A perda da crítica, por Wesley Sousa
A premissa de que o destino do Brasil se configurou em uma tendência reacionária diagnosticada por muitos intelectuais e críticos, vinculado à tradição, sobretudo marxista, ao longo do século XX, não é algo pejorativo e remonta às próprias raízes. Embora nem sempre bem-intencionado, todo este “discurso” atual vindo da esquerda institucional (o termo é em aspas, pois apenas se firmou como ambiguidade prática) serviu para oferecer o medo do “fascismo”, e não nas especificidades da gênese social da violência geral estandardizada, que outrora era camuflada pelo discurso de “progresso” e “civilidade” dentro de uma possível aliança entre o petismo e parte da burguesia “nacional”. Arrisco a dizer que não absorveu o interesse popular, diria que também forjou um modelo de experiência social particular à gênese histórica republicana, tal como escreve V. Safatle em “Só mais um esforço” (2022).
Se esse pressuposto é verdade, cabe compreender que a premissa tem que ser analisada contrária aos efeitos isolados de um fenômeno histórico-social (passageiro ou imediato), mas exatamente a partir e suas reais causas objetivas e de como se articulam política e culturalmente (ao longo do tempo produzindo sínteses) este emaranhado de coisas. Diria com relativa tranquilidade, entretanto, que não vigorou quase nada de efervescente, a partir do termo guarda-chuva “resistência”.
É equivocada as análises corriqueiras que, no Brasil, a “defesa das instituições”, ou o apelo à “boa política”, fossem passíveis de resoluções aos problemas, ou atenuações que seriam, enfim, estancadas. Apesar de postas em períodos eleitorais, elas são superficiais e abstratas, e no final de tudo, retroativas. A consciência política de uma população pode ser medida pelo grau de “engajamento” que ela dispõe em momentos decisivos da vida pública. O “bolsonarismo”, neste ponto, não é um “raio em céu azul”. Com isso, a luta pela construção de uma sociedade pautada na supressão do capitalismo hoje se tornou um sonho distante para a esquerda. A crítica que outrora era ponto de chegada, não é mais que um composto amargo e subjetivo da postura militante. A resignação não é o subjacente à ausência crítica, mas a crítica demonstra a clareza necessária para entender a resignação.
Enquanto o engajamento se afirma diante da necessidade da ação, esse momento apenas serve para espelhar a si próprio, refletindo paradoxalmente tal incorporação da resignação. A pessoa engajada precisa se valer de seus interesses pessoais ou coletivos (na prática cotidiana ideologicamente direcionada) para compelir o ímpeto revolucionário. Sua tarefa é estar a serviço da revolução, ainda que ela esteja tão distante quanto o entendimento de nosso fracasso. É o diagnóstico de Roberto Schwarz:
Quase todos estamos empenhados, suponhamos, na administração pública, nalgum partido, num departamento da universidade, numa firma de pesquisa, num sindicato, numa associação de profissionais liberais, no ensino secundário, num setor de relações públicas, numa redação de jornal etc., com o objetivo nem sempre muito crível de usar os nossos conhecimentos em favor de alguma espécie de aperfeiçoamento e modernização (3).
Por outro lado, há aqueles que recusam o papel da crítica, pois ela não estaria à serviço de um engajamento. Talvez exija por esperarmos a “hora certa” de criticar, já que há muito o que fazer por agora. Essa recusa da crítica, entretanto, já pressupõe o cinismo distorcido, que efetivamente dá justificação a essa falência. O erro da anticrítica, consistirá, sobretudo, em pensar que suas ideias estariam num grau de plausibilidade maior do que outras – ou de necessidade da sua crença própria. O que importa, ao final, é o “engajamento”.
