A OEA, a agressão à Venezuela e os riscos para o Brasil, por Roberto Bitencourt da Silva

Como de praxe na geopolítica estadunidense, o saque aos recursos naturais abundantes nos países da periferia do sistema capitalista e internacional, o petróleo em questão, acima de tudo.

A OEA, a agressão à Venezuela e os riscos para o Brasil

por Roberto Bitencourt da Silva

A invocação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), no âmbito da Organização dos Estados Americanos, sob a liderança dos EUA, da Colômbia e do Brasil, consiste em mais um capítulo das agressões imperialistas à soberania da Venezuela.

Como de praxe na geopolítica estadunidense, o saque aos recursos naturais abundantes nos países da periferia do sistema capitalista e internacional, o petróleo em questão, acima de tudo. Brasil e Colômbia como lastimáveis parceiros subservientes, dotados de postura subalterna típica do “realismo periférico” a que se referiam personagens do antigo governo Menem, da Argentina: “relações carnais” e subservientes com os Estados Unidos, visando acomodar-se nas margens do banquete imperialista.

Uma geopolítica, de ambos os países sul-americanos, alienada em relação aos interesses nacionais de seus povos e ao seu meio. A reboque da doutrina e do arbítrio imperial estadunidense. Os governos e as elites econômicas e políticas de Brasil e Colômbia dão às costas para qualquer laivo de integração regional latino-americana – para qualquer sentido de construção de uma comunidade regional de destino que compartilhe não somente histórias, mas aspirações razoavelmente comuns – e colocam-se na vexatória condição de artífices operacionais das aspirações ianques. Seus presidentes? Menos expressões das vontades dos seus povos, do que mais propriamente marionetes do império, à antiga moda romana.

Conforme análise do sociólogo Marcelo Zero, as medidas previstas pelo tratado podem envolver: “a retirada dos chefes de missão; a ruptura de relações diplomáticas; a ruptura de relações consulares; a interrupção parcial ou total das relações econômicas ou das comunicações ferroviárias, marítimas, aéreas, postais, telegráficas, telefônicas, radiotelefônicas ou radiotelegráficas” e, em última instância, “o emprego de forças armadas”. Nas próximas semanas teremos conhecimento do que, covardemente, será feito contra o povo venezuelano.

Motivo de natural repúdio por parte do governo venezuelano, entre outras razões, em função de a Venezuela não ser signatária do TIAR nem integrante da OEA, por igualmente servir de possível causa à intensificação da crise política, social e econômica no país, também o Comitê Brasileiro pela Paz na Venezuela manifestou-se contra a medida da OEA. No Brasil, nos anos 1960, nacionalistas de esquerda designavam a OEA como “ministério das colônias”, a serviço dos EUA. A leitura persiste correta e atual.

Como pano de fundo, a invocação do TIAR corresponde a um sintoma de verdadeira contrarrevolução permanente, promovida pelo capital oligopolístico dos EUA e pelas burguesias latino-americanas associadas e vassalas daquele. De um lado, almejando conquistar e resguardar recursos naturais e energéticos em escassez para o domínio dos EUA. De outro, visando atender ao desafio do declínio americano, nas esferas tecnológica, monetária e financeira. Uma resposta à perda progressiva do papel de “hegemon” no sistema-mundo, como diria o sociólogo Immanuel Wallerstein.

Não gratuitamente, é destilado um atroz ódio à Venezuela, há duas décadas concebida como principal ameaça aos interesses estadunidenses na América do Sul, em função dos apelos chavobolivarianos pela Pátria Grande, ou seja, de integração regional, inclusive militar, via Unasul, identificando claramente os EUA como inimigos, explícito polo antagônico aos anseios por liberdade, bem-estar social e soberania na região.

A Venezuela configura-se também em péssimo exemplo para as oligarquias e burguesias apátridas sul-americanas, naquilo que revela em estímulo institucionalizado à participação popular direta, organizada dos trabalhadores nos processos decisórios do País, em retórica e iniciativas anti-imperialistas e nacionalistas. Para o reacionarismo e o vendepatrismo galopante de classes dominantes como a lumpenburguesia brasileira, a ousada experiência política venezuelana só pode causar ojeriza; a demonização diuturna na mídia.

Especificamente no tocante à posição oficial brasileira, cumpre observar que o projeto das classes dominantes domésticas apátridas e gringas é tornar o Brasil anexo em tudo que interesse aos EUA. Entreguismo cavalar, explicitamente evidenciado após o golpista governo Temer. Nesse projeto não há nada que integre e beneficie material e simbolicamente as classes trabalhadoras, humildes, populares e médias.

