A lápide do homem cordial, por Ana Laura Prates Pacheco

Caiu o semblante do homem cordial. Sim, um terço dos eleitores brasileiros (do total de eleitores) votou naquele que representa o terror mais inominável: a eliminação do humano em nós.

A lápide do homem cordial

por Ana Laura Prates Pacheco

Já se disse que a contribuição brasileira para a civilização será o ‘homem cordial’. A hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’. Nossa forma de convívio social é, no fundo, o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência. (Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”)

Cuide, quando pensar em morrer

Para que não haja sepultura revelando onde jaz

Com uma clara inscrição a lhe denunciar

E o ano de sua morte a lhe entregar

Mais uma vez:

Apague as pegadas! (Brecht)

Estamos vivendo o momento mais dramático da chamada Nova República, justamente no aniversário de 30 anos da nossa Constituição cidadã. A ameaça da eleição do Sr. Jair Bolsonaro atordoa e amedronta a todas e todos aqueles que lutaram contra a ditadura civil militar que dominou o Brasil a partir do golpe de 1964. Nossa primeira eleição direta depois daquele período nefasto de nossa história recente só ocorreu em 1989. Antes disso tivemos uma transição lenta para um regime semidemocrático que incluiu uma Anistia ampla geral e irrestrita – ou seja, negociada, o que significava um pacto de não punição dos militares envolvidos nos crimes de tortura e extermínio ocorridos nos anos de chumbo – e uma eleição indireta de um civil conservador – Tancredo Neves, que veio a falecer antes de tomar posso, deixando de herança seu vice José Sarney.

O processo de redemocratização do Brasil, além de lento e negociado, sempre foi parcial. As instituições se fortaleceram com a nova Constituição e a prática regular de eleições para o executivo e legislativo. O poder judiciário permaneceu com os vícios e o tabu de ser intocável. Muitos avanços aconteceram, de fato. Mas para grande parte da população, a democracia nunca chegou de fato: os índios seguiram sendo exterminados, os negros pobres das periferias das grandes cidades continuaram a ser torturados e assassinados por uma polícia que ainda hoje é militar. A fome e a desnutrição continuaram matando nossas crianças. Os grandes acordos nacionais, com Supremo, com tudo, zelaram para que os privilégios de sempre permanecessem inalterados.

Os governos mais populares da última década trouxeram uma nova onda de avanços muito significativos, sobretudo para a população miserável de nosso país. Algumas conquistas foram de fato extraordinárias, como certa estabilidade econômica, a retirada do país do mapa da fome internacional, a drástica redução da mortalidade infantil e a inclusão econômica de uma enorme parcela da população, além de programas de moradia, iluminação, saneamento, democratização da educação e da cultura, etc. Além disso, houve a conquista inédita de uma posição internacional de destaque, com respeito à soberania nacional, bem como uma posição republicana no tratamento de instituições como o próprio Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público e a Polícia Federal. Apesar de tudo isso, entretanto, os grandes acordos permaneceram como se fosse possível flertar cordialmente com as elites e as oligarquias sem ter que pagar o dote. Sabemos qual foi o preço cobrado para a manutenção da chamada governabilidade. Um preço alto para uma grande parcela de brasileiros que apostava em uma mudança radical de conduta, ou quem sabe, numa ruptura definitiva do grande pacto.

A grande traição não tardou a chegar, e veio do modo mais terrível que se poderia imaginar, através de um teatro de mau gosto, no qual todos sabiam que se tratava de uma farsa, mas não hesitaram em cumprir seu papel patético sob o faz de conta de que tudo estava se dando conforme os ritos institucionais. Não se consente com um golpe impunemente, sobretudo quando ele se dá sob a égide da misoginia mais vil. A cena do deputado Jair Bolsonaro dedicando seu voto a favor do impeachment da Presidenta eleita Dilma Roussef – notoriamente sem crime de responsabilidade – ao seu torturador sádico e cruel Brilhante Ustra; e o fato ainda mais vil de que, sob a vista de todos e embaixo do nariz do Supremo, esse senhor não ter saído preso do plenário, e nem sequer ter sofrido um processo no comitê de ética do congresso; essa cena foi o prenúncio tenebroso do que viria depois.

Aprendemos com a Psicanálise que não se rompe o pacto social impunemente, e tampouco se consente com tamanha indecência sem que haja consequências. O simbólico rejeitado sempre cobrará sua libra de carne. O que não prevíamos, entretanto, é que o pior viria a galope de forma inédita.