A esquerda, no seu ínterim ratifica seu preconceito em reconhecer que o formalismo liberal é o corolário de seus problemas. Ao pintar conjuntamente a “revolução” como inviável ou dependente de uma “etapa” – como se a revolução fosse uma “escalada” da “dialética real” ou da “correlação de forças” (sic) –, nossa esquerda, agora resignada, reconfigura a si mesma como um mero perfume em lixo. É a partir dessa forma de se manipular, por meio da forma social capitalista, cuja recolocação dos pressupostos contrários às suas aspirações mundanas se figura: dessa vez, agora, já obsoletas – e o que resta é o “engajamento”. Se a revolução social seria coisa do passado (a despeito do engessamento da burocracia socialista do séc. XX), mesmo que nossa realidade insista em dizer o contrário para os sujeitos engajados, restou-nos o abstrato espaço da “luta por direitos” – agora cada vez mais esparsos.
Por isso, a crítica faleceu: porque virou um predicado sem sujeito, pois aquilo que dava sua dinâmica vital enquanto potência, perdeu-se no ato da resignação. A ironia resulta da subjetividade reconhecida entre um conteúdo aparente, inicialmente vazio. O que resta não é somente a derrota, mas o vazio da crítica – uma negatividade crônica numa sociedade, cujo fardo histórico lhe sobrou apenas sua recusa de ver o estado de coisas, reavivando uma “estetização da vida”. (4)
Perdemos não porque a chancela da derrota foi protocolada, mas porque protocolamos a chancela da derrota. Não seria mais conveniente efetuar da potência crítica à práxis ao invés de insistir na ação de sua falência? Doravante a má fé na burocracia, no Estado, nos partidos de “esquerda”, etc. seriam o meio de sobrevivência nos conflitos sociais postos e mediados, mas que hoje a sobrevivência se tornou o entrave da mediação postulada. As fraseologias sem conteúdo apresentam cada vez mais um horizonte inalcançável. Em resumo, a crítica perdeu seu real espaço, porque foi substituída pelo engajamento profundo das análises políticas pautadas pela reabsorção do que há de mais podre na República: suas instituições. Portanto, decretar a falência da crítica não nos coloca na posição privilegiada de um crítico resignado, apenas mostra que a crítica precisa de uma posição desprivilegiada diante daqueles valentes engajados. Quem sabe ela ficou lá em 1964, e agora, em “2022”, voltaria? Até lá, a crítica não será ressuscitada, a menos que ela aguente a nova derrota. E os engajados que se cuidem: há sempre algo pior para vir.
Se o socialismo é uma possibilidade histórica, não menos o será quando os erros passados nos forem apontados e também do desfecho catastrófico do “socialismo real” no final do séc. XX fique evidenciado. Com isso, compreende-se tanto no marxismo enquanto teoria, quanto na análise do objeto, isto é, no empreendimento de transformação social, possam remete-se à crítica, e não em defesa esteticamente apaixonada de simulacros da vida social reificada (5). A crítica sofre sua derradeira falência: visando sempre o “menos pior”, terceirizaram-na para um Brasil compostos por gestores da anunciada catástrofe, enquanto o papel real da crítica espera seu próximo avião da salvação. Usando das palavras de Schwarz: “Acredito aliás que a crítica independente, sem patrocinador nem interesse direto à vista, é o que mais nos está fazendo falta” (6). Eis o papel da crítica: ela não se submete ao interesse caricatural do militante, pois ela mesma não se resigna diante disto. É a sua antítese.
