A morte do meu amigo Caiubi, por Luis Nassif

É o último amigo de adolescência que se vai, vitimado pela praga do século 20, o cigarro

Acabo de ser comunicado que o hospital desligou os aparelhos que mantinham meu amigo Caiubi César Miranda. É o último amigo de adolescência que se vai, vitimado pela praga do século 20, o cigarro.

Anos atrás fiz um jantar em casa com ele e Tião Cabo Verde. O Zé Alencar já tinha partido, vitimado pelo cigarro e o João Kleber por cigarros e bebida. Ambos, Caiubi e Tião, compareceram levando tubos de oxigênio. Tião morreu logo depois. Caiubi suportou mais algum tempo, graças a uma cirurgia experimental que fez no Oswaldo Cruz.

Foi vitimado pela mesma doença que atingiu sua irmã, minha amiga Moema, um enfisema agravado pelo cigarro. Quase tão ruim quanto o câncer que levou a terceira da família, a Yara.

Fomos amigos desde sempre, a partir do Caiçara, o bar do Wilson Semin que juntava, nas férias, o melhor do turismo poçoscaldense, um pessoal de São Paulo e Rio de Janeiro, saudosos dos velhos tempos de glória e encontrando no bar os pianos de João Viviani, do iniciante Dartagnan, a bateria do Bagatini entre outros craques consagrados e em formação.

Com o bar descobrimos o melhor lado de Poços de Caldas, o local sem preconceitos, e com alguns personagens interessantíssimos, como Caio Lobato e suas fossas, o Roosevelt Antonio Crisostosmo, filho do seu Alvino e, jovem ainda, diretor musical da melhor rádio do Brasil, a JB. E mais as musas mais velhas, a Goga, filha do Zé Prézia, e a Yara, que cantava com voz rouca das divas do samba-canção. Grande guerreira a Yara. Os Miranda perderam o pai muito cedo e a Yara, primeiro nos Correios, depois no Bachianinha, é quem segurava a família, financeira e moralmente.

Quando os Miranda adquiriram o Caiçara, houve uma noitada para eleger o novo nome do bar. Quem ganhasse teria direito a uma semana de bebida de graça. Antes da eleição, a Moema me procurou com a proposta indecente:

– Turco, apresente o nome Bachianinha, que vai vencer.

Ou seja, já tinham escolhido o nome, mas precisavam de um laranja para não dar na cara. Apresentei e bebi na primeira semana de vida do Bachianinha.

Depois, fui estudar em São João da Boa Vista e Caiubi permaneceu um pouco mais em Poços, tocando o Bachianinha.

Uma época cismou em homenagear o Menotti Del Picchia, por seu histórico Juca Mulato, e me chamou para ajudar. Em São João, eu tinha musicado o poema para o teatro do Instituto Educacional, dirigido por dona Vera Gomes. Mas rompemos antes, para fundar o Gama, e a música acabou no ar.

Já idoso, Menotti veio com os filhos. Meu pai emprestou a Veraneio dele e levamos a familia para passear. Tudo muito bom, tudo muito bem, só prejudicado por um pequeno detalhe: não houve tempo de ensaiar o grupo que levaria a peça-poesia.

Sugeri então uma gambiarra: levaríamos a peça na Urca, que estava sob comando da FAFI, a Faculdade de Filosofia do padre Trajano, como se estivéssemos ensaiando. Sentamos todos na escadaria do teatro, eu com meu violão, e conversamos descontraidamente, como em um ensaio. O povo até engoliu.

Aí ocorreu o pior. Do primeiro para o segundo ato muitas pessoas se levantaram para ir embora. Eram os alunos de outras cidades, que precisavam pegar os respectivos ônibus para voltar para casa. Só que nenhuma alma santa me informou. Apavorado com a debandada, terminei o primeiro ato dando a peça como encerrada.

Fechamos a cortina e fomos para trás do palco, o Caiubi em transe sem entender minha atitude. Eu tentando explicar que a sala estava esvaziando, eles me explicando que eram os de fora indo embora. Logo depois, a Terezinha, minha prima, que era presidente da UMES (União Municipal dos Estudantes) entrou acompanhando o Rowilson Molina, que esculhambou o Caiubi, atribuindo o vexame ao fato de não ter envolvido a UMES no evento. Fui para cima do Molina e mostrei que a culpa era exclusivamente minha. E terminamos a noite enchendo a cara no Bachianinha.

