrônicos serão erigidos em seu entorno, e a maioria não será lido senão pelos revisores. Livros para quê? Leitura cerrada é coisa do passado; as tecnologias suprem a leitura. Nem analítica nem sintética, ela será apenas uma “Constituição do futuro”, e o futuro é a armadilha por excelência, porque toda promessa é uma desobrigação do ato no presente.

Nós, sejamos quem formos “nós”, que tendemos a nos preocupar com o que será, porque nossos pães não são garantidos, nós não figuraremos na Constituição do futuro, talvez porque simplesmente os Palácios – todos os Palácios, soberanos ou celestes –, afinal, nunca tenham nos dito respeito e absolutamente nunca tenham sido nem tampouco serão sobre nós: apenas uma ilusão de pertencimento. Sempre estivemos e continuaremos mais fora do que nunca. Faremos parte do mundo dos fatos, apenas. Seremos seres de juridicidade mínima e nem os direitos desatendidos que costumávamos reclamar os teremos para amaldiçoar a ineficiência do Direito, até porque o Direito será muito mais eficiente.

O Direto perderá seus crentes e seus descrentes, seus críticos e seus defensores, porque, afinal, só haverá uma Constituição nova porque fomos bem-sucedidos no projeto de destruição daquela que nos abarcou na juventude, e que era densa demais, eloquente demais, prolixa. Afinal, a vida não demanda complexidade e cobrir um décimo de seus aspectos realmente é prolixidade. Remendada, fatiada, retalhada, emendada à exaustão, mas assassinada mesmo pelo desapreço por sua vontade, pela arbitrariedade de seus usos irresponsáveis, pelo arrebentamento dos seus sentidos, em frangalhos por quem a quem foi confiada.

A Constituição do futuro será o signo amargo do fracasso e a morte aplaudida do simbólico, desde quando a linguagem já não valia muito mais do que os malabarismos de quem deveria ter velado a linguagem e guardado a Constituição. Preocuparam-se demais olhando para fora, a casa incendiou.

A morte da Constituição terá sido empenhada por seus cultores, pelos doutores que lhe assaltaram os ideais, as utopias, os objetivos, as diretividades, por todos aqueles que a negaram, simplesmente, a sua normatividade.

A Constituição fora apenas um eco dissimulado de uma soberania voraz que mesclaria em suas atrocidades palavras bonitas e significados fortes, um patrimônio derradeiro a todos a que só sobrou isso, uma obrigação jurídica, uma linguagem, palavras de consideração. Palavras normativas das quais os incumbidos retiraram a normatividade. A normatividade: essa espécie de plasma que se perde e que em qualquer alteração de condições nunca atingidas, normais, de temperatura e pressão, parece se converter em qualquer material distorcido, opaco e desconhecido, inominável, abominável. Haveria um maior assalto popular generalizado do que este? O Direito nunca tocará estas dimensões. São inúmeros os corpos que já se aqueceram nas letras frias de jornais velhos.

As mortes do futuro não terão a poesia jurídica que lhes sustentou um dia; o estado de exceção se confirmará finalmente e seus devotos, finalmente, terão a almejada razão com que tanto sonharam, ganhando um troféu. As mortes do futuro serão mais assépticas e tecnológicas e demandarão menos explicações. A violência e o mal, mais sutis e embarcados. Não aprendemos nada com as atrocidades pretéritas. Olvidamo-nos de tudo em um clique; menos, em um esfregar de dedos no plástico e na luz fugidia.

A Constituição do futuro é a morte da historicidade, e a historicidade é o lançamento à vida. A Constituição do futuro será uma dádiva divina e um presente do poder.

Não haverá nem povo nem tensão em suas linhas. Não haverá ambiguidade ou mutação. Ela será o documento perfeito e seu nascimento será celebrado pelas famílias. E cada lar terá uma cópia sua para devoção junto a um santinho de burocrata fantasiado de ser humano.

Será uma dádiva do soberano. Um presente dentro de um presente.

Os doutores comemorarão a desnecessidade de estudá-la e os jovens doutores, também, comemorarão: a desnecessidade de estudá-la. Alguém saudoso lamentará; pensará em relações com a Ciência Política, ou com a Filosofia do Direito, ou com uma miragem chamada “Constitucionalismo”, mas será tarde demais.

Mas todos comemorarão. Todos comemorarão o simbólico que cederam, porque, afinal, constituições não são normativas, elas são apenas documentos ideais. E, muito diferentemente de prédios financeiros, ou de catedrais seculares, não vemos os edifícios jurídicos desabarem com tantos espetáculos, cores e luzes do fogo e contrastes da fumaça. Não vemos na agonia dos documentos jurídicos a queda das nossas liberdades, nem a queda dos nossos desenhos jurídicos que definem as pessoas que podemos ser.

Afinal, o simbólico do mundo precisa se descomplicar. E se a Constituição tivesse 140 caracteres? Talvez fosse muito. E se a Constituição fosse um breve vídeo institucional? Que não passe de trinta segundos! Que a Constituição seja curta para que o Chefe consiga lê-la em voz alta, e com palavras curtas para que tropece o mínimo possível nas palavras médias.

Se não conseguimos mudar o real. Se não aceitamos a mudança do real. Então anularemos o símbolo.

O signo da anulação do símbolo será este. E tudo seguirá bem.

Não haverá mais problemas indígenas ou ambientais, ou problemas sociais e de assistência, ou problemas de gênero ou de raça. Porque prescrições não haverá na Constituição límpida que alguém ousará elogiar: bela como outras Constituições; apropriada como usar um belo casaco no verão.

A Constituição do futuro nos albergarará dos embates, das tensões e dos conflitos. Seremos sob sua égide uma sociedade da paz porque juridicamente tudo estará no seu lugar: pessoas e coisas estarão nos seus lugares naturais. Pessoas que se veem como coisas, nem se fala. A Constituição do futuro será o império do direito natural, do bem comum, o reino da dignidade, porque tudo será organizado novamente em seu lugar originário.

Por isso será a Constituição messiânica dos brasileiros sedentos pela verdade. A Constituição restituirá a verdade e a decência ao terreno devastado da nação. Todo cidadão será letrado em sua síntese suprema e absoluta. Segurança, segurança, a Constituição trouxe-nos a segurança que rogamos.

Seus Ministros paladinos, dois ou três, melhor se fosse um, mais econômico ainda se este um fosse o Chefe do Executivo também, até terão tempo para terem uma vida própria, porque a Constituição do futuro será antihermenêutica, antipolítica, antiestatal, será uma Constituição e, pós-ultra-neoliberal e neoconservadora, ela será um Reino não monárquico e a celebração daquele deus laico, cifrado, que garantiu a comunhão de todos os credos e a cessão de todos os espíritos em seu nome, em seu signo, em seu símbolo. É desta espécie de eclipse da soberania que nasce a Constituição do futuro; a próxima.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

 

Imagem disponível em: <https://www.pieterbruegel.net/object/big-fish-eat-little-fish-vienna>. Acesso em: 20 abr. 2019.

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