Será preciso dizer que quem se resigna diante do quadro conjuntural atual não é aquele que promulga o “engajamento” (uma recusa prática do papel da crítica)? Se crítica tem uma função, um papel que lhe é próprio atualmente, de fato ela dispensará tamanho engajamento. Lembrando aqui o drama social na crítica machadiana (Machado de Assis) não é senão um reflexo cuja forma distorcida é o acerto de contas não acertado com nosso passado. Tal como está em suas obras tardias (Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo), reside em sua literatura o aspecto de que a ideologia corrente em seu tempo usava das certezas supostamente científicas de uma certa época para legitimar nossa dominação (caso do evolucionismo manipulado pelo imperialismo): o suposto “pessimismo” que a contesta, ou o ceticismo que dela duvidaria, exerceria uma função satírica de feitura não moralista, mas reduzido ao conteúdo literário sua protoforma necessária, exercendo a fulcral crítica de seu tempo sem cair no imediato do “engajamento”. Mas se Machado, por outro lado, passava longe de ser “socialista” ou coisa que o valha (e que inclusive teve certas inclinações tidas como “conservadoras” aos olhos de hoje), ao menos não se fazia em concessões ao ridículo e ao absurdo que estava em sua volta na matéria social, cultural e literária. É a própria forma da crítica que já exprime seu conteúdo – a sátira, a ironia e o distanciamento fingido.
Por fim, diante da imediaticidade da política em nosso tempo, porém, têm-se aos montes aqueles que desistiram do projeto da revolução social, bem como os que desordenadamente lutam por ela sem saber o caminho. Sobre ambos, a sociabilidade do capital surge como barreira intransponível. A resposta, no entanto, não está no bradar da revolução, mas em saber qual é o caminho para ela. O papel da crítica não é apenas rejeitar a sociabilidade do capital, pois a tarefa é de caráter positivo: precisamos construir um projeto socialista factível, nos despir das fraseologias e apresentar com toda a clareza:qual sociedade queremos, como faremos para construí-la e como essa se sustentará. Um projeto dessa magnitude exige uma crítica radical às relações sociais do capital, tarefa difícil, mas sem a qual não sairemos do lugar. Assim, quando a função da crítica voltar a exercer seu papel, toda superstição deixará de fazer sentido (7).
Wesley Sousa é doutorando em Filosofia pela UFMG. Membro do grupo “Crítica e Dialética” (UFMG/CNPq) e da ABRE (Associação brasileira de Estética).
NOTAS
1. Não se quer dizer que no Brasil nunca tenha havido alguns pequenos grupelhos de delinquentes, relevantes apenas quando aparecem no jornal por terem cometido algum crime abominável, sendo recebidos com completa desaprovação, adeptos ao nazifascismo de Hitler e Mussolini. Fora esses facínoras desprezíveis, não há vestígios de fascismo no Brasil, ao menos de forma relevante, a ponto de apresentar-se como uma via de desenvolvimento do capital por aqui nas terras tupiniquins.
2. Ver: ADORNO, Theodor. “Resignação”. Tradução e apresentação Felipe Catalani. São Paulo, Cadernos de Filosofia Alemã, v. 23, n. 1, 2018.
3. SCHWARZ, Roberto. “Nunca fomos tão engajados”. In. __________. Sequências Brasileiras: ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 176.
4. KURZ, Robert. A indústria cultural no século XXI. Disponível em: < http://www.obeco-online.org/rkurz406.htm?fbclid=IwAR1SKCHOWErfCEZ_iF1zdyoI42uUbprI1ni2Q_gtuv6U3e1tOqeC_BuZDdk >. Acesso em: 24 de março de 2022. “A ideologia da estetização tornada forma de vida real não deve ser confundida com a estética em si. A questão não é que cada conteúdo encontre a sua adequada forma de expressão ou de exposição, para o que podem ser desenvolvidos critérios. Em vez disso, é a forma estética que se autonomiza como se viu contra o conteúdo e rebaixa este à sua forma de manifestação acidental e não essencial. É esta inversão, implantada e consumada pela forma totalitária da mercadoria na arte e na cultura, que constitui o programa da estetização”.
5. SOUSA, Wesley. “As duas faces da revolução”. Fortaleza, Cadernos do GPOSSHE On-line, v.6, n. 1, 2022, p. 57.
6. SCHWARZ, Roberto. “Nunca fomos tão engajados”, 1999, p. 176.
7. LUKÁCS, György. “Conversando com Lukács”. Tradução Giseh Vianna. São Paulo: Instituto Lukács, 2014.
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