A invasão do troll, por Arnaldo Cardoso

No uso corrente na internet o troll é “alguém que deixa uma mensagem intencionalmente irritante, a fim de obter atenção ou causar problemas.

A invasão do troll

por Arnaldo Cardoso

Em mais um dia de anúncios de recordes (contágios e mortes) produzidos pela pandemia do novo coronavírus em países da Europa como Itália e Espanha; novas quarentenas pelo mundo (Reino Unido e Índia);  a icônica Nova York paralisada sustentando projeções de que os EUA poderão se tornar o novo epicentro da pandemia; números de infectados no Brasil saltando em uma semana de 234 para 2271 e 47 mortes e anúncio da suspensão da Olimpíada de Tóquio 2020, um troll debochado e raivoso invadiu na noite da última terça-feira os lares no Brasil, por meio de pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão, negando dados da pandemia, contradizendo autoridades nacionais e internacionais de saúde, desorientando a população e acusando veículos de comunicação, causou estupefação e indignação.

Segundo o Dicionário Cambridge de língua inglesa a palavra troll tem os seguintes significados “criatura imaginária, muito grande ou muito pequena (ogro ou goblin), originária do folclore escandinavo, que possui poderes especiais e vive em montanhas ou cavernas. Provocador. No uso corrente na internet o troll é “alguém que deixa uma mensagem intencionalmente irritante, a fim de obter atenção ou causar problemas.

O troll na política joga com a dubiedade, insidiosamente entre o que é brincadeira e o que é sério. Busca polemizar, mexe com os tabus, nega o politicamente correto e despreza consensos, chegando a flertar deliberadamente com o ilegal. Com isso atinge seu objetivo principal: visibilidade.

Nos últimos anos, como estratégia de comunicação, a figura do troll ganhou relevo nos partidos e movimentos da chamada alt-right (direita alternativa) em países da Europa e, destacadamente nos EUA.

O cientista político ítalo-suíço Giuliano Da Empoli, pesquisador sobre a tecnopolítica e autor do ótimo livro Os engenheiros do caos, ao analisar a ação de trolls emblemáticos escreveu o seguinte sobre o atual presidente dos EUA (ídolo do presidente brasileiro): “Trump ele próprio é um troll. […] O megafone de Trump é a incredulidade e  a indignação das mídias tradicionais que caem em todas as suas provocações.” […] “Por meio da brutalidade de sua linguagem e de suas provocações, através de seus discursos improváveis e de seus tweets, de suas piadas injuriosas e suas fanfarronices ingenuas, Trump exprime uma autenticidade que o distingue dos políticos profissionais, em torno das quais o mundo parece deslizar com a costumeira e inabalável indiferença.”

O que os brasileiros assistiram em seus televisores e viram se reproduzir em mídias sociais e inúmeros canais de internet, apesar da estupefação causada particularmente em função do gravíssimo contexto em que tal ocorrência se insere, não se trata de fato novo. 

Aliás, no que diz respeito ao troll em questão, sua trajetória o insere nessa categoria de seres perturbadores, desde muito antes de chegar ao cargo que ocupa hoje.

Mesmo antes de se tornar candidato na eleição de 2018, Bolsonaro como parlamentar já agia como um troll. Da caverna obscura de sua mediocridade só via os holofotes quando se metia em polêmicas em função de manifestações grosseiras, descabidas e muitas vezes criminosas, levando-o inclusive a ter de responder a processos judiciais e indenizar suas vítimas como no conhecido caso de ataque à deputada Maria do Rosário (PT-RS).

Tragicamente, com sua ascensão na campanha eleitoral de 2018 e depois ocupando a Presidência da República, aquilo que foi uma estratégia de comunicação eficiente se converteu em valor para a consolidação de um movimento, de uma ideologia, o bolsonarismo, com milhões de adeptos no país.

Seus constantes ataques à mídia de modo geral (como se viu ontem) e, por vezes, a jornalistas em particular, cumprem simultaneamente diversas funções como: intimidar, desacreditar, desviar atenção em momentos de vulnerabilidade do governo, mobilizar apoiadores, renovar engajamento em torno da figura do líder e dos valores por ele defendido (pauta moral, de costumes) e, como sempre, ganhar visibilidade.

Muitas vezes, os recuos se tornam necessários pois, embora opere nos limites, não raramente atinge o intolerável. Mas o recuo nem sempre é derrota pois sempre atende a algumas das funções dessa comunicação, especialmente visibilidade e engajamento.

Desde o fatídico resultado da eleição presidencial brasileira de 2018 muitas análises e cenários foram produzidos, ora tratando da resiliência das instituições democráticas do país (pesos e contrapesos),  ora da apatia e/ou desarticulação dos atores identificados com as “forças progressistas” da sociedade diante de combinação de variáveis adversas. No dia de hoje, como reação ao deprimente e preocupante espetáculo assistido ontem em cadeia nacional,  as análises tem girado em torno da reconhecida necessidade de identificação de instrumento adequado para a interrupção do atual estado de coisas no tocante ao comando político do país.

Confrontado com a evolução da pandemia do coronavírus no país e as consequências danosas que acarretará, ao povo brasileiro e suas instituições está posto um desafio adicional para o qual não se havia preparado e cujas ações de enfrentamento só alcançarão êxito se pensadas e empreendidas tendo em perspectiva as consequências de curto, médio e longo prazos, e que sejam estrategicamente superiores às do insidioso adversário que, embora desprovido de muitas qualidades, neste momento ainda dispõe de recursos exclusivos de poder e faz do contexto de incerteza e da irresponsabilidade  e desprezo pela vida humana vantagem tática.

A dubiedade caracterizadora da ação do troll não deve ser interpretada como fraqueza ou desorientação, ele pode se beneficiar inclusive do que pareça ser uma derrota pois veio se aprimorando no jogo da simulação.

Arnaldo Cardoso, cientista político.

Redação

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