Ora, mesmo durante a Ditadura, havia, ainda, um resto de pudor. A máscara da cordialidade (lê-se clientelismo, nepotismo, coronelismo, catolicismo de meia tigela, etc.) impedia que se declarassem abertamente os crimes que ocorriam nos porões do DOPS e do DOI-CODI Era preciso negar sistematicamente que houvesse tortura no Brasil, e os cadáveres precisavam ser ocultados em valas comuns ou jogados ao mar em nome da manutenção do discurso oficial que sustentava uma falsa normalidade institucional. A figura maior da ditadura brasileira era o silêncio. Lembro-me de que, filha de um homem perseguido pela ditadora e de uma professora universitária exilada em uma cidade do interior, eu era proibida de falar com qualquer pessoa o que se discutia em nossa casa. Em outras palavras, não se podia confiar em ninguém. Isso gerou em mim uma dificuldade enorme de saber o que se podia e o que não se podia falar, por exemplo, com colegas da escola. Até hoje tenho ainda resquícios dessa falta de parâmetro sobre o que é dizível e o que não é.

Na adolescência, comecei a militar no movimento secundarista, e lembro-me de enfrentar situações potencialmente perigosas para a época com uma coragem certamente irresponsável, mas ao mesmo tempo não de todo inconsequente. Em todo caso, a ameaça era sempre velada: um vizinho sorrateiro poderia te denunciar na calada da noite. Até hoje, mesmo depois de meu pai ter sido anistiado e de ter recebido uma indenização indecente e o pedido de perdão oficial do Estado brasileiro pelos danos causados à sua vida e à vida de seus familiares (nos quais me incluo), não sabemos quem o perseguia, quem mandava seus chefes o demitirem sistematicamente de seus empregos. Era tudo velado. Afinal, ainda continuávamos sendo agenciados pelo lugar tenente da máscara da cordialidade, mesmo que sórdida e sorrateiramente assassina.

O que estamos vivendo enquanto nação no ano de 2018 parece-me de outra ordem discursiva. Não estou comparando atrocidades e maldades. O mal verdadeiro não se mensura. Mas estou afirmando que o que estamos vivendo nesse tempo é algo de outra qualidade, com a qual não sabemos lidar. Não sei como lidar com o medo que sinto agora. A máscara do homem cordial, nosso semblante maior, caiu. Agora, o que assistimos atônitos, é um discurso explícito de incitação à eliminação do “inimigo”, quase sempre identificado a uma figuração do feminino, enquanto alteridade radical não de todo fálica (a mulher, o negro, o índio, o migrante, os homossexuais, o deficiente, o louco). O que aparece desvelado quando cai esse semblante é o ódio mais abjeto, o ódio, talvez, do que nunca quisemos enxergar em nossos espelhos: nosso estupro fundamental, que torna incontornável nossa miscigenação estrutural. Identificamo-nos com o homem branco heterossexual “de bem” para não encararmos quem realmente somos, e a dívida que temos com nossos irmãos.

Nesse cenário macabro, há algo que tem me chamado muito a atenção: a maior parte dos nossos parentes e conhecidos que votaram no Sr. Bolsonaro argumentavam que as atrocidades cometidas e, sobretudo, declaradas por esse senhor não passavam de brincadeiras, ditas da boca pra fora. Eles desconhecem ou fecham os olhos para o fato de que essa queda do véu do pudor, essa obscenidade (trazer à cena o que é fora da cena) serve de salvo conduto para as práticas mais violentas, degradantes e cruéis.

Mas, pensando bem, é curioso que nos espantemos com isso. Ora, não somos nós, homens, que consentimos de modo benevolente com os grupos machistas de Whatsapp entre amigos de infância? Não somos nós, pais e irmão de filhos gays, que escutamos com um risinho amarelo as piadas homofóbicas porque não queremos ser tachados de “politicamente corretos”? Não somos nós que, mães de filhos deficientes, nos calamos diante de propostas eugênicas e discriminatórias porque não queremos nos sentir inferiores? Não somos nós, mulheres, que aceitamos os piores assédios, submissões e humilhações, além de relacionamentos abusivos e violências cotidianas, porque senão somos rotuladas de não femininas? Não somos nós que temos vergonha de defender as cotas para os negros, ou a demarcação de terra para os índios porque queremos oportunidades iguais para todos? Não somos nós que seguimos sendo tolerantes, cordialmente, com nossa violência fundadora, porque, afinal, tudo não passa de uma grande brincadeira, é tudo da boca pra fora, e piada não ofende? Ora, porque estamos, agora, tão perplexos ao ouvir nossos próprios argumentos voltados contra nós?