Nosso maior problema era nas serenatas e nos festivais de música. O maior sonho do Caiubi era participar das nossas rodadas de música cantando. Acontece que era o sujeito mais desafinado que encontrei em toda a minha vida. Resolvi a questão criando uma interpretação aleatória para ela – na época estava na moda a “música aleatória” dos concretistas. Consistia em repetir “alea jacta est” do jeito que bem entendesse. Acho que a sugestão, brilhante, foi do João Kleber. Mas o Caiubi não engoliu direito a arte aleatória. Continuou teimando em cantar canções.

Depois, passei no vestibular, fui para São Paulo, mas sempre mantendo contato com os Miranda.

Aí começou um conflito pessoal do Caiubi, entre ser jornalista ou fazer carreira mais estável em empresas. Se apoiava em mim no jornalismo, na Yara no emprego corporativo.

Até me convenceu a montar um segundo jornal em Poços, depois do Mantiqueira, que eu havia montado em 1974. Seria o Dois Pontos, semanal, pequeno. Mas na primeira reunião, deu pepino. Participava do grupo o Antonio Neto Barbosa, o Netinho – soube outro dia que o Lucas Barbosa, do Hospital Poços de Caldas, era o Lucas irmão do Netinho, com quem jogávamos bola no São Benedito – que se tornara presidente do PcdoB de São Paulo
Na época sugeri – e o Sérgio Manuccci é testemunha – que, com os novos aparelhos que surgiam – os computadores cujo conteúdo era gravado em fita cassete – passássemos a catalogar todos os habitantes da cidade, para a próxima luta que vinha pela frente. A ditadura estava nos seus estertores, voltariam as diretas e era a hora da nossa geração assumir.

Mas não deu certo na definição da linha editorial. O Netinho queria que abordasse as garras do imperialismo querendo se apossar da Amazonia e das matas do São Domingos, e eu dizia que tinha que ser temas locais. O Dois Pontos durou duas ou três edições e, depois, sobreviveu no nome da Consultoria de RH que o Caiubi montou.

De qualquer modo, o Caiubi escreveu uma reportagem um tanto injusta sobre dona Nini Mourão, mas mostrando todas as qualidades de um grande repórter. Mas não insistiu na carreira. Disse que eu começara antes e estava muito na frente, e ele não via condições de me acompanhar. Nem adiantou dizer que cada jornalista faz sua própria carreira e ele tinha talento suficiente para tentar a sua.

Éramos tão amigos que, na véspera de seu casamento vim a Poços e fomos, todos, jantar no Bar do Gato, ocasião que Caiubi iria apresentar sua futura esposa, a Eva, uma argentina de gênio forte. O pessoal brincava com o gênio dela e explicava que era choque cultural, embora eu nunca tivesse ouvido falar em choque cultural entre Brasil e Argentina.

No jantar, fiz algumas pequenas brincadeiras sobre argentinos. A Eva se levantou indignada, me deu uma resposta ríspida e saiu do bar dizendo que, se Caiubi mantivesse a amizade comigo, não casava mais.Lá se foi o Caiubi gênio bom atrás dela. Voltou horas depois, todo arranhado. Mas conseguindo demovê-la da ameaça de desistir do casamento e permitir que continuássemos amigos.

E o Caiubi, o Castor, como era seu apelido, por conta dos dois dentes proeminentes, fez brilhante carreira corporativa, começando na Alcoa e chegando ao RH da Volkswagen.

Tivemos um episódio divertido em sua época de Volkswagen. Ele entrou no RH da VW e alardeou para os colegas nossa amizade. Por aquela época, assumiu a presidência da VW um austríaco meio truculento. Veio a crise de energia, no governo FHC e ele deu entrevista dizendo que se não fosse resolvido o problema da energia, a VW teria que sair do país.

Na verdade, caiu na pegadinha de um repórter.

– Se não houver energia suficiente, vocês continuam no país?

É óbvio que não. Mas a reposta saiu como se fosse uma intimação ao governo. Além disso, tinha cortado o patrocínio à Orquestra Infantil de Heliópolis. Escrevi na Folha uma coluna dura contra ele e o Caiubi entrou em pânico. Mas aí o austríaco convidou para almoçar na VW, explicou a pegadinha da energia e anunciou que voltava com o patrocínio e ficou tudo bem.

