A reedição da insensatez, por Aracy S. Balbani

Em 2020, a situação que estava ruim piorou. Com um mandatário que está mais para candidato a padroeiro do videogame do que para estadista, retrocedemos ao tempo das negligências.

Agência Brasil

A reedição da insensatez

por Aracy S. Balbani

O setor de saúde já estava em perigo no Brasil bem antes do primeiro registro oficial de COVID-19. No SUS, o subfinanciamento e o desmanche dos Programas Mais Médicos e Farmácia Popular afetaram milhões de cidadãos. Nunca foram zerados os casos de má gestão e corrupção, tão escandalosos em inúmeras Organizações Sociais de Saúde (OSSs) quanto na administração direta. Na judicialização da saúde, até Rosângela Moro participou do imbróglio como advogada da Casa Hunter, amicus curiae no Recurso Especial RE 566471 no STF sobre o fornecimento de medicamentos pelo SUS.

Nos serviços privados, outros milhões de brasileiros ficaram sem dinheiro para pagar planos de saúde nos últimos quatro anos. As operadoras de planos reduziram drasticamente a remuneração dos profissionais através da imposição dos pacotes de procedimentos. A clientela particular minguou. Para não falirem, muitos profissionais, incluindo vários com décadas de experiência e hábito de gozar férias de julho na Flórida, apelaram ao atacadão de consultas a preços módicos. Cresceu a oferta de consultas médicas intermediadas por cartões de desconto integrados a farmácias e ópticas ou por empresas vinculadas a funerárias.

Em 2020, a situação que estava ruim piorou. Com um mandatário que está mais para candidato a padroeiro do videogame do que para estadista, retrocedemos ao tempo das negligências. Avessos à pesquisa científica séria, os nós-cegos que ocupam posições relevantes na vida nacional agem como se fosse motivo de orgulho fomentar uma pandemia para chamar de sua. Negam a fome que voltou a grassar no país. Vulgares, difamam e desumanizam os que não concordam com suas ideias e seus costumes familiares. Incentivam a violência. Nesses quase oito meses de quarentena avacalhada, charlatanismo e trombadas públicas entre governantes, a assistência de saúde das funerárias tornou-se opção com satisfação garantida. Uma realidade macabra.

Embora o calendário se aproxime de 2021, parece que empacamos no pesadelo de um 2019 sem fim. Segundo boletim da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) sobre a COVID-19, os índices de inadimplência nos planos de saúde têm-se mantido em 11% para os planos individuais e 4%- 5% para os coletivos desde julho de 2020. O pico de inadimplência (13% e 7% dos planos respectivamente) foi registrado em maio. A ANS recebeu 12.631 reclamações dos usuários de planos sobre a pandemia, das quais 59% foram de dificuldade para realizar exames e tratamentos para o coronavírus. Em outras palavras, fazer sacrifício para pagar a mensalidade do plano não dá 100% de garantia de atendimento na suspeita ou confirmação de COVID-19.

Frente ao decreto para viabilizar a privatização das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e ao posterior recuo do Governo Federal, ainda que com ameaça de reeditar o decreto, cabe divulgar o documento “A atuação do Ministério Público em face das organizações sociais de saúde”, elaborado pela Comissão Extraordinária de Saúde do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e publicado em 2019 sob a presidência de Augusto Aras.

Nas páginas 40 e 41, o documento do CNMP cita o relatório do Banco Mundial intitulado “Um Ajuste Justo – Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”. O relatório, de 2017, teria sido feito por encomenda do Governo Federal. A privatização das UBSs vai de encontro às propostas do Banco Mundial para o ajuste fiscal verde-amarelo na área da saúde pública.

Não espanta que a imprensa comercial tenha feito vista grossa para a publicação do decreto para privatização das UBSs e só tenha noticiado o fato quando a reação contrária tomou a proporção da tsunami #DefendaOSUS nas redes sociais. Afinal, planos e seguros de saúde são anunciantes e patrocinadores de peso.

Está só no começo a queda de braço para decidir quem manda nessa pátria: os gringos da grana ou nós, todos os brasileiros e brasileiras, que merecemos ser assistidos por um sistema de saúde público, universal e eficiente.

Desmantelar o SUS em vez de aperfeiçoá-lo é insensatez. Equivale a jogar o bebê fora junto com a água do banho. Aliás, alguém sugira ao Presidente Bolsonaro que, quando Sua Excelência comer uma coxinha ou tomar café na padaria ou num posto de gasolina, não se esqueça de agradecer publicamente aos fiscais da Vigilância Sanitária do SUS que zelam para que ele e outros cidadãos consumam alimentos servidos em estabelecimentos com padrão de higiene adequado à legislação. Sem o SUS corre-se o risco de acabar nas contorções de uma colossal e, possivelmente, odorífera diarreia coletiva.

A ignorância está na moda. Vamos ver se a parcela pensante da sociedade brasileira tem brio para fazer prevalecerem a soberania nacional e os direitos constitucionais à vida e a saúde, ou se resignará à imbecilidade de rebanho.

Redação

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