O Brasil é um país que não passou a limpo sua história e até hoje não pode oferecer uma lápide a muitos de seus mortos. Como diz Bernardo Kucinski no livro K, sobre a luta de seu pai pelo corpo da irmã desaparecida, até mesmo os judeus mortos nos campos de concentração tinham nomes e registro. No Brasil, não. O genocídio de nossos índios talvez seja o caso mais extremo. Ao visitarmos museus dedicados às nações indígenas na região norte do Brasil, entramos em contato com centenas de nações indígenas que foram exterminadas. As pessoas que formavam essas nações, entretanto, não têm nome. Sua existência foi apagada. O genocídio dos jovens das periferias ou comunidades das grandes cidades também é alarmante. No Brasil, dados oficiais mostram que a cada dia, cinco pessoas são assassinadas pelas polícias brasileiras, sendo que 66% dos civis assassinados são pardos ou negros. Muitas dessas vítimas são menores de 18 anos. Em 2010, segundo a fundação Abrinq, 8.600 crianças e adolescentes foram assassinados. A ONU, em 2015, notificou a Polícia Militar do estado de São Paulo, uma das mais assassinas do país.

Graças ao trabalho possível da Comissão Nacional da Verdade e à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos começamos a identificar os nomes de alguns desaparecidos. Nas valas do cemitério clandestino de Perus, além de vítimas do regime de exceção, também foram desovados os corpos de pessoas “eliminadas” por grupos de extermínio, muitas vezes ligados à PM.

Somos o país da VALA COMUM, como mostra o espetáculo de mesmo nome realizado pelo IMPULSO COLETIVO, sob direção de Ivan Sugahara e dramaturgia de Carolina Lavigne. O espetáculo se passa em um casarão antigo na Tijuca, no Rio de Janeiro, em cujos pequenos cômodos os 15 espectadores são confinados e convidados a acompanhar as sucessivas cenas, participando com o corpo. A palavra confinamento não é aleatória. O texto do espetáculo é construído como se se tratasse da indústria da carne, desde o nascimento do bezerro, a criação e o abatimento para o consumo, bem como as especulações dos leilões de gado. Dessa forma, o espetáculo nos põe em contato, simultaneamente com várias camadas de nossa violência cotidiana, já que os bezerros e bois prontos para o abate somos nós. Durante uma hora e meia somos nós a população/boiada pronta para o abate.

Os funerais, a inscrição do nome na lápide, paradoxalmente, nos oferecem uma vida simbólica. A nossa transformação em corps, o cadáver, o corpo simbólico, é a prova final de nossa humanidade. Tal como no poema de João Cabral de Melo Neto, musicado por Chico Buarque: “É a parte que te cabe deste latifúndio. É a terra que querias ver dividia”. Infelizmente, não nos posicionamos eticamente como Antígona, a personagem da tragédia grega, filha de Édipo que pagou com a própria vida sua intransigência em exigir o direito aos funerais para o irmão morto. Nós, enquanto cidadãos – salvo raras exceções compostas por familiares de desaparecidos –, nunca reivindicamos um enterro digno aos nossos mortos, e achamos que isso seria sem consequências. Nós, seguimos chorando com Marias e Clarices no solo do Brasil. Elas, Zuzu Angel e tantas outras são nossas raras Antígonas, mulheres que reivindicam enterrar seus mortos, como também o são as “Mães de maio”.

O que acontecerá no Brasil, que se constituiu como um país, sob a égide do apagamento sistemático da memória, e que tem na arte popular sua maior fonte de resistência? Assistimos à tomada oficial do Estado por um governo que tem como política oficial o apagamento de nossos arquivos, como se fosse o incêndio perpetuado do Museu nacional. O Brasil resetado. A memória que nos constitui, nesse sentido, não ameaça apensas nosso passado, mas nosso futuro.  Do que não queremos lembrar? Porque estamos sempre dispostos a fazer vistas grossas para cenas escabrosas como a de Olga sendo deportada grávida para a Alemanha nazista?

