A universidade dos gurus e a universidade das transgressões, por Paulo Fernandes Silveira

Em 'Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade', bell hooks parece indicar um caminho para evitarmos a universidade dos gurus

(Imagem de bell hooks, autora de Ensinando a transgredir).

A universidade dos gurus e a universidade das transgressões

por Paulo Fernandes Silveira

“Agora prossigo só, meus discípulos! E vós também, ide embora, sós! Assim o quero. Afastai-vos de mim e defendei-vos contra Zaratustra!” (Friedrich Nietzsche, Ecce Homo, Prólogo).

Os papéis social, cultural e político da universidade foram analisados por diversos filósofos, sociólogos e historiadores alemães, especialmente, nos anos que antecederam a Shoah. Nas primeiras décadas do séc. XX, com a ascensão do nazismo, um dos principais temas desse debate foi a expressiva adesão de estudantes secundaristas e universitários à juventude hitlerista (Hitlerjugend).

A partir do séc. XIX, inúmeras corporações estudantis (Studentenverbindungen) surgiram na Alemanha (). Em 1815, estudantes da Universidade de Jena fundaram as Burschenschaften, também chamadas de Bucha, a princípio, confrarias com perfil liberal e nacionalista. Dois anos depois, eles promoveram o Festival de Wartburg, um encontro de estudantes. Em 1819, um estudante ligado às Burschenschaften assassinou brutalmente o jornalista e dramaturgo August von Kotzebue, que tinha publicado artigos questionando as confrarias de jovens.

Em 1820, no prefácio do livro Princípios da filosofia do direito, Hegel refere-se a Jakob Fries, docente da Universidade de Jena e guru do estudante que assassinou Kotzebue, como um trapaceiro do livre-arbítrio, alguém que se vale da sua capacidade de convencer o público para apossar-se da palavra filosofia. Na quinta conferência do escrito Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, de 1872, Nietzsche critica a concepção de liberdade acadêmica da juventude do seu tempo e toma esse assassinato como sintoma da carência de grandes guias culturais.

Uma marca das primeiras confrarias de jovens alemães foi a identificação com a organização militar. Na Universidade de Jena havia estudantes que faziam parte do Lützowsche Freikorps, tropa de milicianos que lutaram nas guerras contra Napoleão. No Festival de Wartburg, local onde Lutero retirou-se para traduzir a bíblia, veteranos desse Freikorps foram homenageados. Em seus artigos, Kotzebue criticava a ideia de que a liberdade acadêmica pudesse autorizar a prática violenta do duelo e as agressões durante as intermináveis bebedeiras.

Assim como o Lützowsche Freikorps leva o nome e se organiza a partir da liderança do major Adolf von Lützow, as confrarias de jovens também se estruturam a partir de um líder acadêmico. Em A ciência como vocação, palestra proferida em 1917, Weber analisa a demanda da juventude universitária por líderes, e não por professores. Esses estudantes procuram um “campeão de convicções práticas”, um “campeão do futebol da vida”, alguém que lhes indique o que devem defender e como devem agir. Para Weber, não é esse o papel da universidade e não é isso o que caracteriza a atividade do docente. Por outro lado, uma comunidade baseada nessa forma de liderança tem a estrutura de uma religião e implica no “sacrifício do intelecto”.

Em Psicologia das massas, publicado em 1921, Freud destaca os dois grupos que dependem de um líder: a Igreja e o exército. Para o psicanalista, esses grupos são constituídos por “massas artificiais”, ou seja, essa forma de coesão precisa de uma coação externa para não diluir. Tanto na Igreja quanto no exército, sustenta-se a ilusão de que o líder ama da mesma maneira todos que compõem a massa. O líder funciona como um substituto paterno para cada indivíduo. A ligação libidinal entre os indivíduos deve estar subordinada ao amor do líder. Nesses termos, as coações externas precisam inibir qualquer investimento libidinal alheio ao líder. Portanto, talvez possamos inferir que essa forma de coesão também implica no “sacrifício da libido”.

Num célebre ensaio sobre ideologia e educação, Marilena Chauí nos alerta que: “Uma pedagogia crítica deveria interrogar esse risco cotidiano: de onde vem e por que vem a sedução de tornar-se guru? De onde vem e por que vem em nós e nos alunos o desejo de que haja um Mestre, o apelo à figura da autoridade?”. Como alternativa, a filósofa sugere que o professor não se coloque na posição de um guru, mas na posição de um mediador no diálogo do aluno com os pensamentos, “com a cultura corporificada nas obras e nas práticas sociais”.

Em suas pesquisas recentes, Walter Kohan nos convida a refletir sobre uma das últimas frases publicadas por Paulo Freire: “Ninguém é superior a ninguém”. Essa frase, afirma Kohan, sugere a importância da escuta atenta, verdadeira, e exige “uma disponibilidade permanente em relação ao outro”. A escuta atenta pressupõe que o professor esteja aberto e se interesse pelos pensamentos dos seus alunos. Com essa frase, Freire estaria enfatizando o princípio ético, político e epistemológico da sua pedagogia, uma pedagogia emancipadora.

Também influenciada por Freire, no conjunto de ensaios que compõem o livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, bell hooks parece indicar um caminho para evitarmos a universidade dos gurus: “Pedindo a todos que abram a cabeça e o coração para conhecer o que está além das fronteiras do aceitável, para pensar e repensar, para criar novas visões, celebro um ensino que permita as transgressões – um movimento contra as fronteiras e para além delas. É esse movimento que transforma a educação na prática da liberdade” (2013, p. 24).

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Redação

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