Anos depois, Caiubi saiu e montou sua consultoria, de nome Dois Pontos, voltada para políticas de meio ambiente corporativas. Um dia montei um seminário de Meio Ambiente no Conjunto Nacional e ele apareceu. No intervalo ficava tossindo e fumando. Mostrei-lhe a imprudência. Àquela altura a Moema sofria barbaridade com o enfisema dela. Caiubi saiu-se com a desculpa furada: era problema hereditário por isso não adiantava parar de fumar.

Nos encontramos várias vezes, e bastante, anos atrás, quando ele acompanhou, e torceu, pelo meu relacionamento com a Eugênia.

Durante algum tempo descobriu o Facebook e encantou a todos com os poemas e pinturas que colocava em seu perfil.

Na última vez que falamos ele disse que a operação não fazia mais efeito. Foi desaparecendo do Facebook, de mansinho, sem alarde, com o jeito doce dos que se preparam para partir.

PS – Recebo telefonema de Eva, esposa de Caiubi. No último momento, o médico percebeu uma válvula com mau funcionamento, colocada no transplante anterior. Foi providenciada nova válvula. Caiubi está ainda na UTI, em estado grave, mas a esperança permanece.

Luis Nassif

11 Comentários

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  1. Também sofro muito quando lembro de Santos, minha infância, adolescência , ida para SP faculdade, encontros com novos amigos em Santos, junto à antigos jamais esquecidos…..depois a carreira fora nos sequestra….

  2. My Cup
    (Bob Marley and The Wailers)

    My cup is running over,
    I don’t know what to do.
    No I don’t know (no I don’t know) no I don’t know
    (No I don’t know) Yes I’ve got to cry, cry, cry
    People let me cry, cry, cry
    Said I fell a little bit better (cry, cry, cry)
    If only I got to cry, cry, cry

    Now that I lost you
    I’ve lost the best friend
    That I ever knew
    Now that I realize
    It makes me (makes me) it makes me (makes me)
    So mad, tell you, my cup running over,
    I don’t know what to do.
    No I don’t know (no I don’t know) no I don’t know
    (No I don’t know) Yes I’ve got to cry, cry, cry
    People let me (cry, cry, cry)
    (Cry, cry, cry)
    (Cry, cry, cry)

  3. Nossos sentimentos à familia e amigos, assim os tempos vão passando e vamos perdendo nossos amigos poçoscaldenses. A última vez que o vi foi neste evento o qual Luís mencionou.

  4. Lamento sempre pelos amigos que partem, especialmente, vitimas de coisas que poderiam ser evitadas. Nassif, tive também bom relacionamento com o Tião Cabo Verde e com o Édson Tadayuki, quando você os mandou para Poços, já no tempo do jornal Cidade Livre. Assim é a vida. Abraço.

  5. Triste notícia… Desde criança minha família foi vizinha dos Miranda e Caiuby me levava pela mão até o Colégio São Domingos, de tão pequena q era. Ele tinha um pet chamado Bob e sua irmã Moema era minha xará. Depois de anos encontrei Caiuby dentro de um elevador em SP e descobrimos q trabalhávamos no mesmo Centro Empresarial de SP.
    Mtas lembranças q não cabem nesse espaço. Mas cabem no meu coração. Q Deus abençoe toda a família, agora finalmente reunida.

  6. Prezado Nassif,
    Belíssimo texto de despedida a um amigo.
    Bem, mas teve o PS, mesmo sem conhecê-los, vou torcer para que seu amigo se recupere.
    Se me permite, continuarei a chamar de amigos os meus amigos, mas de vez em quando vou dizê-los……meus caiubis.
    Abraços,
    Força na esperança.

  7. Eu fui uma das colegas de trabalho do Caiubi durante a sua vida corporativa. Caiubi sempre nos encantava com a sua criatividade, competência profissional, sensibilidade, humor e romantismo, tudo temperado com uma certa transgressão, que eu particularmente, adorava! Pessoas como o Caiubi nunca poderiam morrer. De todo modo, vai em paz meu amigo!!

  8. Qto tempo ñ lia os melhores textos que eu Amo. Sou de Poços de Caldas e sua Fã. Agora mexendo na Internet e achei esta sua matéria sobre Caiubi.
    Onde encontro matérias suas? Abraços!

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