A máscara do homem cordial, nosso semblante maior, entretanto, caiu. Agora, o que assistimos atônitos, é um discurso explícito de incitação à eliminação do “inimigo”, quase sempre identificado a uma figuração do feminino, enquanto alteridade radical não de todo fálica (a mulher, o negro, o índio, o migrante, os homossexuais, o deficiente, o louco).

A sociedade brasileira está com as vísceras abertas. O que aparece desvelado quando cai esse semblante é o ódio mais abjeto, o ódio, talvez, do que nunca quisemos enxergar em nossos espelhos. Estamos naquele momento crucias das tragédias quando a verdade vem à tona e se desvela o real. Estamos naquele momento em que Édipo descobre o que já tinha que ter sabido antes. Porque é justamente aquilo que a gente não queria ver: o nosso estupro fundamental, que torna incontornável nossa miscigenação estrutural. Onde está isso? Nas nossas famílias. Identificamo-nos com o homem branco heterossexual “de bem” para não encararmos quem realmente somos, e a dívida que temos com nossos irmãos.

Caiu o semblante do homem cordial. Sim, um terço dos eleitores brasileiros (do total de eleitores) votou naquele que representa o terror mais inominável: a eliminação do humano em nós. Não acredito que todas e todos sejam fascistas. Mas, sim, muito o são. E agora, sem pudor, podem declara-lo abertamente, e os crimes contra pessoas e contra a humanidade já começaram a ocorrer a céu aberto, em plena luz do dia. Momento para se temer o pior, que já está entre nós. Nossas vísceras estão abertas. Resta saber como vamos resistir, como vamos costurar as suturas e como vamos lidar com as cicatrizes profundas que, certamente, restarão. Mas, para isso, precisamos, antes, revelar nossa verdade, sepultar nossos mortos. Escrever nossa lápide.

Onde começa a história de vocês?

No nascimento de vocês?

Então começa no horror

No nascimento do pai de vocês?

Então é uma grande história de amor

Mas voltando ainda mais longe

Talvez se descubra que essa história de amor

Tem sua origem no sangue, no estupro,

E que por sua vez,

O sanguinário e o estuprador

Têm sua origem no amor

Então,

Quando perguntarem a história de vocês

Digam que a história de vocês, sua origem,

Volta até o dia em que uma moça

Voltou para sua aldeia natal para gravar o nome de sua avó Nazira sobre seu túmulo

Ali começa a história

(Há verdades que só podem ser reveladas se forem descobertas)

Gravem o meu nome sobre a pedra

E coloquem a pedra sobre meu túmulo

Sua mãe

(Wajdi Mouawad, “Incêndios”)

Dra. Ana Laura Prates Pacheco é Psicanalista AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/Fórum de São Paulo. Pesquisadora do LABEURB, UNICAMP.

Redação

3 Comentários

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  1. Ana Laura Prates Pacheco escreveu um texto contundente de nossa realidade, da nossa falta de coragem, do nosso atavismo. Eh o que tenho dito a todos neste momento, numa espeécie de grito sufucado no peito, como uma angustia terrivel de que talvez não tenhamos saida sem derramamento de mais sangue. Sem irmos até o fundo de nos mesmos e rasgarmos nossos peles.

  2. maravilhoso texto. diria, sinteticamente,:
    antológico….
    suma, síntese de um sentimento que muitos
    não podem revelar porque ainda não descobriram a verdade…
    a hora em que perceberem que a máscara
    do homem cordial não passa de um horror
    – o reverso do escondido, a fake news, a mentira indizível -,
    aí então TALVEZ DESCUBRAM QUE É PRECISIO
    LUTAR Não pela MORTE INFAME PROPOSTA
    POR ESSES INFAMES direitistas mas sim
    pela vida, pela humanidade…

  3. esqueci de dizer que o grito (de munchen) é de socorro
    que, talvez, nos redimisse de um tempo infame
    que jamais imaginaríamos viver,mesmo
    nos piores pesadelos,nos momentos de
    profunda angústia e desespero existencial.
    as mentiras dessa gente são – kiy gay,etc – irracioonais
    como o grito mostra o medo irracional que sentimos
    durante um pesadelo.
    ruptura traumática tão rotunda quanto o
    golpe que criou o estado de exceção,,
    o eco provocado pelo grito reverbera por todos os cantos,
    transformando tudo numa “grande e sonora cena de horror.
    a imagem virou ícone cultural. mas os
    bolsignaros dirão que isso não passa de marxismo cultural…

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