Nada. Somente desapossamento de direitos coletivos e chumbar-nos no subdesenvolvimento da produção mais rudimentar primário-exportadora. O acordo comercial Mercosul/União Europeia, como exemplo mais recente, na leitura diplomática brasileira, entende que a “exportação de melancia e abacate” é de “extrema importância” para o comércio exterior brasileiro. A que ponto chegamos. Muito elucidativo. E preocupante, por óbvio.

Some-se a isso a desnacionalização crescente da estrutura produtiva, em todos os setores, redundando em elevação da apropriação dos excedentes nacionais pelo capital estrangeiro, as burguesias internas brasileiras acotovelam-se e incrementam a superexploração do trabalho, de sorte a preservar o seu quinhão. Economia neocolonial e (semi)escravidão entrecruzam-se.

Nesse sentido, uma decisiva saída para a corja instalada no poder político, em termos de capacidade de fabricação de agenda “positiva”, de tentativas para forjar algum poder de iniciativa, portanto, de promoção de apelos de legitimidade e de parcial integração nacional é a terrível exportação de conflitos. A “ocultação do nosso vale de lágrimas” de atraso, dependência e subdesenvolvimento, na aguda definição do filósofo Álvaro Vieira Pinto, acompanhada do deslocamento do olhar para problemas artificiais, criminosas e arbitrariamente forjados fora do País.

Uma eventual guerra atroz e criminosa contra a Venezuela, um país coirmão, para roubar o petróleo do seu povo e entregá-lo aos EUA, está na mesa e nos cálculos do poder nacional desde o governo Temer. Para os EUA, trata-se de uma benção delegar responsabilidades desgastantes para o Brasil e a Colômbia.

A jornalista Naomi Klein consagrou o uso da expressão “terapia de choque” como recurso mobilizado pelo poder para implementar agendas neoliberais de supressão de direitos trabalhistas, previdenciários, eliminação de impostos cobrados das empresas e dos ricos etc. Com efeito, é plausível argumentar que uma hipotética guerra permitiria dar asas ao colonialismo aberto, preconizado por Bolsonaro e as oligarquias políticas e as classes dominantes que o apoiam, entregar a Amazônia aos EUA, como defende o presidente, desnacionalizando mais ainda a economia brasileira e retirando os direitos que restarem.

Isso tudo embalado com possíveis apelos de mobilização contra o “inimigo externo”, articulando ingredientes retóricos religiosos missionários, no que implicaria, na prática, construir um regime político novo, seguramente mais repressivo, antinacional e reacionário do que o que se encontra hoje em erosão (fruto da redemocratização e da Constituição de 1988).

Ademais, a eventualidade de guerra se associaria com a autorização, conferida pela Constituição, do uso do dispositivo do estado de sítio: isto é, suspensão ampliada de garantias constitucionais, concedendo ampla margem de poderes excepcionais ao governo federal. Não seria desrazoável alegar que se tornaria o sonho do bolsonarismo – sob a alegação da “segurança nacional” –, que conta com um chefe que já preconizou, entre outras barbaridades, “matar 30 mil brasileiros” e com um filho do abjeto presidente que aspira pela “ruptura com a democracia”.

Não é difícil imaginar os possíveis desdobramentos, em todos os sentidos, de uma longínqua, mas nada improvável, eventual intervenção militar sobre a Venezuela, com a participação brasileira. Um desastre gigantesco para o nosso Povo, o nosso País e a nossa América Latina.

Por isso, considerando as contínuas e fáceis perdas de direitos que têm sofrido os trabalhadores e demais mazelas e vexações pelas quais têm sido submetidas a dignidade e a consciência nacional, o recorrente e modorrento debate e interesse das esquerdas partidárias institucionais, exclusivamente dedicadas às eleições – municipais próximas e, em especial, ao pleito presidencial de 2022 –, chegam a ser ofensivos à inteligência do Povo e à gravidade da cena imperante no Brasil, à tragédia social e econômica em curso. Motivos de desalento.

Ao movimento sindical, sobretudo as centrais, e demais movimentos e entidades populares, cabe acordar da longa e injustificável letargia e construir coletivamente uma plataforma de ação e mobilização, com diagnósticos e projetos de Nação. O tempo urge.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

Redação

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