A maternidade e o retorno às aulas durante a pandemia por Covid-19: o imperativo do mercado
Por Adriana Macedo[1]
O direito ao voto, ao divórcio, a luta pela inserção no mercado de trabalho e o avanço das tecnologias contraceptivas são algumas das grandes conquistas feministas dentro da estrutura capitalista. Tais vitórias são resultado de enfrentamentos na luta por transpor as barreiras do preconceito social a respeito desses temas e pela obtenção da expressão jurídica das pautas das mulheres sob a forma de lei. Tais triunfos, por outro lado, são limitados pelas margens de manobra do grupo dominante sob tensão ou do surgimento de um interesse no mesmo sentido. Os feixes de forças sociais de interesses contrários mantêm a estrutura social em movimento. Hoje é difícil argumentar o contrário, que a mulher não pode votar, trabalhar ou que esteja condenada a um relacionamento indesejado, embora movimentos reacionários tensionem nesse sentido.
Contudo, o capitalismo se estruturou, em seus primórdios, sob uma base patriarcal e tais avanços abalam a estrutura. O sistema construído imputando o trabalho doméstico à mulher, responsável por gestar a futura classe trabalhadora e alimentar os atuais e futuros trabalhadores (Federici) do mercado se desorganiza quando a mulher sai do lugar imposto. Como a lógica fundamental da sociedade capitalista não mudou, ou seja, a máxima exploração possível do trabalho humano e da natureza, as concessões forçadas vieram com sacrifícios sociais compensatórios – sim, a corda sempre tensiona do lado mais fraco. A pandemia de Covid-19 expôs os limites dessa inserção dentro da lógica perversa na qual se vive para trabalhar, ficando em segundo plano as relações, tão essenciais a todos os seres sociais. As mulheres negras e pobres já vivenciavam essas questões que hoje atingem as demais e que pesam ainda mais sobre os ombros das primeiras, na medida em que há uma transferência do peso das mulheres mais privilegiadas para as socialmente desfavorecidas. A volta às aulas tem tudo a ver com isso.
Alçado a coração da sociedade, o sistema econômico é posto no centro. Esse enunciado, no entanto, soa como frio, injusto, perverso. Por isso, é preciso que o discurso tenha aparência de preocupação humanitária e que o lema “salvar a economia” signifique salvar vidas. Desde Marx, os analistas são obrigados a separar a aparência da essência. Nesse sentido, o discurso de volta às aulas aponta para problemas sociais reais, como o aumento da violência contra crianças e adolescentes, os efeitos do isolamento prolongado na saúde desses grupos, a dificuldade com a educação virtual emergencial ou a consequência da suspensão das aulas no processo de aprendizagem, a necessidade de deixar as crianças num local seguro ao sair para trabalhar ou, se em trabalho remoto, de não se ocupar das crianças para se concentrar no trabalho.
A ênfase na aparência, entretanto, esconde a principal questão: os setores econômicos que giram em torno da escola estão sendo prejudicados e isso é, para o sistema privatizado, inadmissível. No rito sacrificial, não é o deus mercado que serve aos súditos. Ao contrário, são os súditos que precisam oferecer suas vidas para satisfazer o sistema econômico, sob a forma de moeda. Em troca, visam receber bênçãos, uma graça efêmera, que evapora tão logo a moeda se transforma no produto adquirido ou paga a conta e perde sua áurea sagrada. É preciso, então, “entregar o produto”. Os pequenos comerciantes não são relevantes nessa lógica: os sacrifícios aos deuses devem ser mais significativos, pequenos negócios fecham enquanto os deuses batem recordes de lucro na pandemia e recebem proteção dos que governam em seu nome (Salmen, 2020)[2]. Que bom seria se os que estão no meio do caminho percebessem que estão mais próximos dos de baixo que dos de cima…
O documento da OCDE intitulado The economic impacts of learning losses argumenta que quanto menos anos de estudo e menos habilidades desenvolvidas, menores são os ganhos monetários do indivíduo. A partir dessa lógica, considerando o tempo de fechamento das escolas ou uma educação deficitária porque virtual e emergencial, o documento projeta as perdas salariais e a retração da economia em bilhões e trilhões, apontando para a via crucis da austeridade que se fará “necessária” para conter a fúria do “deus” revolto. Omite, entretanto, que os dados dos quais parte são fruto de uma estrutura social injusta que desvaloriza certas categorias de trabalho e que não garante condições equânimes para indivíduos de grupos sociais diferentes, diminuindo as chances dos menos favorecidos de terminar seus estudos. A projeção, portanto, deixa a desejar quando não aponta a desigualdade de acesso a escola como essencial.
As vidas servem ao duplo sacrifício: do tempo de vida e da devolução dos recursos obtidos com o tempo dedicado. Os “deuses”, magnânimos, dependem duplamente do humano: de consumi-lo e de receber de volta o valor do que eles consomem. Imolam-se as vidas humanas e não humanas e toda a natureza; não se pode pensar em diminuir o ritmo, o crescimento é um imperativo, enunciados aos quatro ventos, em cada jornal, revista, televisão, rede social. Não se pode despertar a fúria do deus mercado. É preciso alimentá-lo: os seres vivos morrem e são matáveis. O exército de reserva para o trabalho é enorme, os índices de desemprego não deixam dúvidas. Está aí a oposição entre um discurso ecológico da sustentabilidade, que ganha força, e a lógica capitalista.
O problema não é, nem nunca foi, a vida. O problema é que essas vidas não estão à disposição do capital como se gostaria. Estão consumindo menos. Eis porque o retorno às aulas entrou no centro do debate. É preciso colocar mais pessoas em circulação, e em consumo.
Formada na modernidade, a escola se instituiu, mais nuns lugares, menos em outros, imbuída da missão de servir ao deus mercado: formar mão de obra qualificada, docilizar e aculturar os povos dominados. Contudo, os horrores vividos pelos “civilizados” com as guerras mundiais, introduziram e expressaram em acordos a universalização da educação e o estabelecimento dos direitos humanos. O discurso em torno da escola na contemporaneidade envolve ideias nobres como a formação integral do cidadão, o desenvolvimento da autonomia e a maximização das potencialidades humanas, o contato com o imenso conhecimento resultante do acúmulo cultural desenvolvido até então. Tais elementos integram o projeto pedagógico de qualquer escola. Porém, na prática, observa-se algo muito distinto. Se por um lado, muitas escolas direcionam seus esforços prioritariamente para a aprovação no ENEM e nos vestibulares e para a inserção no mercado de trabalho, por outro, se configuram como um depósito de pessoas para que seus responsáveis legais possam servir ao mercado sem impedimentos.
O sofrimento durante a pandemia tem sido bastante estudado e relatado. Para esse quadro, diversas políticas públicas, que envolvem a escol, podem e devem ser pensadas com a vida no centro e a economia a serviço da vida. Nessa perspectiva, certamente o retorno presencial não é uma possibilidade, pois, expõe a comunidade escolar e os contatos das crianças ao risco, além de aumentar a circulação de pessoas nas ruas. Para pensar o retorno, é preciso inverter a lógica. Com a vida no centro, as turmas devem ser muito reduzidas, o transporte deve ser exclusivo e adaptado para transportar os estudantes, evitando expor os pais e as crianças ao transporte público convencional. Essas demandas favorecem o aprendizado e aumentam a qualidade do ensino, mas, não são consideradas em tempos “normais”, pois diminuem o lucro ou geram prejuízo, deixando claro qual é a questão central. A diminuição das frotas de ônibus no Brasil com a redução da demanda também mostra que não é a vida que é importante.
[1] Adriana é Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Extensão e Pesquisa Social (LIEPS/IFRJ) e do Núcleo de Estudos do Movimento Humano (NEMOH/UFRJ). É especialista em Biomecânica, Mestre e Doutora em Engenharia Biomética (COPPE/UFRJ) e graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
[2] https://theintercept.com/2020/05/18/bancos-emprestimos-crise-coronavirus/
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